31.12.1998 

O mercado absurdo dos homens sem qualidades

Apresentação do Livro de Roberto Kurz “Os Últimos Combates” 4ª Edição 1998 Editora Vozes, Brasil

Anselm Jappe*

O capitalismo está chegando ao fim. A prova: a queda da União Soviética. A base desta análise: a “obscura” crítica do “valor” de um tal de Karl Marx. Será que a luta de classes e a luta pela democracia derrotarão o capitalismo? A luta de classes não foi outra coisa senão o motor do desenvolvimento capitalista e jamais poderá levar à sua superação. A democracia não é o antagonista do capitalismo mas sua forma política, e ambos esgotaram seu papel histórico. A queda dos regimes do Leste não significa o triunfo definitivo da economia de mercado, mas um passo ulterior em direcção ao ocaso da sociedade mundial da mercadoria.

Estas, entre outras, as teses mais ousadas de Robert Kurz e do grupo que com ele publica na Alemanha a revista Krisis. Trata-se, talvez, do início de uma verdadeira revolução teórica: assim, confrontar-se com as ideias deste grupo será muito fértil para todos aqueles que não consideram esta sociedade a última palavra da história, e que não estão satisfeitos com uma crítica que se limita a arrastar exaustivamente conceitos cada vez mais claramente superados. Partindo da intenção de renovar a teoria marxista, Kurz e seus amigos embarcaram numa verdadeira aventura da reflexão, e, neste percurso, acabaram por abandonar muitas das veneráveis certezas da esquerda. Entretanto, ao contrário de outras tentativas de revisão da teoria marxista, aqui não se trata de “realismo” ou de reformismo, mas de uma nova colocação da crítica radical.

O trabalho mais estritamente teórico é desenvolvido em conjunto nos, até agora, vinte volumosos números da revista Krisis (anteriormente chamada de Marxistische Kritik) publicados a partir de 1986. Robert Kurz, em livros, artigos, conferências e debates apresenta a um público mais amplo diversas análises da actual crise económica e política. Através dos vinte mil exemplares vendidos de O Colapso da Modernização(1) (Der Kollaps der Modernisierunng), publicado em 1991 por H.M. Enzensberger, as teorias da Krisis começaram a ser mais amplamente conhecidas na Alemanha (2) (muitas vezes, os que se mostraram mais receptivos em relação às colocações da Krisis foram pessoas de procedência não estritamente marxista).

O ponto de partida de suas análises são os conceitos marxianos de “fetichismo” e de “valor” enquanto descrevem a transformação da actividade humana concreta em algo tão abstracto e puramente quantitativo como o valor de troca, encarnado na mercadoria e no dinheiro. O “fetichismo” não é, portanto, somente uma ilusão ou um fenómeno da consciência, mas uma realidade: a autonomização da mercadoria que segue apenas suas próprias leis de desenvolvimento. “Por trás” da processualidade cega e auto-referencial do valor não há nenhum sujeito que “faz” a História. Mas, diferentemente do estruturalismo, a Krisis não acredita que o processo sem sujeito seja uma lei fundamental e imutável da existência, antes o concebe como um estágio histórico necessário, porém transitório.

Em Krisis 13, Ernst Lohoff diz: “A atitude contemplativa e afirmativa através da qual Hegel faz se desenvolver a realidade a partir do conceito de Ser é totalmente alheia à descrição marxiana (do valor). Em Marx, o valor não pode conter a realidade mas a subordina à sua própria forma e a destrói, destruindo, no acto, a si mesmo. A crítica marxiana do valor não aceita o valor como um dado de base positivo, nem o defende, mas decifra sua existência auto-suficiente como aparência. A realização em grande escala da mediação da forma mercadoria não leva ao triunfo definitivo desta e sim coincide com sua crise.” Em outras palavras: o “valor” já contém em sua forma essencial (descrita no primeiro capítulo de O Capital) uma contradição insolúvel que conduz, inexoravelmente, ainda que isso leve muito tempo, à sua crise final. Esta crise está começando diante de nossos olhos.

