Ernst Lohoff/Norbert Trenkle
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“A economia é nosso destino”: raramente esta sentença, pronunciada há quase um século pelo político alemão Walther Rathenau, ressoou de forma tão ameaçadora quanto atualmente. A economia, o santo dos santos da nossa sociedade, que é também o eixo e o ponto de fixação, está fora de controle. Ainda recentemente, ela era vista como o refúgio de uma razão superior, mas qualquer pessoa dotada de um pouco de bom senso tem hoje o sentimento, lendo a imprensa econômica, de se encontrar em um asilo de loucos. Desde o outono de 2008, quando a crise dos subprimes conduziu o conjunto dos mercados financeiros à beira do precipício, a conjuntura mundial só pôde se estabilizar de maneira precária. Bastava os líderes políticos e os oráculos que lhes servem de economistas – num acesso de otimismo – anunciarem “o fim da crise” para que surgissem novas noticias, ainda mais lúgubres, sobre a situação económica mundial. Era só apagar um foco de incêndio com rios de dinheiro fresco que o fogo já ameaçava dois ou três outros lugares do sistema capitalista mundial. Certamente, os governos e os Bancos Centrais conseguiram, a princípio, evitar o colapso da economia mundial graças à nacionalização urgente de créditos podres, assim como à política de dinheiro barato e ao aumento rápido do endividamento dos Estados. Mas dessa forma, eles apenas prepararam o próximo e ainda maior impulso à crise. Agora é a explosão das bolhas financeiras dos Estados que ameaça precipitar a economia mundial no.
Essa barulhenta cacofonia acompanha um proceso dramático. São estratégias tiradas dos livros de receitas para explicar ao público em qual momento “nossa economia” se desviou do caminho correto do mercado e quais remédios lhe permitiriam recobrar a razão. Os autores da presente obra não têm nenhuma parte nesse negócio. O que eles entendem por essencialmente errado é o pressuposto mesmo que se encontra no fundamento do atual debate. Pressuposto segundo o qual se poderia resolver a crise atual no enquadramento do modo de produção capitalista. A pretendida “degeneração” da gloriosa economia de mercado, que se torna responsável pelo desastre econômico mundial, deve ser, na realidade, considerada como um processo de desvelamento. Pode-se observar que o modo de produção capitalista constitui uma forma de produção de riqueza absolutamente irracional, programada para a autodestruição. A explosão dos mercados financeiros, a especulação, o endividamento desmedido dos Estados ou tudo que é apresentado no mercado de opiniões como a causa da crise atual são, na verdade, os sintomas de um processo de crise muito mais profundo. O que está em causa hoje não diz respeito a um “defeito” que poderia ser resolvido, mas aos fundamentos do sistema capitalista mundial em via de desagregação.
Esta visão de coisas é tabu no debate público. Não a despeito da “crítica do capitalismo” ensurdecedora que nos é infligida por todas as mídias, mas precisamente em razão dela. Pois essa última se limita, essencialmente, a uma reprimenda sem conseqüência endereçada aos mercados financeiros – alinhada, vezes mais, vezes menos, com difamações que personificam os “banqueiros e especuladores” – que, por esta razão, precisamente, impede de compreender que é o sistema de produção de riqueza capitalista em si mesmo que é insustentável. A realidade pressiona a encarar uma crise fundamental, mas a consciência dominante recusa essa realidade com todas as suas forças. É claro, reina o medo de uma grande catástrofe. Mas ele permanece difuso e canalizado contra fantasmas esotéricos do fim do mundo, como aquele da pretensa profecia Maia, ou as fantasias conspirativas antissemitas e tentativas individuais de fugir para fora da vida cotidiana; ou é suprimido por charlatões notórios que minimizam a crise distribuindo soníferos.
