Desde que publicamos o Manifesto contra o trabalho, há quase 20 anos, a crise fundamental do capitalismo não apenas se intensificou rapidamente do ponto de vista econômico, mas está questionando cada vez mais a própria existência da sociedade da mercadoria como um todo. A destruição dos fundamentos naturais da vida avança desenfreada, a fratura social do mundo atinge dimensões dramáticas e, no plano político, assistimos a um retorno assustador das identidades coletivas, juntamente com o ressurgimento de partidos e movimentos nacionalistas, de extrema-direita e populistas de esquerda. Não é surpreendente que a exaltação quase religiosa do trabalho não tenha sofrido com isso, uma vez que ela expõe um elemento constitutivo da subjetividade moderna e indica a posição central do trabalho na sociedade capitalista. No entanto, a orientação da ideologia do trabalho modificou-se em muitos aspectos desde a década de 1990. Naquela época, o ponto central era a celebração interminável da motivação individual de desempenho, conforme o lema neoliberal segundo o qual cada um era responsável pela própria sorte. Desde então, a invocação do trabalho deslocou-se cada vez mais para o centro da construção de identidade coletiva, flanqueando ideologicamente a delimitação nacionalista e a exclusão racista. Soma-se a isso a bem conhecida oposição com conotação antissemita entre o “trabalho honesto” e o “capital financeiro parasitário”, que experimentou um renascimento no decorrer do processo ininterrupto de crise. Não há novidade. Já na década de 1990, esses momentos ideológicos e identitários foram misturados no fetichismo do trabalho então dominado pelo neoliberalismo; isso já foi abordado no Manifesto. Mas eles estão moldando cada vez mais o discurso do trabalho.
A crítica ao trabalho continua, portanto, tão atual como sempre foi. Nos últimos vinte anos, no entanto, não só a crise social se tornou mais aguda, como também prosseguiu o desenvolvimento teórico da crítica do valor. Com instrumentos conceituais afiados, estamos agora em condição de analisar o processo de crise de forma mais precisa em muitos aspectos, não só nas suas dimensões econômica e política, mas também nas dimensões subjetiva e ideológica. É impossível descrevê-los em detalhe aqui, mas pelo menos alguns aspectos importantes devem ser esboçados brevemente. Aqueles que desejam ir adiante podem consultar os textos nas notas finais[1].
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Comecemos com algumas observações sobre o desenvolvimento econômico no sentido mais restrito. Olhando para os dados empíricos puros, talvez pareça exagerada a frase do Manifesto: “A venda da mercadoria força de trabalho será no século XXI tão promissora como foi no século XX a venda de diligências”.[2] Mas a afirmação central da teoria da crise segundo a qual a Terceira Revolução Industrial levou a um deslocamento absoluto do trabalho vivo da produção de valor e iniciou uma crise fundamental de valorização do capital, permanece válida sem reservas. É verdade que a procura de força de trabalho à escala global não entrou em colapso tão maciçamente como a frase citada sugere; em algumas regiões em boom, sobretudo na China e no Sudeste Asiático, nesse meio tempo foram até criados em massa novos postos de trabalho. Isso, no entanto, não refuta a afirmação de que a base para a valorização do capital tem se tornado cada vez mais estreita. Pois o enorme crescimento econômico nessas regiões, assim como em alguns centros capitalistas, deve-se em grande parte à gigantesca acumulação de capital fictício nos mercados financeiros transnacionais, que tem mantido em marcha a dinâmica econômica mundial durante várias décadas. Ele é, portanto, expressão e efeito do adiamento da crise iniciado com a revolução neoliberal na década de 1980, com base no mercado financeiro.
Embora o Manifesto já abordasse esse adiamento da crise por meio do capital fictício, é preciso dizer, em retrospectiva, que então não entendíamos suficientemente sua dinâmica interna e lógica de movimento e, portanto, também avaliamos de maneira equivocada suas dimensões e horizonte temporal. Assumimos que a “simulação do capitalismo de cassino da sociedade do trabalho”, como a chamávamos então, logo alcançaria seus limites. Essa avaliação não estava correta. Mesmo a grande quebra dos mercados financeiros globais de 2008, que sem dúvida representou uma ruptura qualitativa no longo processo de crise e empurrou a economia global para a beira do abismo, pode ser absorvida mais uma vez. Com imensos programas de salvamento econômico e bancário e uma política monetária extremamente expansiva, os governos e os bancos centrais conseguiram reativar a acumulação impulsionada pelos mercados financeiros – no entanto, os custos para muitos países, especialmente no sul da Europa, foram enormes.
