31.12.1999 

O Passado e o Presente da Teoria (de Debord)

A crítica situacionista no contexto da sua época*

Anselm Jappe

É interessante examinar o lugar da crítica situacionista no interior do pensamento francês moderno, marxista ou não. Ver-se-á o quanto a posição situacionista ia “contra a corrente” na década de 60 mas, também, o quanto estava objectivamente próxima de outras correntes de pensamento.

O marxismo francês sempre apresentou características muito particulares. Antes de tudo, é necessário lembrar que, na França, o pensamento socialista foi menos marxista que em outros lugares, em proveito de autores como Proudhon e Fourier. E mesmo nos aspectos em que se prevalecia do marxismo, houve duas tendências que, de facto, nunca se encontraram: de um lado, um “marxismo” de uso “popular”, reduzido ao mínimo e abundantemente “pedagogizado”, que o PCF oferecia como um catecismo aos seus adeptos. De outro lado tornou-se, a cada geração, um marxismo dos intelectuais, refinado até a “sofisticação barroca” (l) e que, invariavelmente, tendia a misturar Marx com mil outros autores e a lê-lo através de óculos emprestados alhures. “Antes de ser assimilado de facto, Marx foi hegelianizado, kierkegaardizado, abundantemente heideggerianizado, em resumo, “revisado” (2). Os resultados insatisfatórios dessas elaborações e o facto de, em geral, seus representantes serem pensadores a soldo do Estado, na universidade ou noutros lugares, levava com frequência o “marxismo crítico” a tornar-se rapidamente uma crítica feita ao próprio Marx e, no fim, uma condenação em relação a ele. Uma espécie de campeão e precursor de tal tendência foi a revista Arguments (3) – alvo privilegiado do desprezo situacionista -que fez essa trajectória durante os poucos anos de sua existência (1957-1962); no entanto, realizou um útil trabalho de traduções – de que os próprios situacionistas se serviram amplamente -apresentando ao público francês, pela primeira vez, autores como o jovem Lukács, Korsch, Marcuse, Reich e Adorno. Na sequência, os autores de Socialisme ou Barbarie tomaram o mesmo caminho de Arguments e, como se sabe, depois de 68 os “marxistas” apóstatas tornaram-se um fenómeno de massa (4).

O marxismo francês sempre privilegiou alguns aspectos da obra de Marx em detrimento de outros. Amiúde, preferia o jovem Marx, crítico da “alienação da essência humana”, ao Marx da crítica da economia política; ou então, opunha da forma mais absoluta o “Marx da maturidade” ao jovem Marx. Quando falava de alienação, esta era separada da crítica da economia política, ou até mesmo oposta a ela. Em geral, os intelectuais marxistas franceses preferiam limitar-se à esfera social e à “superestrutura”. Suas análises quase sempre conservavam um carácter abstracto e filosófico, com ênfases éticas ou estéticas, e isto vale para autores tão diferentes entre si quanto Sartre, Lefebvre e Althusser. Na origem, havia um equívoco importante que, em muitos meios, persiste até hoje: a recusa do determinismo economicista, identificado com o estalinismo (5), levava a confundir a constatação do carácter determinista do capitalismo com sua aprovação. Mas não se faz desaparecer o carácter fetichista da sociedade mercantil só com a afirmação de que “verdadeiramente” o sujeito, embora criado pela socialização capitalista, é independente ou de que a autonomização das “leis económicas” é uma pura aparência. O próprio Debord não escapa à ideia de se poder reduzir o automatismo do valor à acção consciente de sujeitos pressupostos. Para ele, a história é exclusivamente produzida por acções humanas conscientes: fala da “história, isto é, aqueles que a fazem ” (VS, 161) e afirma: ” A revolução de que se trata é uma forma das relações humanas” (VS, 72).

Nessa forma de “subjectivismo”, é possível reconhecer as raízes existencialistas da teoria situacionista. Se o pensamento de Debord é radicalmente distinto daquele que predomina na década de 60 – por volta de 68 tudo o que se acredita “moderno” é rigorosamente anti-hegeliano (6), mesmo quando se pretende marxista -, em contrapartida pertence, sob muitos aspectos, à geração filosófica que se afirmou nos anos 50. O marxismo humanista e historicista de Sartre apresenta mais de uma analogia com as ideias dos situacionistas, ainda que eles manifestem um extremo desprezo por esse pensador considerado um estalinista, um ecléctico ou simplesmente um “imbecil” (IS, 10/75). Os situacionistas, como Lefebvre antes deles, criticavam o existencialismo por partir do vivido tal como se apresenta e por identificá-lo com todo o horizonte possível do real. Mas é inegável que já se encontra em Sartre, ainda que em termos diferentes, os temas da “situação”, do “projecto”, do vivido e da práxis. A firme convicção de Sartre de que o homem cria na história seu próprio destino, a oposição que estabelece entre as “coisas” e os “homens”, ou seja, o papel central de um “sujeito” forte, encontram eco em Debord. Mesmo que não se possa falar de “influência” em sentido estrito, é difícil imaginar que Debord não tenha assimilado um certo clima cultural predominante na sua juventude, como seria inevitável. O próprio letrismo de Isou constituía, sob vários aspectos, uma ala extremista do movimento existencialista. Enfim, Socialisme ou Barbarie também tinha, de alguma forma, ligações com a fenomenologia (7).

Na França, a compreensão de Marx achava-se prejudicada por uma longa resistência a Hegel. Até 1930, este não tinha direito à existência no mundo intelectual francês e, quando aí entrou, foi como “existencialista”. Durante muito tempo, sua interpretação foi marcada pela leitura importante, mas muito particular, feita por A. Kojève. De modo geral, os hegelianos franceses não eram marxistas e, amiúde, os marxistas não eram hegelianos ou, até mesmo, eram explicitamente anti-hegelianos, como Althusser. A recuperação de Marx, ou pelo menos uma certa maneira de entendê-lo, assim como a de Freud ou Nietzsche na década de 60, era uma reacção ao predomínio de Hegel – ao lado de Husserl e Heidegger – durante as três décadas anteriores (8).