O pano de fundo silencioso desse estado esquizofrênico é sem nenhuma dúvida a preparação psicossocial do indivíduo moderno após trinta anos de uma penetração radical da economia em todos os domínios da vida, que tornou impossível imaginar uma organização da vida social que não passe pela mercadoria, pelo dispêndio abstrato da força de trabalho e pelo dinheiro. Se junta a isso o colapso do “socialismo real”, que conferiu ao dogma da ausência de toda alternativa oposta ao capitalismo a força de uma evidência. Certamente, o “socialismo real” nunca foi outra coisa que uma variante autoritária da modernização capitalista, sustentada pela ideologia singular da “ditadura do proletariado”, e ele não constituía de forma alguma uma perspectiva para a emancipação social; mas sua existência aparecia para muitos como a prova de que existia outra opção face ao alinhamento de todas as relações sociais ao princípio da racionalidade econômica. É por isso que seu colapso não alargou o horizonte do pensamento emancipatório, mas ao contrário, reforçou o sentimento de que o modo de vida e de produção da economia capitalista é o único possível. Como mera possibilidade de superação do capitalismo era varrida como fantasia irreal de sonhadores e retrógrados inveterados, a ideia de uma crise fundamental do sistema tornou-se implicitamente um tabu. Pois essa crise não é analisada como crise de um modo de produção historicamente específico que se tornou obsoleto: ela aparece como um processo apocalíptico, como uma guerra atômica mundial ou a queda de um meteorito gigante – daí a oscilação entre histeria e recalcamento. Capitalismo ou barbárie: eis o slogan implícito da propaganda que se espalha nas mídias. Ou esta crise significa o fim de toda a civilização ou se consegue retomar um curso normal para a reprodução capitalista. E é exatamente assim que se deve compreender o discurso apocalíptico sustentado por certas frações da classe política, como o bravo “comissário do rigor” socialdemocrata alemão Peer Steinbrück que, sob o choque da quebra dos mercados financeiros, declarou que estávamos “à beira do precipício”. Talvez se tratasse da expressão de susto frente às consequências dos seus próprios atos, mas, em última análise, esse tipo de afirmação serve para legitimar as medidas de austeridade drásticas e os sacrifícios exigidos à população como condição para controlar a turbulência econômica. O vocabulário apocalíptico serve aqui como variante do funesto “Princípio TINA”: There is no alternative. Nunca esta fórmula foi citada tantas vezes e com tanta convicção quanto depois do estouro da bolha imobiliária e das ondas de choque que se seguiram. Quando a ameaça é o fim do mundo, é inútil ser delicado.
Os gurus da crise, que se multiplicaram desde o outono de 2008, se inscrevem igualmente nesse esquema. O sucesso deles repousa sobre o fato de que esse alarmismo responde a um clima social subterrâneo e, ao contrário das fileiras de curandeiros e apaziguadores, eles pintam nos muros imagens de protestos violentos. Mas, apesar disso, compartilham o consenso social segundo o qual não há uma crise fundamental do sistema e que é possível resolvê-la com decisões políticas firmes e medidas de poupança reforçadas. A ideia de que o modo de produção capitalista levado ao absurdo torna-se insustentável lhes continua totalmente estranha. Com os olhos fixados na superfície da crise, polemizam contra pretensos “erros” como o “imenso endividamento dos Estados”, a “expectativa de rentabilidade excessiva” ou uma “especulação descarada”, erros que deveriam ser detidos para que a sociedade não mergulhasse no abismo. Para os gurus da crise, restabelecer um capitalismo são e próspero é apenas uma questão de vontade política e social. Nesse sentido, eles contribuem com eficiência, minimizando o fenômeno.
Representante mais exitoso dessa confraria, o economista alemão Max Otte propõe explicitamente que se considere a “crise como uma oportunidade” (Otte, 2006, p. 193) – naturalmente, não como a ocasião para o desenvolvimento de uma prática de oposição à atual loucura, mas, como oportunidade, individual e coletiva, de um novo posicionamento vitorioso na competição capitalista. Segundo ele, a Europa tem à sua frente a chance de melhorar de maneira decisiva sua posição nos mercados mundiais e um investidor inteligente veria abrir para si oportunidades formidáveis de multiplicações dos lucros mesmo em um mercado em baixa. Assim o último terço da obra de Otte é unicamente constituída de indicações de investimentos, permitindo colocar em prática seus conselhos. A despeito de todas as falhas econômicas atuais, não se pode, segundo Otte, imaginar que as fundações da ordem capitalista estejam abaladas. O mercado mundial continuará a funcionar até o fim dos tempos e jamais deixará de estar disponível para a determinação mais sagrada da existência humana: a otimização do próprio patrimônio pessoal segue sendo possível e permanece o centro de todo o esforço sobre a Terra.