Uma consequência notável do reconhecimento da lógica do valor como o centro de todas as crises é a crítica do sociologismo e das ilusões a respeito no sujeito. O desenvolvimento do capitalismo, com a dissolução de todas as qualidades que pareciam indissoluvelmente ligadas às pessoas, tende a desvincular funções como ser operário ou ser dirigente dos indivíduos empíricos: e a Krisis acusa de sociologismo a toda a esquerda que considera os sujeitos colectivos como a burguesia e o proletariado, com seus interesses e sua avidez de lucro como actores em um sistema de que são somente uma engrenagem. Em lugar de pretender desmascarar os verdadeiros interesses que se escondem por trás dos imperativos tecnológicos ou de mercado, a Krisis denuncia como a raiz do mal a existência desses imperativos, observando que actualmente não há nenhuma proposta que vá além de outra fórmula de distribuição quantitativa ou da reivindicação de mais “justiça” Isso, no entanto, é completamente inútil: pedir preços justos (por exemplo, para o Terceiro Mundo) é tão insensato quanto pedir uma pressão atmosférica justa, pois significa dirigir-se como se fosse a um sujeito a algo que não é um sujeito. O verdadeiro escândalo é a transformação de um objecto concreto em uma unidade de trabalho abstracto e então em dinheiro.

Assim o “adeus ao proletariado” chega a ser definitivo: como grupo social baseado em condições idênticas de trabalho, de vida, de cultura e de consciência, o proletariado não foi nada mais do que o principal produto do capitalismo, se não um resíduo feudal. Com sua luta por integrar-se plenamente à sociedade capitalista, o proletariado na verdade a tem ajudado a avançar e a alcançar sua realização plena. O movimento operário e suas ideologias não foram além do horizonte da sociedade do valor, tendo sido um elemento central na transformação dos indivíduos em meras mônadas, em partículas formalmente iguais e livres.

Deste ponto de vista, as supostas revoluções dos países do Leste e do Terceiro Mundo, mas também o fascismo e o nazismo, podem ser interpretados como processes tardios de modernização e como tentativas de restruturação acelerada de tais países segundo as exigências impostas pela mercadoria. A Krisis não só inclui nesse juízo todo o marxismo, mesmo suas correntes críticas, mas também estabelece uma distinção no interior da teoria do próprio Marx: o conceito de luta de classes era, no fundo, uma teoria da libertação do capitalismo de seus resíduos pré-capitalistas, ao passo que é na teoria do valor e do fetichismo que Marx antecipou uma crítica que somente hoje adquire plena actualidade.

É inútil exigir mais democracia: a democracia, entendida como igualdade e liberdade formais, já se realizou e coincide com a sociedade dos homens sem qualidades. Assim como a mercadoria, todos os cidadãos são medidos pelo mesmo parâmetro: são parcelas quantitativas de uma mesma abstracção. E portanto, para a mercadoria e consequentemente para a democracia capitalista, é impossível que todas as parcelas sejam iguais. A tarefa hoje não é a realização da verdadeira democracia, sempre deformada pelo capitalismo, mas a superação de ambos. Para a Krisis, é inútil opor os ideais da Ilustração burguesa, como a igualdade e a liberdade, à sua má-realização, uma vez que reconhece já nestes ideais uma estrutura criada pela mercadoria: o valor é sempre a um só tempo forma de consciência, de produção e de reprodução.

O movimento operário sempre confundiu o capitalismo com algo que era apenas uma determinada etapa de sua evolução. As lutas de classe eram conflitos de interesses que se desenvolviam sempre no horizonte da sociedade da mercadoria, sem pô-la em questão. Não poderia ser de outra maneira: o capitalismo estava ainda em uma fase ascendente, e não tinha ainda desenvolvido todas as suas possibilidades, que representariam um progresso efectivo se comparadas com os estágios pré-capitalistas. Se o fordismo marcava seu apogeu, é com a informatização que este desenvolvimento entra definitivamente em crise, e não apenas em um aspecto particular, mas em um aspecto central, que é a contradição insustentável entre o conteúdo material da produção e a forma imposta pelo valor.