O fato de, há cerca de vinte anos, termos avaliado o curso da crise dessa forma, especialmente nas suas dimensões temporais, deveu-se principalmente a razões inerentes à teoria. Comparada com a clareza categorial com que nos anos 1980 e 1990 analisamos a crise de valorização do valor, a nossa análise do capital fictício manteve-se inicialmente deficitária. Embora tenhamos retomado esse termo interpretando-o em oposição ao marxismo tradicional, este último só conhece basicamente a acumulação de capital baseada na extração de mais-valia, de modo que o capital fictício desempenha, no máximo, um papel secundário em suas análises. Ao contrário, já desde a década de 1980 insistíamos que o capital fictício tinha substituído a valorização do valor como força motriz da acumulação de capital, dando assim aos eventos do mercado financeiro um significado próprio no processo de acumulação. No entanto, a diferença fundamental entre a formação do capital fictício e a acumulação de capital baseada na valorização do valor foi estabelecida de tal forma que a ruptura ficou no meio do caminho.[3]
Em essência, reduzimos a dinâmica do capital fictício ao amontoamento de montanhas de dívida crescentes, sobretudo a dívida pública, com a ajuda da qual a acumulação de capital seria “simulada” e “o ídolo do trabalho”, como afirma o Manifesto, receberia uma “respiração artificial”.
Na nossa visão de então, a acumulação nos mercados financeiros tinha basicamente um mero caráter de aparência – ao contrário da “acumulação autêntica” através da utilização de força de trabalho – e, por isso, parecia lógico que muito rapidamente ela atingiria os seus limites. Isso também levou a que só pudéssemos fazer afirmações muito gerais e inconcretas sobre a dinâmica do mercado financeiro e sua lógica interna, bem como sobre os seus efeitos sociais. No entanto, considerando apenas a longa duração da era do capital fictício, aquilo era extremamente insatisfatório e apontava uma fraqueza da análise teórica.
É por isso que mais recentemente concentramos progressivamente a nossa atenção na análise da história interna da era do capital fictício. Isto, no entanto, exigiu uma precisão do conceito de capital fictício e um instrumental categorial correspondente, com o qual se possa compreender a multiplicação do capital fictício como uma forma específica de acumulação de capital. Em primeiro lugar, tinha de ser explicado em que se baseia o potencial de acumulação específico do capital fictício, que de modo algum é meramente “aparente”, e, em segundo lugar, de que resultam os limites internos dessa forma específica de acumulação de capital e como eles são alcançados.
Há alguns anos, Ernst Lohoff deu esse passo teórico no livro A Grande Desvalorização e, continuando as reflexões fragmentárias de Karl Marx sobre o capital portador de juros do terceiro volume d’O Capital, desenvolveu uma crítica específica da economia política da formação do capital fictício.[4] O ponto de partida é a observação de Marx de que a concessão de um crédito ou a emissão de ações dá ao capital monetário transferido, por um período de tempo limitado, uma dupla existência. Ao lado da soma original de dinheiro, pelo prazo do crédito ou a duração da ação, entra a reivindicação monetária de quem cedeu o dinheiro. Se essa reivindicação monetária tiver uma forma transferível, ou seja, a forma de um título financeiro, então ela mesma pode ser negociada como mercadoria, e essa duplicação equivale a uma forma específica de acumulação de capital – pois a imagem espelhada do capital inicial, na forma do título financeiro correspondente, representa tanto uma parte da riqueza total capitalista como o próprio capital original. É esse estranho mecanismo que constitui a base da acumulação global de capital no capitalismo contemporâneo. Enquanto a massa de reivindicações monetárias negociáveis como mercadorias aumenta cada vez mais rapidamente, o sistema de riqueza abstrata como um todo permanece em um curso de expansão.
No entanto, o predomínio da acumulação na indústria financeira não dissocia completamente o processo de acumulação da economia real. À sua maneira, também a formação de capital na indústria financeira permanece sempre relacionada com variáveis da economia real. Ela não pressupõe qualquer exploração que já tenha ocorrido, isto é, produção passada de mais-valia, mas capitaliza expectativas de lucro no futuro. Em outras palavras, representa a acumulação de valor a ser produzido no futuro. Como tal, no entanto, depende de expectativas e esperanças de futuros aumentos de lucro nos mercados de bens ou, em todo o caso, em determinados mercados de bens. Cada boom imobiliário é baseado na perspectiva de aumento dos preços dos imóveis, e cada alta na Bolsa recebe a sua dinâmica a partir da esperança de lucros empresariais futuros.