Claro, as predições e diagnósticos de diversos gurus da crise apresentam nuances. Assim, em seu livro escrito justo antes do crash de 2008, Otte interpreta a crise primeiramente como uma crise de deflação, na qual o curso das ações cai e os títulos de dívida se transformam em dejetos. Outros autores fazem soar o alarme diante da possibilidade de afundamento do sistema monetário mundial e da hiperinflação. Em si, este medo não é sem fundamento. Em seu desenvolvimento, o processo da crise atual deve desemborcar em uma crise do dinheiro e da ordem monetária – como mostraremos na segunda e na terceira parte deste livro. Mas qualquer que seja a forma tomada por esse desenvolvimento, a atual ordem monetária – apoiada no Dólar como moeda mundial e no Euro como segunda moeda de referência – não poderá ser mantida por muito tempo. Há muito que essa tendência se anunciava (ver Lohoff, 1995; Lohoff e Trenkle, 1996), uma vez que é um segredo por todos conhecido. O negócio torna-se escandaloso, no entanto, quando os gurus da crise não podem mais olhar no túnel escuro sem enxergar o brilho dourado do outro lado. Assim é a receita que Nathan Lewis apresenta no livro Ouro: a moeda do futuro (Lewis, 2008), que é igualmente muito apreciado por outros gurus da crise, grandes e pequenos neoliberais e antiestatistas. De acordo com Lewis, os Estados deveriam abandonar todo endividamento e retornar a um sistema monetário com base no ouro: assim, segundo ele, seria estabelecido o fundamento monetário de uma economia mundial renovada, sólida e próspera.
Essas propostas só podem ser feitas quando se perde todo senso do desenvolvimento lógico e histórico do sistema de produção da riqueza capitalista. Não é um acaso, se este, no curso dos decênios, se emancipou da moeda-ouro. Isto não resulta de uma decisão equivocada de políticos mal aconselhados e que poderia ser revertida, como pensam Lewis e seus colegas. É antes o resultado e, ao mesmo tempo, o pressuposto da enorme expansão da produção capitalista em sua marcha triunfal sobre o globo. Com base apenas no “metal bárbaro” (Keynes) o qual, devido à sua forma material, está sujeito a limites naturais, as últimas décadas de desenvolvimento capitalista não teriam sido possíveis. A transição para a pura moeda de crédito era indispensável. Certamente, pode-se imaginar que em um último estágio da queda da economia mundial e da decomposição da moeda, tente-se novamente, de algum modo, atrelar as moedas nacionais ao ouro, mas tais reformas monetárias seriam claramente o resultado e a forma decorrente do processo devastador de encolhimento do sistema de produção de riqueza capitalista. Elas seriam tão promissoras quanto a aparição espontânea de uma moeda constituída de cigarros depois da Segunda Guerra Mundial. Os ortopedistas amadores apaixonados pelo ouro prescrevem ao capitalismo réplicas de sapatos com os quais ele aprendeu a andar, e fazem do ouro as botas de sete léguas para uma nova grande marcha em direção à acumulação capitalista. Mas, na realidade, são apenas sapatos fornecidos pelos administradores da miséria.
Mas duvidosos gurus como Otte e Lewis não são os únicos incapazes de compreender o caráter fundamental do atual processo de crise. Se a maior parte do debate público permanece limitada à superfície dos acontecimentos e se os sintomas da crise tais como a autonomização do movimento dos mercados financeiros ou a explosão das dividas dos Estados são desconectados de suas causas, isso não é somente devido ao encolher de medo ante a escalada monstruosa da crise do sistema capitalista. A isto se soma o fato de todas as escolas da doutrina econômica que competem entre si serem incapazes, em razão mesmo de seus pressupostos teóricos e de seus paradigmas, de pensar uma crise fundamental – e de terem se imunizado contra ela.
Desde a época de Adam Smih e de Jean-Baptiste Say, os economistas estão quase todos em guerra contra a ideia de que o capitalismo engendraria crises a partir de sua lógica interna. Ainda que seja óbvio que a dinâmica do capitalismo cause desequilíbrios e disfunções permanentes sempre resolvidas e superadas de maneira provisória pelas crises, a doutrina econômica, em sua versão clássica, assim como na versão neoclássica, reconhece no mercado, desde sua origem, a garantia confiável de situações de equilíbrio. Nesse sentido, as crises econômicas não podem ter uma causa econômica interna. Por definição, elas podem ser apenas o resultado de fatores exógenos – quer dizer, extra-econômicos, como catástrofes naturais, guerras e erros políticos. É assim que todas as crises que acompanharam o desenvolvimento do capitalismo foram ideologicamente desrealizadas, e as contradições internas do capitalismo, que produzem de modo inevitável falhas recorrentes, são eliminadas por princípio.