Esta análise permitiu à Krisis antecipar a actual crise económica mundial e estar entre os primeiros a argumentar que a reunificação das Alemanhas só poderia conduzir a um desastre. A União Soviética, afirma a Krisis, estava plenamente integrada ao sistema mundial da mercadoria, mas não conseguiu resistir mais à concorrência do mercado mundial por causa da petrificação das mesmas estruturas de dirigismo graças às quais havia inicialmente logrado situar-se entre os países adiantados, repetindo, em marcha forçada e sob direcção estatal, o mesmo processo de acumulação primitiva por que os países ocidentais haviam passado nos séculos anteriores, de forma mais lenta e portanto mais suave. Quando a consciência ocidental se horrorizava diante do “totalitarismo”, não via na verdade senão uma imagem concentrada de seu próprio passado.

A queda da União Soviética não demonstra a superioridade da economia de mercado da qual ela fazia parte, mas evidencia que esta é uma corrida cujo número restrito de participantes se reduz constantemente por causa da necessidade de um emprego cada vez maior de tecnologias para poder produzir a um custo competitivo, e que os excluídos acabam na miséria. A simultaneidade da crise económica e da ecológica, assim como a tendência a uma mesquinha guerra civil mundial, são consequências do facto de que as atuais capacidades produtivas, as mais elevadas que já existiram, têm que passar pelo buraco da agulha da forma abstracta do valor e da capacidade de transformar-se em dinheiro. Nenhuma estratégia que não aponte para a abolição deste estado de coisas poderá conseguir uma mudança real. A Krisis não alimenta portanto nenhuma esperança a respeito das diversas opções políticas que estão actualmente disponíveis no mercado.

Da tese de que até agora toda a história tem sido, mais do que a história da luta de classes, a história das relações fetichistas, segue-se que até agora não foi possível a formação de nenhum sujeito. Não existe nenhum pólo positivo “em si” – o proletariado, ou o Terceiro Mundo, as mulheres, ou a vida do indivíduo – que seja suficiente para levar a apropriar-se do mundo. Não se pode encontrar o sujeito no passado, mas pode ser que este nasça a partir da superação da “segunda natureza” em que se transformou a sociedade.

A tentativa de se ler a história como uma “história das relações fetichistas”, na qual o valor sucedeu à terra, ao parentesco sanguíneo e ao totemismo, enquanto formas na quais se expressava a potência humana inconsciente de si mesma, desemboca na afirmação de que esta pré-história da humanidade está chegando ao fim. Todas essas formas se converteram em segunda natureza, como instrumentos indispensáveis ao homem, para diferenciar-se da natureza primeira. Mas hoje em dia é possível, e até necessário, preceder a uma segunda humanização, desta vez consciente. Se são as relações fetichistas as que fizeram até agora a história e que criaram, juntamente com as relações de produção, também as formas de consciência correspondentes, então já não é mais necessário recorrer a sofisticadas teorias da “manipulação para explicar como as classes dominantes conseguiram impor à maioria, durante milénios, um sistema de exploração.

(*) O escritor Anselm Jappe é autor, entre outros livros, de um estudo sobre Guy Debord.

(1) Frankfurt: Eichborn Verlag, 1991. Há uma tradução brasileira: O Colapso da Modernização. Da Derrocada do Socialismo de Caserna à Crise da Economia Mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

(2) De Kurz vale ainda destacar Honeckers Rache (A Vingança de Honecker) 1991. O Retorno de Potemkin. São Paulo: Paz e Terra, 1993, ambos sobre a impossibilidade da reunificação alemã, e a colectânea de artigos Der Leizte Macht das Licht aus (O Último Apaga a Luz) de 1993, todos publicados pela Edition Tiamat, Berlin. Uma. série de artigos de Peter Klein sobre a Revolução de Outubro, publicados nos números 3 e 6 da Krisis, foram colectados em livro com o título de Die Illusion von 1917. Unkel: Ed. Horlemann, 1992. Um volume colectivo sobre a democracia e seus extremistas de direita foi publicado com o título de Rosemaries Babies. Unkel: Ed. Horlemann, 1993.