Esta dependência de portadores de esperanças na economia real, à qual se referem as expectativas de lucro, explica a propensão particular da era do capital fictício à crise. Sempre que tais expectativas se revelam ilusórias e rebentam bolhas especulativas, o capital fictício acumulado perde subitamente a sua validade e fica paralisada a formação de novo capital fictício. Como aconteceu recentemente na crise global de 2008, ameaça então uma espiral econômica descendente na qual se manifesta o processo de crise fundamental, encoberto pelo inchaço da superestrutura financeira. Só há uma forma de evitá-lo: criando novas quantidades ainda maiores de capital fictício, cuja acumulação é alimentada por expectativas de lucro em outros campos da economia real. Mas quanto mais durar a época do capital fictício, mais difícil será abrir esses novos campos de portadores de esperança na economia real, enquanto, ao mesmo tempo, as reivindicações de valor futuro, que na verdade já não podem ser resgatadas, continuam a se empilhar cada vez mais. Aqui se encontra a barreira interna do capitalismo sustentado pela acumulação da indústria financeira.
Com o crash financeiro de 2008, essa barreira interna foi atingida. Só a intervenção maciça e coordenada dos governos e bancos centrais mais importantes impediu que a economia global caísse em uma espiral descendente de enormes proporções. Desde então, a acumulação de capital fictício tem sido mantida essencialmente pelas políticas dos bancos centrais, que canalizam gratuitamente enormes quantidades de dinheiro para os mercados financeiros e financiam diretamente os governos, em boa medida através da compra em massa de títulos públicos. Embora continue a ocorrer uma acumulação de capital fictício privado (isto é, não estatal), referidos a determinados portadores de esperança na economia real (imóveis, inteligência artificial, eletromobilidade, etc.), este já não está no centro da dinâmica dos mercados financeiros, mas depende em grande parte das transferências monetárias dos bancos centrais.[5]
Se agora entendermos a acumulação de capital fictício já não apenas como “acumulação aparente”, mas como uma forma específica de acumulação que segue suas próprias leis (e possui suas próprias barreiras internas), então também podemos mostrar mais detalhadamente que consequências isso acarreta para a categoria trabalho – e, portanto, para a massa de pessoas que dependem da venda da sua força de trabalho. Em primeiro lugar, emerge que o trabalho, do ponto de vista econômico, sofre uma perda fundamental de sentido quando o capital já não aumenta essencialmente por meio da utilização da força de trabalho, antes se referindo diretamente a si próprio.
Na época do capitalismo clássico, que se baseava na valorização do valor e caminhou para o fim com a crise do fordismo nos anos 1970, a força de trabalho era a mercadoria básica da acumulação de capital. Porque consiste na única mercadoria cujo valor de uso produz valor e mais-valia. Para o vendedor da força de trabalho, essa posição especial implicava, por um lado, ter de se colocar todos os dias a serviço do capital e se sujeitar às coações da produção de valor; por outro lado, também lhes dava um poder de negociação relativamente forte na oposição ao capital, o que lhes permitia, pelo menos nos centros capitalistas, impor melhorias significativas nos salários, nas condições de trabalho e na proteção social. Além disso, as condições específicas de produção do trabalho em massa padronizado, especialmente na época do fordismo, favoreciam a ampla organização sindical.
A Terceira Revolução Industrial, no entanto, pôs um fim nessa constelação e enfraqueceu fundamentalmente a posição social da mercadoria força de trabalho. Com as novas tecnologias de informação e comunicação, o conhecimento – para ser mais preciso: a aplicação do conhecimento à produção – tornou-se a principal força produtiva e, assim, o trabalho, que até então ocupava essa posição, foi empurrado para fora do seu trono. Ao mesmo tempo, as novas tecnologias da informação e das telecomunicações constituíram também uma pré-condição importante para o surgimento da nova divisão transnacional do trabalho, que permitiu às empresas aproveitar de modo sistemático as disparidades globais em termos de regulamentação ambiental, dos salários e do trabalho, de impostos etc., a fim de reduzir seus custos de produção. Isso não só debilitou ainda mais o poder de negociação dos vendedores da força de trabalho, mas também modificou a relação entre economia e política.[6] Enquanto o capital atuava cada vez mais globalmente e se orientava diretamente para o mercado mundial, a política permaneceu essencialmente restrita ao quadro nacional-estatal, perdendo assim uma parte significativa do seu já sempre limitado espaço de manobra e de ação. Na sequência, os Estados se transformaram em capatazes da hegemonia neoliberal, usando de todos os meios disponíveis para tornar “sua localização” atraente para o capital, a fim de se manter na concorrência global.