É certo que, perante a crise mundial dos anos 1930, o keynesianismo originou-se como a primeira escola econômica que suavizou parcialmente esse dogma, mas apenas para continuá-lo de outra forma. De acordo com Keynes, preferir o dinheiro a outras formas de riqueza (“preferência pela liquidez”) pode prejudicar a produção do equilíbrio econômico e engendrar um subemprego estrutural; no entanto, esta fonte potencial de desequilíbrio poderia, segundo ele, ser eliminada por medidas políticas monetárias e fiscais adequadas. Desta forma, o Estado aparece como um ator econômico importante, cuja tarefa principal é intervir para estabelecer o originalmente harmonioso poder do mercado quando ele é anulado por perturbações transitórias.
Como todas as crises anteriores foram minimizadas com sucesso, não surpreende que uma crise fundamental seja tão impensável para a doutrina econômica que esta nem mesmo precise se justificar. As definições e os conceitos econômicos fundamentais desenvolvidos no curso dos dois últimos séculos não permitem a formulação de tal pensamento. Enquanto eles se entendem, as defesas imunológicas estão seguras, qualquer que seja a imagem empírica do sistema capitalista mundial. Certamente, nos últimos anos, em vista do vigor da crise, alguns representantes ilustres da doutrina econômica se permitiram discutir o “fim do capitalismo”, mas olhando mais de perto, esse discurso – que não se distingue daquele dos duvidosos gurus da crise – se refere apenas a um pretenso “descarrilamento” da “economia de mercado” e bastaria simplesmente recolocá-lo no caminho correto. O capitalismo é mau, a economia de mercado é boa, eis o credo que denuncia como “capitalismo” apenas a “especulação desenfreada” nos mercados financeiros. Mesmo os liberais linha dura, como o propagandista do imposto fixo Paul Kirchhof, se uniram a essa leitura. Este último defende, na série Kapitalismus – Kaputt? do jornal Die Zeit, uma “economia de mercado responsável” e lança o apelo: “não deveríamos nos deixar acuar por um mercado financeiro que se tornou selvagem” (Kirchhof, 2011).
A distinção entre “economia de mercado” e “capitalismo” tem uma tradição. Já na época da guerra fria, era o coração da ideologia de legitimação do Ocidente que vendia sua “economia social de mercado”[1] como uma terceira via entre capitalismo e comunismo. Na época do capitalismo de crise, essa ideologia adquire um novo significado como defesa face à ideia ameaçadora segundo a qual todo o sistema poderia estar em jogo. Mas as raízes dessa imunização de base são mais profundas. Elas surgem da ideia que a doutrina econômica faz de si mesma, que é certamente o produto do modo de produção capitalista, mas que não pode encarar esta forma historicamente específica de socialização sem mistificá-la como modo de vida dos homens em geral. Enquanto, na realidade capitalista, dificilmente se pode ignorar que a valorização do capital – o abstrato fim em si de fazer do dinheiro mais dinheiro – é o eixo do processo econômico e que a produção de mercadorias é somente um meio subordinado a tal fim, a doutrina econômica quer vê-la como uma inocente “produção de bens”, como algo que sempre existiu desde que os ancestrais do Homo Sapiens desceram das árvores. Todos os manuais de economia começam pelo axioma inquestionável segundo o qual o objetivo da economia é fornecer coisas úteis aos homens, e a produção de mercadorias, o dinheiro e o mercado constituiriam apenas meios particularmente refinados para atingir esta finalidade, para a organização da divisão social do trabalho e a “alocação ótima de recursos”. Desta forma, não se apaga somente a inversão dos meios e do fim, inerente ao caráter historicamente específico do modo de produção capitalista mas também as suas contradições internas, tornando inútil uma crise resultante delas.
Se, portanto, as análises da crise dos economistas especializados resultam superficiais e desorientadas, como efetivamente o são, não há como responsabilizar qualquer incompetência particular da geração atual de economistas. O problema não é o domínio insuficiente dos instrumentos de análise econômica, mas a sua estrutura básica. Nenhuma escola de desenho propõe a borracha como o único instrumento para esboçar um retrato. Mas a doutrina econômica faz exatamente essa loucura em todos os âmbitos quando se trata de compreender o que está por trás do processo de crise atual. Assim, quem quiser explicitar de maneira aprofundada esse processo deve adotar outro sistema de referências teóricas, algo que rompa com os harmoniosos pressupostos da doutrina econômica e apreenda as características historicamente específicas do modo de produção capitalista.