Debord está entre os poucos hegeliano-marxistas franceses; e sempre reivindicou esta descendência com especial orgulho. O essencial não decorre, realmente, do uso aqui e ali de citações hegelianas que pode, às vezes, lembrar a utilização refrescante, embora superficial, que delas fizeram os surrealistas. Sartre e também Debord – este por alguma via indirecta – sofreram a influência da interpretação de Hegel proposta por Kojève em seus célebres cursos da década de 30 (9). Kojève, mais do que a reconciliação final, enfatizava a luta e o aspecto trágico em Hegel. A interpretação de Kojève está centrada sobre o homem e sobre sua história, e desinteressa-se abertamente da natureza que ignora a diferença e o negativo. A energia para a acção humana é o desejo que se expressa como consciência de uma falta e de um negativo. Negando as coisas como dadas, o homem cria, e cria a verdade, porque também ela é um produto do agir histórico. O negativo e o nada, tão combatidos em filosofias como o neokantismo ou o bergsonianismo, eram revalorizados por Kojève e, no seu rasto, por Sartre que reconhecia na possibilidade de negar o mundo existente o fundamento da liberdade humana.

A relação de Debord, dos letristas e dos situacionistas com o negativo é complexa. Na década de 50, época em que a arte se torna particularmente repetitiva, estigmatizam o vazio e o nada da cultura burguesa, da qual o existencialismo seria um simples disfarce. Ridicularizam o “nada dialéctico de Merleau Ponty”, “um vazio que nem sequer procura dissimular-se” (Potl., 220). Se os letristas são dadaístas, não o são senão sob a forma de um “dadaísmo em positivo” (Potl., 43). De outro lado, atribuem uma grande importância à negação, isto é, à necessidade de destruir a ordem existente antes de reconstruir uma outra. A IS considerava um de seus sucessos o ter “sabido começar a fazer com que a parte subjectivamente negativa do processo”, o seu “lado ruim”, entendesse sua própria teoria desconhecida, e a própria IS pertencia a este “lado ruim ” (VS, 14-15). “O negativo vai até o fim com o positivo, do qual é a negação” (OCC, 145). É preciso lembrar que, nessa teoria, a destruição e o negativo são sempre entendidos no sentido hegeliano, isto é, como “negação da negação” e passagem ao estágio sucessivo.

Tal concepção se situa naturalmente nas antípodas da proclamação da “morte do homem”, da “história sem sujeito” e da particularização do motor da história nas “estruturas”. Debord vê no estruturalismo a principal ideologia apologética do espectáculo (Sde, § 196), porque nega a história e quer fixar as condições actuais da sociedade como estruturas imutáveis. Debord ridiculariza-o como “pensamento universitário de quadros médios” (Sde, § 201) e “pensamento garantido pelo Estado” (Sde, § 202). De modo mais geral, no estruturalismo – que não por acaso vê em Maio de 68 sua própria contestação, C. Lévi-Strauss exclamando que, a partir daí, a objectividade tinha sido rejeitada e que o estruturalismo “caiu de moda” (10) – e em outras teorias das décadas de 60 e 70, procurou-se demonstrar que a própria ideia de revolução era impossível, ilógica e ridícula. Pode-se ver nisso uma manifestação, no plano das ideias, da destruição efectiva de todas as bases sociais de uma possível revolução, “do sindicalismo aos jornais, da cidade aos livros” (Com., 107). Isso não contradiz em nada o facto de que, às vezes, o estruturalismo pretendia ser “crítico” e que a revista Tel Quel descobria, então, que existe um “isomorfismo” entre vanguardas estéticas e vanguardas políticas, dado que obras como as de Joyce ou Mallarmé demolem os “códigos burgueses” e são, pois, superiores a criações do género “realismo socialista” (11) – no qual, é necessário que se diga, os autores de tais descobertas tinham acreditado até alguns anos antes.

Durante um certo tempo, mais ou menos entre 1965 e 1975, o abandono da teoria marxista recorreu amplamente aos conceitos de “desejo” e de “imaginário” – basta evocar os nomes de Castoriadis ((“que acredita sem dúvida que, aqui como em outros lugares, basta falar deles para tê-los”) (IS, 10/79), Deleuze e Lyotard. Efectivamente, esses conceitos tinham tido uma grande importância em todas as tentativas de libertação do vivido individual, sobretudo no surrealismo. Os situacionistas pertencem igualmente a essa tradição, mas a grande originalidade – e de certo modo também o limite – de suas ideias nesse domínio é a concepção do desejo como uma força não inconsciente e ligada às necessidades, mas consciente e escolhida pelo indivíduo. Debord não partilha a confiança surrealista na “riqueza infinita da imaginação inconsciente […] Sabemos, finalmente, que a imaginação inconsciente é pobre, que a escrita automática é monótona” (Rapp., 691) (12). Ao contrário da necessidade, o desejo é um prazer e deve ser aumentado ao máximo. No início, a IS anuncia que “a direcção realmente experimental da actividade situacionista é a constituição, a partir de desejos reconhecidos de modo mais ou menos nítido, de um campo de actividade temporária favorável a tais desejos. Só sua constituição pode acarretar o esclarecimento dos desejos primitivos e o aparecimento confuso de novos desejos” (IS, 1/11); mas reconhecer, especificar e desenvolver os próprios desejos é uma actividade consciente. Ao contrário, a necessidade que, evidentemente, não pode ser suprimida, opõe-se amiúde ao desejo e se presta à manipulação interessada: “O hábito é o processo natural através do qual o desejo (satisfeito, realizado) se degrada em necessidade […] Mas a economia actual está em contacto directo com a fabricação dos hábitos e manipula pessoas sem desejos” (IS, 7/17). O capitalismo cria, continuamente, necessidades artificiais que nunca foram desejos e que impedem a realização de desejos autênticos (13). Para Debord, os desejos não são uma parte da vida que se abandona depois de satisfeitos para voltar às “coisas sérias”: todas as actividades humanas poderiam desenvolver-se sob a forma de realização de desejos e de paixões. O que não é possível sem o controle do seu próprio ambiente e de todos os meios materiais e intelectuais, e significa, a longo prazo, a reconversão de todas as actividades produtivas em jogo (14).

A recusa situacionista da identificação corrente do desejo com o desejo amoroso ou sexual, que já constitui uma limitação, é igualmente importante. Numa conferência de 1958, Debord critica o surrealismo por sua “participação na propaganda burguesa que apresenta o amor como a única aventura possível nas condições modernas de existência” (IS, 2/33). E em 1961 declara: “Convém notar também até que ponto a imagem do amor elaborada e difundida nesta sociedade se parece com a da droga. Nela a paixão é primeiro reconhecida enquanto recusa de todas as outras paixões; depois, é impedida e, finalmente, só se encontra nas compensações do espectáculo reinante” (IS, 6/24 ).