Na perspectiva usual da esquerda, a ampla degradação do trabalho e o enfraquecimento dos Estados nacionais resultam da hegemonia neoliberal executada com sucesso por frações influentes do capital, grupos de poder e elites globais, em uma espécie de “luta de classes a partir de cima”. É verdade que o neoliberalismo há muito tinha sido preparado ideológica e politicamente em bem organizados think tanks, mas é claro que ele só se tornou hegemônico porque a crise dos anos 1970 e 1980 já não podia ser resolvida pelos métodos keynesianos. Há uma razão estrutural para isso: o keynesianismo teve os seus fundamentos quebrados com o fim do boom fordista, e nas condições da Terceira Revolução Industrial, mesmo com tantos programas de conjuntura estatais, a dinâmica de valorização não podia mais ser colocada em movimento. Portanto, o campo estava preparado para o neoliberalismo, que prometia impulsionar novamente a produção e superar a crise.[7]
É claro que o neoliberalismo – mesmo com as medidas brutais de desregulamentação dos mercados, a precarização das condições de trabalho, cortes sociais drásticos, bem como a privatização de serviços públicos e infraestrutura – também não teve sucesso em superar a crise da valorização do capital. Nas décadas de 1980 e 1990 assistirmos, de fato, a um novo impulso da economia mundial, mas a razão para isso não foram, como proclamou a ideologia neoliberal, estruturas de produção supostamente mais eficientes; isso é desmentido pelo fato de que nos países pioneiros do neoliberalismo, os EUA e a Grã-Bretanha, a estrutura industrial foi largamente destruída. Pelo contrário, a renovação do dinamismo econômico baseou-se fundamentalmente na acumulação de capital fictício, o que, por sua vez, foi propiciada pela política neoliberal de desregulamentação e abertura dos mercados financeiros. Por isso o neoliberalismo não é de modo algum a causa da crise capitalista, como reivindica um preconceito muito comum, mas, pelo contrário, ele a protelou, abrindo a um novo campo para o capital, no qual ele pôde se acumular por várias décadas. Os custos sociais, no entanto, foram e são devastadores.
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A ideologia do trabalho desempenhou um papel importante na implementação da revolução neoliberal e na época em que ela iniciou. Ao contrário do fordismo, em que a identificação com a compulsão geral ao trabalho acompanhava a monotonia do trabalho em massa padronizado e seus traços coletivistas, uma ética de desempenho individual foi agora trazida à tona. Do ponto de vista neoliberal, a desregulamentação das relações de trabalho e a destruição do Estado social foram vistos como uma vitória dos motivados sobre os “preguiçosos”, que supostamente descansavam na “rede social” à custa da sociedade. Assim, o desemprego em massa descontrolado e o fato de o capitalismo, no nível de produtividade disponível, produzir cada vez mais “pessoas supérfluas” podiam ser reduzidos a um problema de falta de vontade individual de prestar serviço. Também o rápido crescimento das diferenças de renda e de riqueza poderia ser justificado desta forma, uma vez que a renda elevada era considerada a recompensa adequada para uma motivação correspondente. É claro que o caráter manifestamente circular dessa figura ideológica, segundo a qual o rendimento prova o quanto alguém conseguiu, ao mesmo tempo em que isto só deveria ser o resultado desse desempenho determinado, não perturbou evidentemente o açoite do mercado neoliberal. A ideologia do neoliberalismo é, pois, basicamente um sistema fechado e enlouquecido que reinterpreta as contradições internas do sistema capitalista como relações individuais de vontade.