Os fundamentos de tal sistema teórico foram estabelecidas há mais de 150 anos por um certo Karl Marx. Partindo de uma crítica da produção de mercadorias e de suas contradições internas, ele decifrou o modo de produção capitalista como um sistema fetichista altamente irracional submetido à uma dinâmica histórica incontrolável que, em última análise, deve levá-lo à autodestruição, caso a humanidade não seja capaz de superá-lo. Entretanto, é surpreendente que essa concepção não tenha desempenhado até o momento quase nenhum papel no debate sobre a crise. Assistimos nos últimos anos a um “renascimento de Marx”, ou, pelo menos, a combinação de letras M-A-R-X surge sempre de tempos em tempos como uma espécie de artifício em polêmicas sobre as questões sociais, mas é sem dúvida porque as ridículas acrobacias do capitalismo de crise e os sacrifícios sempre novos impostos à sociedade suscitam a nostalgia de uma crítica fundamental da sociedade na qual o nome de Marx permanece um tipo de senha. No entanto, a verdadeira pertinência e atualidade da crítica de Marx à economia política é mais abafada do que revelada por tais reminiscências.
Alguns invocam o retorno da luta de classes e assim reativam precisamente a parte da teoria de Marx que teve no passado um grande impacto ideológico e político, pois ela permaneceu presa à imanência do movimento de modernização capitalista, tornando-se definitivamente ultrapassada nos dias de hoje (ver, para essa crítica, Kurz e Lohoff, 1989; Trenkle, 2005; Lohoff, 2006; Schandl, 1997). Então, Marx é novamente convocado como principal testemunha para uma crítica truncada do capitalismo financeiro, acusado de explorar de maneira excessiva a “economia real” e que, por essa razão, deveria ser contido. É como se, em seu tempo, Marx não tivesse zombado das fantasias pequeno-burguesas de um mundo capitalista ideal. Finalmente, existem aqueles, principalmente os universitários, que se esforçam para reduzir o pensamento de Marx ao sistema de referências teóricas da economia, esvaziando sua substância crítica, como se ele fosse uma espécie de precursor de Keynes, ou impõe a ele a concepção subjetiva de valor dos neoclássicos. Mas a parte da teoria de Marx que tem hoje toda a sua pertinência, a crítica fundamental da mercadoria, do trabalho, do valor e do dinheiro, além da teoria da crise que decorre dela, permanece quase completamente oculta.
Retomando essa linha teórica e a desenvolvendo, o capitalismo e a sua propensão à crise aparecem sob outra luz que não os modelos axiomáticos e ahistóricos de harmonia postulados pela doutrina econômica. As crises históricas que permanecem inexplicáveis no enquadramento de tais modelos não indicam somente o caráter irracional e auto-contraditório do modo de produção dominante, mas constituem os impulsionadores nesse longo caminho que o leva à barreira interna. Acontece que o tacanho fim em si mesmo da valorização do capital não é compatível, no longo prazo, com os imensos potenciais de produção de riqueza material que ele mesmo faz surgir, porque o processo vai de par com uma incessante redução do tempo de trabalho necessário à produção de mercadorias. Em outras condições sociais, esse potencial poderia ser utilizado para ajudar todas as pessoas a levarem uma boa vida, sem a destruição das condições naturais da vida; em condições capitalistas, no entanto, o crescimento incessante da produtividade mina a produção de valor e, assim, o fundamento mesmo da valorização do capital. Cedo ou tarde, deve ser alcançado o ponto em que o nível das forças produtivas se torna incompatível com a forma da riqueza capitalista.