Os situacionistas situam-se, portanto, no oposto das teorizações da dissolução do sujeito por pulsões impessoais, afirmada tão amiúde ao longo das últimas décadas. Entretanto, seu desinteresse pela dimensão inconsciente os impede, ao mesmo tempo, de captar-lhe plenamente o peso e de ver aí uma das causas da persistência da ordem social presente. Contudo, consideram positiva a contribuição da psicanálise inicial, “uma das mais temíveis erupções que, até aqui, começaram a fazer tremer a ordem moral”, ainda que a abusiva identificação freudiana da ordem capitalista como uma “civilização” supratemporal já abrisse o caminho para todas as recuperações posteriores (IS, 10/63 ).

Já vimos que Debord concebe, de modo iluminista, a emancipação individual e colectiva como tomada de consciência e como reconhecimento do facto de que as forças aparentemente autónomas pertencem, na realidade, ao homem; o projecto revolucionário é, segundo ele, “a consciência do desejo e o desejo da consciência” (Sde, § 53). O inconsciente, tal como se apresenta hoje, não é absolutamente uma fonte pura cujas exigências, se fossem satisfeitas, levariam à alegria ou mesmo à revolução. Como o imaginário (15), é um produto histórico e sua irracionalidade não é uma instância originária que deve ser oposta ao mundo demasiado “racional”, mas um receptáculo de todas as opressões do passado; o sentido inicial da psicanálise não era justificar o inconsciente e o mundo, mas criticá-los (IS, 10/79). Já no tempo dos letristas, Debord queria realmente inventar paixões novas ao invés de viver as já existentes (Rapp., 701).

Se, sob esse aspecto, está muito distante de Marcuse e de tantas outras concepções em última instância rousseauistas, Debord está, em contrapartida, muito próximo de Marx. A Internacional Situacionista cita a afirmação marxiana segundo a qual “a história inteira não é senão a transformação progressiva da natureza humana” (IS, 10/79). Não há natureza humana originária, com seus desejos e seu imaginário, que seja pervertida por uma sociedade ruim: este é um dos pontos em que Debord recusa, claramente, a hipótese de um sujeito ontológico.

Os situacionistas parecem apresentar uma certa afinidade com o chamado “freudo-marxismo”, caracterizado pelo recurso a Marcuse e a Reich. Se, efectivamente, algumas semelhanças podem ser encontradas nas análises de Marcuse e de Debord, não há paralelismo no que diz respeito à sua contribuição para o Maio de 68. O freudo-marxismo não está na origem de 1968, mas se agrega a ele logo depois (16): enquanto os primeiros livros de Marcuse não tiveram nenhum sucesso na França – Eros e civilização, traduzido em 1963, tinha vendido quarenta exemplares antes de Maio de 68 (17) -, O homem unidimensional, publicado em Maio de 68, foi vendido ao ritmo na velocidade de mil exemplares por dia (18). Por outro lado, não se deve esquecer que Marcuse era percebido de modo sobretudo confuso: entre muitos estudantes, o entusiasmo pelas teses da revolução sexual caminhava junto, por mais que isso possa parecer bizarro, com o maoísmo e com a admiração pela longínqua “revolução cultural” na China (19), cujo carácter de simples “luta pelo poder” (IS, 11/5) os situacionistas eram, então, os únicos a denunciar.

Os alvos polémicos preferidos por autores como Foucault, Deleuze, Derrida, Althusser, Baudrillard e Lyotard são a dialéctica e a identidade, a primeira sendo considerada incapaz de superar a “lógica da identidade” (20) e de explicar a diferença (21). Rejeitam a ideia de um sujeito dotado de uma identidade suficientemente forte para permanecer inalterado, em seu núcleo, em meio às mudanças. É fácil constatar que o abandono de tal sujeito priva de todo sentido a ideia de uma alienação à qual o indivíduo está em condições de resistir. O conceito de “alienação” havia suscitado um debate filosófico intenso por volta de 1955 (22), quando Debord estava em via de concretizar suas ideias. Nos anos 60, e mais ainda depois de 68, esse conceito iria ser abandonado. Se as estruturas, ou a linguagem, ou as pulsões libidinais são o sujeito da história, não pode existir uma “essência” do homem que seja corrompida por estruturas sociais inadequadas. A “semiótica” recusa-se a ver na obra de arte a expressão de um vivido, situando-se, assim, como antípoda do que os situacionistas atribuem às obras do passado.

Talvez seja um exagero querer ver, nas filosofias em moda depois de 1968, uma resposta directa às teorias situacionistas, ainda que, amiúde, os autores em questão as conheçam muito bem. Estes não só afirmam sua vontade de atacar a concepção “cartesiana” do sujeito, e através disso uma longa tradição filosófica, como ainda, em muitos casos, propõem suas teorias também como uma crítica particularmente radical do existente. Muitos desses autores, sob o pretexto de buscar as raízes mais profundas e mais recônditas do capitalismo, praticam, na realidade, uma subtil sabotagem da teoria radical. Se as causas do mal não são fenómenos históricos concretos, tais como a economia mercantil e o Estado moderno, mas fenómenos muito gerais como o pensar em categorias de “identidade”, então se torna insensato propor a superação desses males. Segundo tais correntes de pensamento, o conceito de “revolução” movimenta-se no mesmo terreno mental que o sistema existente, ao qual contrapõem os horizontes infinitos da “diferença” ou das “pulsões”. A própria ideia de revolução é denunciada como um mito ou um “longo conto”, como uma figura da existência humana que sempre existiu e que, consequentemente, está longe de ter, no presente, uma existência histórica concreta.

Pode-se encontrar uma referência mais directa à teoria situacionista na teoria do simulacro que nega de modo explícito qualquer possibilidade de distinguir o verdadeiro do falso e, portanto, a existência de um autêntico que possa ser falsificado. Particularmente, a análise feita por Baudrillard – influenciado de modo evidente por Debord, tendo sido, aliás, o assistente de Lefebvre – aceita a caracterização da sociedade existente como um “espectáculo”. Mas destaca este conceito de sua base material e faz dele um sistema “auto-referencial”, em que os signos não são mais um disfarce da realidade mas são, de facto, a realidade. É assim que ele se regozija de não ter mais que se ocupar de uma fastidiosa “verdade”, dado que esta não está oculta mas é, simplesmente, inexistente. Para Baudrillard, a troca dos signos ocupou todo o espaço social. Não pode, pois, haver nenhuma resistência porque esta deveria referir-se a conceitos como conteúdo, significado ou sujeito, os quais, segundo Baudrillard, se tornaram signos. É curioso observar como Baudrillard retoma conceitos de Debord e, parecendo radicalizá-los, na verdade transforma-os em seu contrário. Esta teoria pretensamente crítica não faz nada mais que sonhar com um espectáculo perfeito que tivesse ficado livre de sua base material – em outros termos: de um consumo que se livrasse da produção – e, pois, não tem mais nada a temer de suas contradições. Interpretada assim, a expressão “sociedade do espectáculo” tornou-se corrente no jargão jornalístico que podemos ouvir todos os dias – uma possibilidade que o próprio Debord havia previsto (Sde, § 203) (23).