Em uma observação mais atenta, a ideologia neoliberal do desempenho revela muito sobre a relação entre trabalho e capital na era do capital fictício. Uma vez que o trabalho aqui não constitui mais o motor da acumulação de capital, mas se tornou, por sua vez, a variável dependente do capital fictício, o conteúdo material praticamente já não desempenha qualquer papel. Trata-se apenas do simples desempenho inteiramente sem conteúdo, que também é medido pelo resultado monetário puro. O estúpido orgulho do produtor foi desse modo substituído pelo orgulho estúpido de uma conta bancária gorda e símbolos idiotas de status de sucesso ou de sucesso simulado. O pré-requisito para isso, no entanto, era que uma parte considerável da população, apesar de todas as imposições e ajustamentos que sofriam, ainda participasse da dinâmica do capital fictício e pudesse convencer a si mesma de que estaria entre os ganhadores no futuro.
No entanto, essa ficção rebentou o mais tardar com a crise financeira de 2008, que revelou dolorosamente a total dependência da sociedade em geral e do trabalho em particular à dinâmica do capital fictício. A grande narrativa (neo) liberal, segundo a qual todos poderiam alcançar a prosperidade individual se fossem suficientemente esforçados, perdeu sua hegemonia social.
Não surpreende que as ondas de choque da crise não tenham de modo algum abalado, em primeiro lugar, o mundo e a autoimagem das partes da população que já tinham sido socialmente excluídas, e para as quais a afirmação de que o desempenho valia a pena soava há muito tempo como puro escárnio, mas sobretudo aqueles que pensavam ter chegado ao lado vencedor ou que ainda eram capazes de fazê-lo. Pois eles se viam agora traídos em suas esperanças lamentáveis e, de repente, sentiam como uma ofensa grave o fato de que, como vendedores da força de trabalho para o capital, terem de ser meros apêndices incômodos que já nem sequer eram úteis para o fim em si mesmo da acumulação. Mas a maioria deles não transformou esse questionamento de sua identidade como sujeitos de trabalho e de desempenho em crítica, mas em ressentimento antissemita contra “os especuladores gananciosos e banqueiros”, a quem eles opõem o fantasma do “trabalho honesto”. Isto foi acompanhado pelo ódio projetivo contra imigrantes em geral e, particularmente, contra refugiados, que, enquanto encarnações do “supérfluo” capitalista, representam o pânico ante o próprio declínio social e devem, portanto, ser ainda mais implacavelmente removidos do campo de visão e, se possível, de todo o país.
Pertence a essa lógica que a referência regressiva a uma há muito superada identidade do trabalho seja combinada com um renascimento não menos regressivo das identidades coletivas nacionalistas. Para além do trabalho, a nação é também considerada pelas pessoas formatadas capitalisticamente como uma espécie de garantida razão de existência supra-histórica, independentemente de se tratar de uma invenção do século XIX. Mas também aqui a realidade é sempre percebida pelo filtro do pensamento fetiche. Por isso, trabalho e nação formam um par de certezas aparentemente concretas, às quais os sujeitos da mercadoria sempre se referem de forma identitária em tempos de crise para se protegerem contra as ameaças da dinâmica capitalista. Estas, por outro lado, aparecem como uma força estranha, abstrata e externa que ameaça um modo de vida aparentemente eterno como besta de carga nacionalmente limitada. Nem sempre essa ilusão se transforma na conhecida ideia fixa de que por trás de tudo há uma “conspiração mundial judaica”, embora o terreno esteja preparado para esse topos antissemita. Em todo o caso, resulta daí a defesa da identidade baseada no trabalho e na nação contra a ameaça das “forças estrangeiras” e o “globalismo” desencadeado pelas “elites neoliberais”, bem como contra a erosão imaginada, causada pela imigração em massa de “elementos estranhos à cultura”. Ambas as fantasias se complementam e, nessa visão paranoica do mundo, não é, naturalmente, difícil reuni-las, por exemplo, afirmando que os grandes movimentos de refugiados para a Europa são controlados por “grupos de poder judaicos”, a fim de destruir as nações europeias a partir de dentro.