Visto dessa maneira, a atual crise da economia mundial não é de forma alguma o resultado da especulação ou do endividamento excessivo que agora deve ser pago. Ao contrário, a formação de enormes bolhas financeiras expressa em si mesma o fato de que, desde o início da Terceira Revolução Industrial – que introduziu uma mudança fundamental nas estruturas de produção e que tornou “supérflua” a força de trabalho nos setores centrais da valorização capitalista – há uma queda absoluta da produção de valor. A crise estrutural decorrente disso, que se faz perceptível já desde os anos 1970 como uma “crise do trabalho”, só pôde ser disfarçada e adiada por meio de um colossal empilhamento de “capital fictício” nos mercados financeiros. O preço a pagar foi a acumulação de enormes montanhas de letras de cambio descobertas a futuro, que jamais serão resgatadas e cuja desvalorização pende agora sobre o mundo inteiro como uma espada de Dâmocles. Portanto, os alertas superficiais sobre a crise tem tanto sentido quanto as profecias pessimistas dos gurus da crise, que apelam a um retorno da “economia de mercado saudável” e são tão errados quanto todas as exigências de “controle dos mercados financeiros”. É possível que a crise estrutural fundamental seja uma vez mais adiada, por meio de uma nova bolha de capital fictício e das diversas medidas de urgência, mas ela não poderá ser resolvida no interior da lógica capitalista. A manutenção forçada dessa lógica é, na realidade, uma grande ameaça de catástrofe, à medida que a crise se agrava. Só se pode evitá-la se desenvolvermos em escala mundial uma alternativa social para além da produção de mercadorias.
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A construção deste livro segue a estrutura argumentativa que vamos esboçar aqui em algumas linhas. A primeira parte – redigida por Norbert Trenkle – enuncia os conceitos fundamentais para a compreensão da dinâmica histórica do capitalismo e da sua contradição interna Em seguida, examinamos como essa contradição foi, a princípio, com o boomeconômico do pós-guerra, um possante motor para a imposição do capitalismo, antes de se transformar – no curso da Terceira Revolução Industrial – em uma força interna da crise estrutural. Nós mostraremos porque, no nível atingido pela produtividade social, um impulso autossustentável da valorização capitalista não é mais possível, e como a crise estrutural fundamental foi adiada através do inchaço da superestrutura financeira.
A segunda e a terceira partes do livro – redigidas por Ernest Lohoff – são consagradas a um exame aprofundado do capital fictício. A segunda parte desenvolve inicialmente os fundamentos teóricos para compreender esse tipo de capital e sua função no processo de acumulação capitalista. Ela mostra que os títulos de propriedade sobre os quais se compõe o capital fictício são uma categoria particular de mercadoria, as “mercadorias de segunda ordem” cujo valor de uso particular é representar um valor futuro. São examinadas se e em quais circunstâncias essa antecipação poderá ser resgatada e quais são os limites lógicos desse movimento. A terceira parte analisa o lugar e a função que ocupa o capital fictício no processo histórico de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Se seu significado era secundário na época da Revolução Industrial, tornou-se muito importante na época do fordismo, enquanto gerador de impulso e motor de arranque da acumulação, pois os enormes investimentos necessários na produção industrial em massa só podiam ser financiados pela antecipação do futuro. Mas enquanto essa antecipação ainda podia ser coberta por uma produção de valor real, isso já não é possível na era da Terceira Revolução Industrial. O capital fictício se transformou no motor da acumulação que, no entanto, só pode ser mantida graças a uma antecipação ainda maior do futuro. Mas quando os limites desta antecipação são atingidos, deve ocorrer uma gigantesca desvalorização do capital fictício que não só vai revelar a crise estrutural, mas deve também se manifestar sobre a forma de uma desvalorização da mediação monetária.
A conclusão deste livro, finalmente, elenca algumas teses sobre as perspectivas da emancipação social diante da crise. Argumentamos que a alegada “austeridade” evocada em referência à Dona de Casa da Suábia[2] é um completo absurdo que somente é o resultado da lógica insensata de um sistema que não produz jamais a riqueza social senão como subproduto da valorização do capital e a produção permanece condicionada à “rentabilidade” e à “viabilidade financeira.” Se nos libertamos deste constrangimento, de modo algum parecerá que vivemos “além de nossos meios”, ao contrário, há muito tempo a sociedade é demasiado rica para a forma estreita e limitada da produção de riqueza capitalista. É apenas quando tivermos o sucesso de eliminar esta forma que poderíamos utilizar de maneira judiciosa e racional os atuais potenciais da produtividade, a fim de tornar possível para todos os homens uma vida boa e de conservar duravelmente os fundamentos naturais da vida.
Notas do traductor:
[1] “Economia social de mercado” (Soziale Markwirtschaft) foi a doutrina econômica oficial da República Federal da Alemanha após a Segunda Guerra mundial.
[2] “Dona de Casa da Suábia” é a figura ideológica que representa uma forma quase frugal de administração económica do lar. Significa gastar apenas o que se tem, sem contrair dívidas. Essa figura ideológica é regularmente apresentada na imprensa alemã como modelo para o manejo do orçamento público.