É um grande erro querer ligar Debord às teorias – mais ou menos “pós-modernas” – centradas sobre a comunicação, a imagem e a simulação. Se os adeptos dessas teorias elogiam Debord por seus dons “proféticos”, só pode ser por equívoco. Identificar o espectáculo com a simples impossibilidade de poder ter certeza de tudo pelos próprios olhos e a consequente dependência em relação a meios de comunicação amiúde pouco confiáveis, significaria afogar o peixe. Tal facto, se não é tão antigo como a humanidade, já foi, no entanto, observado no século XVI por Francesco Guicciardini: “Não se surpreendam porque nada se sabe das coisas dos tempos passados, e menos ainda das que se fazem nas províncias ou nos lugares afastados, pois, pensando bem, não temos verdadeiras notícias das coisas presentes e, menos ainda, das que diariamente ocorrem numa cidade; não é raro haver entre o palácio e a praça um nevoeiro tão denso ou um muro tão espesso que, não penetrando aí o olhar dos homens, o povo sabe tanto sobre o que fazem aqueles que o governam ou sobre por que o fazem quanto sabe das coisas que ocorrem na Índia. E, portanto, o mundo é facilmente repleto de opiniões erróneas e vãs” (24). O problema não é somente a infidelidade da imagem em relação ao que representa, mas o próprio estado da realidade que deve ser representada. É oportuno lembrar aqui a distinção que se fez, no primeiro capítulo desta obra, entre uma concepção superficial do fetichismo da mercadoria, que vê nele apenas uma falsa representação da realidade, e outra que nele reconhece uma distorção provocada pelo homem na própria produção de seu mundo. A crítica do “espectáculo” ajuda não só a compreender como a televisão fala da Bósnia, mas também da questão muito mais importante: for que tal guerra aconteceu.

“Aqueles que (25) , a qualquer preço, querem atribuir a Debord uma hostilidade metafísica em relação ao olhar e à imagem poderiam meditar, além de sobre seus filmes, sobre o que ele disse, com desarmante simplicidade, no “Avis” Panégyrique, Tomo II, composto sobretudo de fotos: “Os embustes dominantes da época estão prestes a fazer esquecer que a verdade pode ser vista também nas imagens. A imagem que não foi intencionalmente separada de seu significado acrescenta muita precisão e certeza ao saber. Ninguém duvidou disto até há pouquíssimos anos” (26) .

O que Debord critica não é, portanto, a imagem enquanto tal, mas a forma-imagem enquanto desenvolvimento da forma-valor. Como esta última, a forma-imagem precede todo conteúdo e faz com que as lutas entre os diversos actores sociais sejam apenas lutas distributivas. Tanto os burgueses quanto os operários – para nos limitarmos aos esquemas clássicos – têm seus interesses aparentemente inconciliáveis expressos sob uma forma comum – o dinheiro – que de modo algum é neutro ou “natural”, como se admite tacitamente, mas, ao contrário, constitui o verdadeiro problema. Igualmente, no espectáculo, qualquer conteúdo, mesmo aquele que se diz antagónico, sempre se apresenta sob a forma nada inocente da imagem espectacular.

As aporias do sujeito e as perspectivas da acção

Como em outras oportunidades, também aqui Debord, de um lado, supera a concepção de um sujeito ontologicamente antagónico ao capitalismo e, de outro lado, adere a ela. O abandono dessa concepção, implícito na análise da forma-imagem citada acima, coexiste em Debord com discursos sobre a “comunicação”, que se aproximam muito de um outro tema predilecto da nova esquerda: a “manipulação”. Este conceito considera o advento da sociedade da mercadoria, e também o das sociedades opressivas do passado, como uma agressão externa vinda de um lugar indeterminado contra um sujeito preexistente e “diferente” da ordem social imposta pelas “classes dominantes”. Esses sistemas, contrários aos interesses da grande maioria, se manteriam no poder inexplicavelmente há milénios, por uma astuciosa “manipulação”, além da violência que por si nunca é suficiente. Na importância que os situacionistas atribuem à traição cometida pelos representantes em relação aos representados, e no consequente interesse quase obsessivo que manifestam por questões de organização, aparece uma ilusão fundamental de toda a esquerda: as massas, os proletários, os indivíduos, os sujeitos são manipulados; seduzidos, corrompidos, enganados; não podem se expressar nem agir. Mas se permitissem de facto sua acção, a sociedade capitalista desapareceria imediatamente, como um sonho ruim. Entretanto, ninguém explica onde semelhante subjectividade acabada pôde se formar. Nada autoriza a pensar que tenha existido no passado – a não ser sob uma forma fragmentária – para ser, em seguida, conquistada pela acção corrosiva da mercadoria. O apriorismo do sujeito, pivô da esquerda modernista, absolve, sem sequer se dar conta disso, o capitalismo de seu erro mais grave, o de impedir a formação da subjectividade consciente de que o próprio capitalismo criou inúmeros pressupostos necessários. A falsa resposta a esse problema é representada pelo estruturalismo, para quem o sujeito tampouco tem que ser realizado pois não pode existir, o que significa elevar a sociedade actual ao plano de uma eterna condição humana. .

Depois que a acção do proletariado histórico terminou vitoriosamente com sua integração na sociedade capitalista – transformando assim uma sociedade ainda semifeudal em uma sociedade verdadeiramente capitalista – a esquerda colocou inúmeros outros pretendentes no trono vacante da “boa causa”: os povos do Terceiro Mundo e as mulheres, os estudantes e os imigrantes, os “excluídos” e os trabalhadores informáticos, ou então fenómenos impessoais, como a sexualidade, a criatividade, a vida quotidiana (27). A militância, por meio da qual essas categorias às vezes defendem seus interesses, mascara o facto de que elas, pelo menos em sua forma actual, não são, absolutamente, exteriores à forma-valor e ao sistema do dinheiro.