Muitos na esquerda estão completamente impotentes diante dessa confusão de delírios porque compartilham elementos centrais dessa mesma visão de mundo. Isso é mais evidente em populistas de esquerda como Wagenknecht, Corbin ou Mélenchon, que estão aderindo ao programa de restauração do capitalismo regulado estatalmente e baseado no trabalho em massa, o que exige um reforço dos Estados nacionais. Além do fato de que esta é uma idéia completamente fantástica, é preciso olhar mais de perto para ver as vagas linhas de demarcação que distinguem esta esquerda da nova e da velha direita.[8] Mas mesmo além dessas posições abertamente nacionalistas, a crítica do capitalismo de muitos na esquerda ainda se reduz com muita frequência à denúncia do poder do capital financeiro, dos bancos e das corporações globais, que vivem à custa das grandes maiorias. A extrema polarização da distribuição global da riqueza, que nas últimas décadas assumiu proporções francamente obscenas, é tematizada como se “o povo” (ou como se costuma chamar: “os 99%”) estivesse de algum modo fora do capitalismo e fosse apenas externamente oprimido, dominado e explorado por uma minoria global, mas poderosa (os 1%).
Isto, evidentemente, desloca completamente o fato de que a maior dificuldade da emancipação social consiste justamente em romper com a formatação capitalista dos próprios sujeitos e superar o modo de vida da sociedade da mercadoria no qual eles estão fixados.[9] A crítica do trabalho continua central, porque se dirige tanto contra a forma de fetiche principal da sociedade produtora de mercadorias, quanto contra as identidades nela baseadas; não só contra a identidade do trabalho enquanto tal, mas também contra a identidade do “homem trabalhador”[10] e “de alto desempenho” branco-ocidental, cujo mundo é remodelado em conformidade com o seu gosto e ao preço da sua destruição, bem como contra as identidades nacionais sempre associadas à fantasia do “trabalho honesto”. A crítica do trabalho visa nada menos do que a criação de uma sociedade em que as pessoas disponham livremente das suas relações sociais, ao invés de serem dominadas por elas na forma de coações objetivadas. Uma sociedade em que as pessoas já não estejam sujeitas à coação do trabalho apenas para poder tomar parte na riqueza social das mercadorias, mas em que todos e cada um possa agir de acordo com as suas necessidades e capacidades. Em outras palavras, visa à apropriação do contexto social por indivíduos livremente associados na forma de uma auto-organização social geral. Nesse sentido, o Manifesto contra o trabalho continua tão relevante quanto há vinte anos.
Tradução ao português: Marcos Barreira e Javier Blank
[1] Para mais detalhes sobre o desenvolvimento da crítica do valor: Ernst Lohoff e Norbert Trenkle: “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social”. Conversa com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica do valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social, www.krisis.org 2008
[2] Ernst Lohoff: Auf Selbstzerstörung programmiert, Krisis 2/ 2013.
[3] Ernst Lohoff, Dois livros – dois pontos de vista
[4] Ernst Lohoff/Norbert Trenkle: Die große Entwertung, Münster 2012, S.110 ff; Ernst Lohoff, Acumulaçao de Capital sem acumulação de valor, disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor/]
[5] Ernst Lohoff, Die letzten Tage des Weltkapitals. Kapitalakkumulation und Politik im Zeitalter des fiktiven Kapitals, Krisis 5/2016.
[6] Norbert Trenkle, Workout. Die Krise der Arbeit und die Grenzen der kapitalistischen Gesellschaft. [Workout. A crise do trabalho e os limites da sociedade capitalista]. Palestra de abertura na conferência internacional “Repensando o futuro do trabalho”, 27 a 28 de abril de 2018 – Instituto de Pesquisa ICUB da Universidade de Bucareste. https://www.youtube.com/watch?v=Y6e_UzCuy9k
[7] Ernst Lohoff, Die letzten Tage des Weltkapitals. Kapitalakkumulation und Politik im Zeitalter des fiktiven Kapitals, Krisis 5/2016.
[8] Norbert Trenkle: Vorwärts in die Regression, in: Merlin Wolf (Hg): Irrwege der Kapitalismuskritik, Aschaffenburg 2017.
[9] Ernst Lohoff: Die Verzauberung der Welt, in: Krisis 29, Münster 2005; Karl-Heinz Lewed: Schopenhauer on the rocks, in: Krisis 29, Münster 2005; Ernst Lohoff: Ohne festen Punkt, in: Krisis 30, Münster 2006; Peter Samol, All the Lonely People. Narzissmus als adäquate Subjektform des Kapitalismus, Krisis 4/2016.
[10] Norbert Trenkle: Aufstieg und Fall des Arbeitsmanns, in Exner, Andreas et.al. (Hg.): Grundeinkommen, Wien 2007 [Norbert Trenkle, Ascensão e queda do homem trabalhador, disponível em: http://www.krisis.org/2015/ascenso-e-queda-do-homem-trabalhador/]