Os situacionistas acreditavam mesmo haver encontrado o sujeito mais amplo e mais irredutível possível: “a vida”. Mas a solução para o problema do sujeito não se encontra dessa maneira, como já se evidencia a partir da visão dicotómica rígida a que ela conduz. A relação da sociedade com o espectáculo é concebida como uma relação entre vida e não-vida. À mercadoria, à economia e ao espectáculo, definidos como “uma negação da vida que se tornou visível” (Sde, § 10), como “não-vida” (Sde, § 123) e como “a vida do que está morto, movendo-se em si mesmo” (28) (Sde, § 215), se opõe a vida como fluxo. Qualquer tentativa de interromper o fluxo do tempo aparece como uma reificação. Certamente, seria um equívoco acusar os situacionistas de um “vitalismo” em termos tradicionais, no sentido de Bergson ou de Simmele (29). Não pretendem, de modo algum, criticar as instituições sociais ou a arte por sua estranheza em relação à vida tal como existe hoje. Quando alguns críticos os definiam justamente como “vitalistas”, eles respondiam que haviam feito “a crítica mais radical da pobreza de toda a vida permitida” (IS, 5/4). Se querem opor a vida a suas reificações, é em nome de uma outra vida. Mas assim como o bergsonismo havia influenciado profundamente o existencialismo francês, mesmo quando este o negava, também não deixou de ter consequências sobre Debord (30), sobretudo na definição do fluxo temporal como verdadeira dimensão humana.

Pergunta-se até que ponto se pode aplicar às teorias de Debord uma crítica frequentemente dirigida contra História e consciência de classe. Muitos observadores viram neste livro uma transformação da problemática concreta e histórica do fetichismo numa problemática genérica e antropológica, porque nele Lukács mostra, de facto, que a reificação provém de uma ausência de dissolução dos factos em processos e, em última análise, da existência mesma dos factos e de um mundo material. Dado que não se pode abolir a materialidade, a desalienação se desenvolveria então, como já se dava em Hegel, na esfera da consciência, lugar onde é necessário restaurar o “homem total”. Também Adorno critica História e consciência de classe por concentrar sua crítica sobre uma forma de consciência, a reificação, quando seria necessário criticar as condições em que vivem os homens e não o modo como elas se apresentam (31). Tentou-se até mesmo incluir História e consciência de classe numa suposta corrente “vitalista” no sentido mais amplo, a qual surgiu no fim do século XIX. A tese fundamental dessa corrente seria a necessidade de dissolver as coisas num movimento contínuo cujos momentos singulares são abusivamente congelados pelo intelecto. A alienação é aí identificada como distinção entre sujeito e objecto e como existência de um mundo irredutível ao sujeito; o remédio é a redução, naturalmente no pensamento, das coisas ao movimento.

Encontra-se algo disso em Debord? Ele escreveu que é “essencial” para o espectáculo “retomar em si tudo o que, na actividade humana, existia em estado fluido, para possuí-lo em estado coagulado” (Sde, § 35), vendo assim na fluidez a dimensão humana. Em Lukács encontramos a convicção de que o aparecimento enquanto “coisa” já é uma reificação: “O reconhecimento de que os objectos sociais não são coisas mas relações entre homens desemboca, pois, em sua completa dissolução em processo” (HCC, 224). E Debord nos ensina que, no espectáculo, “coisas concretas são automaticamente senhoras da vida social” (Sde, § 216) e que elas têm tudo o que falta aos homens vivos: “São coisas que reinam e que são jovens; que se perseguem e se substituem a si mesmas” (Sde, § 62). Em 1958, Debord anuncia que “trata-se de produzir a nós mesmos, e não coisas que nos subjugam” (IS, 1/21). À história produzida pela sociedade burguesa, ele critica o facto de ser somente uma “história do movimento abstracto das coisas” (Sde, § 142). Naturalmente, é necessário sublinhar que Debord pensa na mercadoria, não na coisa enquanto tal, e que designa explicitamente a “coagulação” como uma consequência do espectáculo e não o contrário (Sde, § 35). Porém, não se trata apenas de uma questão de terminologia: Debord parece partilhar o desejo de História e consciência de classe de reduzir tudo a um processo. Escreve que o proletariado “é a classe inteiramente inimiga de toda exteriorização congelada” (Sde, § 114). Aqui, o importante é afirmar com a clareza necessária que, na sociedade governada pelo valor, as coisas são efectivamente “senhoras da vida social “, mas apenas porque a relação social autonomizada que governa a vida social objectivou-se nessas coisas.

Por outro lado, Debord – nesse ponto, próximo de Marx mas também de Breton – não partilha um outro aspecto central do vitalismo e de História e consciência de classe e que pode, igualmente, ser encontrado em A dialéctica do esclarecimento, de Horkheimer e Adorno ou em Marcuse: a acusação segundo a qual a ciência, a técnica e seus métodos quantitativos são em si reificadores. Vimos que o projecto situacionista era, ao menos no início, fornecer à “sociedade técnica” “a imaginação do que se pode fazer com ela” (IS, 7/17). Mais tarde, quando sua atenção se volta para os desastres que a ciência produz, Debord não vê a causa disso na própria ciência, da qual lembra, aliás, o “passado antiesclavagista”, mas em sua subordinação doravante total à economia e à dominação que “fez abater a árvore gigantesca do saber científico unicamente para dela extrair uma matraca” (Com., 59).

A dicotomia situacionista entre vida e não-vida tem seu paralelismo numa forte e simples dicotomia entre “verdadeiro” e “falso”. O espectáculo “falsifica” a “verdadeira” vida social. A “verdade” é concebida por Debord de modo estático: não é por acaso que fala, várias vezes, de algo enfim “descoberto” ou “desvelado”. As palavras “mentira” e “mentiroso” são muito frequentes em A sociedade do espectáculo (32), e a importância atribuída à “comunicação” remete igualmente à ideia de uma verdade que permanece sob o invólucro de sua falsificação e que só espera ser trazida à luz. Tal verdade deveria pertencer a esse sujeito inalienável em sua essência, do qual já se falou. O espectáculo é definido como “o recalque de qualquer verdade vivida sob a presença real da falsidade” (Sde, § 219), e a tarefa do proletariado revolucionário é “essa missão histórica de instaurar a verdade no mundo” (Sde, § 221). O espectáculo é inimigo da verdade a ponto de ser um reino da loucura. – Debord cita a esse respeito a comparação feita pelo psiquiatra J. Gabel entre ideologia e loucura (Sde, §§ 217 -219) – e de se opor às verdades mais elementares: “Dizer que dois e dois são quatro está em vias de se tornar um acto revolucionário” (33). Nos Commentaires, Debord volta com frequência ao carácter “totalmente ilógico” do espectáculo (Com., 45). A própria noção de “segredo”, pivô dessa obra, remete a uma verdade existente além de toda manipulação, um conceito em relação ao qual o Hegel da introdução à Fenomenologia do espírito ter-se-ia mostrado sobretudo céptico. Tem-se a impressão, às vezes, de se estar diante de uma concepção da verdade como “reflexo”, típica do leninismo e do positivismo. Mas a observação de Debord sobre o facto de que toda lógica desapareceu com o diálogo, que é sua base social (Com., 45-47), parece remeter a uma definição mais mediata da verdade.

Por outro lado, Debord não deixa muito claro se o espectáculo é apenas uma falsa representação da realidade ou se, então, se trata de uma falsificação da própria realidade. Em seus textos pode-se, no entanto, observar uma evolução em direcção à segunda dessas interpretações: segundo os Commentaires, o espectáculo, doravante, tem os meios de falsificar tanto a produção como a percepção (Com., 23). O conceito de falsificação, tal como Debord o utiliza, é porém útil com a única condição de não ver nele a “manipulação” de uma realidade dada em si. Inversamente, a ideia de que a realidade possa ser falsificada envolve problemas conceituais: em relação a que coisa, a que “autêntico” a realidade se acha falsificada? Aqui a teoria de Debord parece, de repente, revelar uma raiz que se poderia chamar de “platónica”: os fenómenos concretamente existentes podem ser comparados com seus modelos; o pão e o vinho, por exemplo, cuja sofisticação preocupa Debord de modo particular, podem ser comparados com o “verdadeiro” pão e com o “autêntico” vinho. O termo da comparação não é, naturalmente, um “arquétipo” do vinho que existiria no céu platónico das ideias, mas o vinho tal como existia antes dos progressos da indústria agro-alimentar. Isso não constitui, evidentemente, uma definição filosófica da “autenticidade”; mas nem por isso é menos evidente que se trata de uma realidade palpável. Debord atribui também uma grande importância à exactidão das definições, conferindo à linguagem e às suas formas mais antigas a tarefa de uma conservação da verdade; e fustiga com frequência, na esteira de G. Orwell, a “neolinguagem ” que o espectáculo cria para seu próprio uso.

A única resposta possível, fornecida, aliás, pelo próprio Debord, é que não se trata de exaltar um “autêntico” em sentido absoluto, uma essência estática (34). Existe, ao contrário, uma lenta evolução do sujeito e de suas necessidades (Sde, § 68). A história é a história da produção do sujeito por si mesmo, numa interacção entre seu “si” e suas criações que permanecem sempre um reflexo de seu “si”. A economia separada, e mais geralmente cada instância, cada instituição e cada actividade separadas a ponto de se erigirem em potências independentes, rompem esse “desenvolvimento orgânico das necessidades sociais” e libertam “um artificial ilimitado” (Sde, § 68).

Se não é possível decidir (35) qual seria uma sociedade “ontologicamente” verdadeira ou autêntica, pode-se, no entanto, determinar “ontologicamente” a falsidade ou a não-autenticidade da sociedade da mercadoria. O valor, como explica Marx nas primeiras páginas de O Capital, torna obrigatoriamente igual o que não é igual. Todas as contradições da mercadoria, até sua crise final, já estão contidas na “simples forma-mercadoria” que significa: “vinte metros de tecido = um casaco” (36). Mas aqui também se pode ir além de Marx e, dado que a quantidade não tem importância, reduzir a equação a “tecido-casaco”. O tecido é, então, a mesma coisa que uma roupa, ou o chá, o ferro. Em outros termos, “branco-preto”. É evidente que uma sociedade baseada sobre tal princípio só pode acabar mal (37). A partir disto, pode-se criticar o capitalismo, e sobretudo as necessidades que nele dominam, sem a obrigação imediata de definir o que é “natural” ou “justo”. Tal demonstração objectiva da falsidade do capitalismo contraria, entretanto, o relativismo pós-moderno, para o qual toda forma social é igualmente arbitrária e então, afinal de contas, também igualmente justificada.

Mas é desejável que tudo no mundo seja um espelho do sujeito? Em muitos autores, a crítica da “alienação” pode chegar até o desejo de um mundo em que nada é estranho ao sujeito. Contudo, isso é inconciliável com a perspectiva dialéctica segundo a qual sujeito e objecto não são uma dualidade última, e tampouco remetem a uma unidade última, mas se constituem reciprocamente. Pode-se lembrar aqui a crítica de Adorno que diz que um conceito fetichizado de “totalidade” tende a instaurar, em toda parte, uma tirania do sujeito (38). Adorno distingue entre o conceito de reificação – enquanto uma crítica justa do fetichismo da mercadoria e de uma malsã subordinação dos homens às coisas – e o conceito de “alienação”, atrás do qual vê um tipo de mentalidade “para o qual o coisificado é o mal radical, aquele que gostaria de dinamizar tudo o que é em pura actualidade, tende à hostilidade em relação ao outro, ao estranho […] Mas seria uma dinâmica absoluta esse gesto que se satisfaz violentamente em si mesmo e utiliza mal o não-idêntico a seus próprios fins” (39). Para aqueles que demonstram uma preocupação excessiva com a reificação – “inspirada pelo ideal de uma imediatidade subjectiva sem falha” – Adorno lembra que “a dissolução de cada elemento reificado (dinghaft) sem resíduo regrediria ao subjectivismo do acto puro e hipostasiaria a mediação como imediatidade. Pura imediatidade e fetichismo são igualmente não verdadeiros” (40). Adorno lembra ao “existencialismo” que a objectividade – no caso em questão, aquela das categorias metafísicas – e o não idêntico podem ser efectivamente expressão de uma sociedade “esclerosada”, mas também podem indicar a existência real do mundo objectal, sem cuja aceitação e pacificação o sujeito nunca será outra coisa que um tirano.

Toda a teoria de Debord, particularmente em sua condenação da “contemplação” e da “não-participação”, é marcada por um forte activismo em que cada oportunidade na qual o sujeito não modela seu mundo é considerada como uma demissão. “No poder dos conselhos […] o movimento proletário é seu próprio produto, e este produto é o próprio produtor. É para si mesmo seu próprio fim” (Sde, § 117) e “quer ser reconhecido e reconhecer-se a si mesmo em seu mundo” (Sde, § 179): trata-se, pois, da unidade sujeito-objeto. É evidente que Debord não o entende como uma identidade total, mas como um mundo onde se apagam as objectivações que se opõem de modo absoluto ao indivíduo. A própria ideia de deriva, ou de modo mais geral de aventura, supõe um mundo desconhecido e “outro” em relação ao sujeito. A Veritable scission dans l’lnternationale cita a afirmação extraída da Ciência da Lógica de Hegel segundo a qual só “a contradição é a fonte de todo movimento, de toda vida”, ao passo que a identidade é algo morto (VS, 153) (41). O fim da reificação existente não é entendido por Debord como um estado de repouso sem movimento, sem conflito e sem alteridade: a humanidade libertada “poderá enfim entregar-se alegremente às verdadeiras divisões e aos enfrentamentos sem fim da vida histórica” (Com. [Prefácio à quarta edição italiana de Sde.], p. 112) (42). Debord não se opõe à ideia de perder-se ou de alienar-se no mundo circundante, mas deseja um mundo que dê vontade de nele se perder (Sde, § 161). Ainda aqui, é possível lembrar os Manuscritos de 1844, em que Marx diz que “o homem não se perde em seu objecto com a única condição de que este se torne para ele um objecto humano ou um homem objectivo. Isto só é possível quando o objecto se torna para ele um objecto social, quando se torna ele próprio, para si, um ser social” (43). O Urbanismo unitário era concebido como a construção de um meio verdadeiramente humano, em que a pessoa se afasta de bom grado dos caminhos conhecidos para ir “à deriva”.

Sob inúmeros aspectos, a teoria situacionista participa do optimismo típico dos anos 50 e 60. Quando os letristas começaram a desenvolver suas ideias, a Segunda Guerra Mundial e o nazismo haviam terminado há apenas alguns anos. A reflexão de inúmeros indivíduos era fortemente determinada pelos horrores ocorridos e pela preocupação de impedir para sempre seu retorno. Entre os letristas ao contrário, como mais tarde entre os situacionistas, raramente se encontram alusões a esses acontecimentos. A possibilidade de que a terra pudesse recair na barbárie (44) pouco os preocupa; inquietam-se principalmente com o risco de que os novos meios não sejam usados a serviço da liberdade; isto é, temem mais uma conservação do status quo do que um retrocesso.

Ao longo da década de 50, o domínio da natureza havia chegado ao ponto de se tornar sensível mesmo na vida quotidiana, ao passo que, por outro lado, ninguém se interrogava ainda sobre o “preço do progresso” em termos ecológicos ou outros. Sabe-se o quanto essa época confiava no desenvolvimento dos meios técnicos para levar a humanidade à felicidade. No início, os situacionistas saúdam, na automatização da produção, a possibilidade de resgatar a humanidade da escravidão milenar do trabalho; todo o programa de uma “civilização do jogo” baseia-se nesse pressuposto. Debord cita várias vezes a afirmação marxiana de que a humanidade só se coloca os problemas que pode resolver (por exemplo: Potl., 187). A tarefa que se impõe é a criação de uma ordem social que utilizará esses meios no interesse da sociedade inteira, e não no daquele de uma única classe e de suas veleidades de dominação. Portanto, se permanece no esquema das forças produtivas cuja evolução inverte as relações de produção. Nos primeiros números de Internationale Situationniste, os situacionistas mostram-se confiantes no facto de que a sociedade está em vias de se desenvolver na boa direcção, enquanto que as superestruturas não a acompanham.

Num outro campo, a sociedade parecia igualmente ter chegado a controlar seus próprios mecanismos. As taxas de crescimento sustentado, o pleno emprego, os altos salários e a ausência de graves crises económicas que haviam caracterizado as décadas de 50 e 60, eram então considerados por muitos como uma aquisição duradoura. Os esquerdistas, em particular, consideravam que o capitalismo não discutiria mais essa tendência que lhe garantia a estabilidade (45) através da famosa “integração do proletariado”. A produção capitalista não era entendida como um sistema contraditório em si e, a longo prazo, necessariamente portador de crises, mas via-se nele o resultado de uma vontade pressuposta, capaz de decidir sobre seus desenvolvimentos. A denúncia da economia enquanto esfera separada, ponto central em Debord, não contradiz de modo algum as esperanças depositadas na automatização: esta poderia servir para fazer da produção material um puro meio, destinado a satisfazer os desejos humanos ao invés de colocá-los ao serviço do desenvolvimento de uma economia autonomizada.

A década de 70 demonstrou, na sequência, que o “bem-estar” é revogável. Numa situação em que o essencial parece garantido, é-se mais facilmente levado a se perguntar se não poderia existir algo de melhor; ou, na terminologia situacionista: quando a sobrevivência está garantida, a vida torna-se uma reivindicação. Desse ponto de vista, era perfeitamente funcional para o capitalismo que voltasse, na década de 70, a crise tradicional com a preocupação pelo emprego e pela diminuição do salário. Quando se está cercado por milhões de desempregados, poder permanecer na cadeia de montagem torna-se uma bênção; e, em semelhante situação, nunca é difícil encontrar pelegos. Além disso, a consciência do risco de uma catástrofe ecológica e, mais tarde, a retomada da “guerra fria”, recolocavam em primeiro plano a questão da simples sobrevivência.

Como todo conceito válido, o do “espectáculo” é, em parte, ligado à sua época, a do welfare state cibernético e do apogeu do fordismo, em que o capitalismo pretendia ter resolvido seus antagonismos tradicionais, como a exclusão da maioria da população da abundância dos bens (46). Entretanto, é necessário admitir que, já nessa época, a crítica realizada por Debord e pelos situacionistas, por mais que fosse a mais avançada, não havia conseguido, como aliás todas as outras, apontar os remédios possíveis. Não se pode negar que não basta, como muitos fizeram, indicar a alienação e a insatisfação que dela resulta como os móveis de um novo movimento revolucionário. Os anos posteriores a 1968 mostraram, precisamente, que não é possível mudar a sociedade individualmente, sem programa e sem organização, sob a forma de uma lenta infiltração de costumes novos ou como uma mudança de clima: cada inovação particular é, então, integrada em um todo substancialmente inalterado. Debord havia tentado identificar uma força que tivesse a possibilidade real de intervir mas, com o passar do tempo, as esperanças depositadas no proletariado revelaram-se ilusões. Ademais, o peso da teoria era superestimado. Se a história é uma tomada de consciência, a teoria tem, naturalmente, um peso considerável: segundo In girum…, a agitação de 68 e do período seguinte é essencialmente um resultado da difusão da teoria situacionista, “tão grande é a força da palavra dita em seu tempo” (OCC, 258) (47).

A dificuldade de delinear as possibilidades de uma crítica e de sua prática depende igualmente da ausência de resposta à questão de saber se a crítica do espectáculo faz parte do espectáculo, e de que maneira é possível situar-se fora dele. No início da década de 70, após o “sucesso” dos situacionistas, às vezes objectava-se a Debord que a difusão de suas ideias, de seus livros e de seus filmes já era uma participação no espectáculo; ele próprio só via nisso inveja, pois se tornara impossível ignorar suas teorias. Entretanto, é difícil compreender porque, de um lado, o mundo está cheio de resistências ao espectáculo, ao menos por volta de 1970, enquanto, por outro lado, aos olhos dos situacionistas nada escapa à qualificação de “oposição espectacular”.

Isso se deve à extrema flexibilidade do conceito de “espectáculo”. De um lado, Debord o compreende num sentido mais restrito, como indústria cultural, mass media e reino das imagens. A Internationale Situationniste pode, então, falar da “indiferença característica dos proletários, enquanto classe, diante de todas as formas da cultura do espectáculo” (IS, 4/4). O espectáculo, assim compreendido, “está mais distante que nunca da realidade social” (IS, 8/15). Em um sentido mais figurado, ao contrário, a noção de espectáculo designa antes de tudo o capitalismo ocidental, depois toda sociedade existente e, finalmente, as sociedades do passado, dado que “todo poder separado foi, então, espectacular” (Sde, § 25) (48).

Mas, além disso, ainda que tenha afirmado que o campo dos dirigentes não é verdadeiramente monolítico (IS, 8/13), Debord não aprofundou muito as articulações e as contradições internas do espectáculo, definidas outrora como “contradições secundárias”. Se a estratégia leninista de utilizar os antagonismos do campo adversário para enfraquecê-lo esteve na origem da prática que consiste em estabelecer alianças por toda parte, não é menos verdadeiro que a busca de um simples confronto da parte da força mais fraca é contrária a todas as leis da estratégia e torna quase impossível qualquer saída vitoriosa.

Segundo alguns, nos Commentaires, um pessimismo sombrio substituiu o optimismo anterior. Parece que todas as oposições ao espectáculo são representadas pelo próprio espectáculo e que não existe mais nem sombra de uma força revolucionária. Mas quando são bem lidos (49), Debord não anuncia neles, absolutamente, a vitória final do espectáculo. Fala muito da actividade dos serviços secretos sem, no entanto, pretender que estejam em condições de dominar o mundo. Ao contrário, constata que a sociedade do espectáculo perdeu toda capacidade para se governar estrategicamente e limita-se a sobreviver nas posições de sua “frágil perfeição”. Em outros termos: quando a forma-mercadoria, com o “espectacular integrado”, completou sua ocupação da sociedade, a possibilidade mesma de gerir as leis loucas da economia reduziu-se à vã gesticulação de mil conspiradores obscuros. A tão contestada afirmação de Debord, segundo a qual não haveria mais nenhuma oposição porque todo mundo estaria, doravante, no sistema, expressa o facto de que definitivamente se esgotaram as oposições imanentes, como o clássico movimento operário ou os “movimentos de libertação” do Terceiro Mundo. Só a fantasia havia podido atribuir-lhes uma função transcendente quando, na verdade, essas oposições combatiam os estágios imperfeitos do capitalismo em que amplos sectores estavam excluídos das formas de socialização capitalista. Quando o sistema da mercadoria enquanto tal entra em crise, o papel das oposições imanentes acaba. O problema é, sobretudo, que esta tomada de consciência se apresenta em Debord sob o aspecto inadequado de uma crítica da “manipulação” e que, para ele, isto parece significar o fim de qualquer oposição mais do que o início de uma verdadeira oposição. Ele não duvida de modo algum da crise do capitalismo e identifica sua causa menos na insatisfação que cria do que em sua dinâmica própria. Em seu último texto, fala da “dissolução evidente do conjunto do sistema” e garante que “nada mais funciona, e não se acredita em mais nada” (50).

Efectivamente, assistimos a uma crise da própria forma-valor e não apenas de seus aspectos secundários. Fazem parte dela: a crise ecológica; a impossibilidade, na época da globalização, para a “política ” e para os Estados nacionais de continuarem a funcionar como instâncias reguladoras; a crise do sujeito constituído pelo valor, particularmente visível na crise das relações entre os sexos. Mas o que produz os efeitos mais tangíveis é o esgotamento da “sociedade do trabalho”. Só uma parte insignificante de trabalho é ainda necessária para fazer avançar a produção; no entanto, para poder operar em condições suficientemente rentáveis, são necessários altíssimos investimentos em capital fixo que não são possíveis senão nos países e nos sectores mais avançados. E, dado que a mundialização efectiva não só das trocas, mas também da produção, obriga o mundo inteiro a se alinhar pelos níveis de produtividade dos centros mais evoluídos, uma grande parte do mundo, de agora em diante, é perdedora nessa competição. As capacidades produtivas de tais países, ainda que em condições de criar bens de uso, não conseguem mais empregar o trabalho vivo de modo a produzir valor de troca no mercado mundial, e são, consequentemente, desmanteladas. Esses países e sectores ficam fora dos circuitos globais do valor, mas exercem uma pressão ameaçadora sobre os raros vencedores, provocando guerras intermináveis, máfias, e tráficos abomináveis das poucas matérias comercializáveis ainda em seu poder. Debord faz parte das raras pessoas que compreenderam que o desmoronamento dos países do Leste não significa o triunfo da versão ocidental de sociedade, mas constitui, ao contrário, um estágio ulterior da falência global da sociedade da mercadoria. Os regimes de economia planificada não eram senão uma sua variante adaptada aos países atrasados e sua função extingui-se com a instituição das indústrias de base. (51) Mas Debord não apreende muito bem as causas disso quando escreve, ainda em 1992, no prefácio para a edição Gallimard de A sociedade do espectáculo, que o problema central para o capitalismo é, e continuará a ser, “como fazer os pobres trabalharem “. Na verdade, o problema central para o capital hoje é a questão do que fazer com a imensa maioria da humanidade da qual ele não mais necessita como trabalho vivo, dado o grau de automatização a produção. (52)

As duas fontes e os dois aspectos da teoria de Debord

A novidade efectiva da teoria de Debord decorre, em grande parte, de sua referência ao papel fundamental da troca e do princípio de equivalência na sociedade contemporânea. Era, aliás, um dos pontos capitais dos jovens letristas, como demonstra o nome de sua revista. Não explicam a escolha do nome quando publicam o primeiro boletim enviado gratuitamente (53). Mas o único número de uma “nova série” de Potlatch, concebido como órgão interno da IS (1959), é apresentado por Debord com uma referência explícita ao potlatch dos índios e o anúncio de que “os bens não vendáveis que tal boletim gratuito pode distribuir são desejos e problemas inéditos; só o seu aprofundamento por outros pode constituir uma retribuição do presente” (Potl., 283). É necessário lembrar que o potlatch é uma prática de certas tribos do Canadá, existente ainda no início do século e que, aliás, pode ser encontrada sob uma forma similar em outras culturas. Trata-se de afirmar o prestígio de uma pessoa ou de um grupo através de um dom oferecido ao rival. Este responde com um dom maior, se não quer reconhecer a supremacia do doador, o qual tentará responder com um presente ainda mais importante e assim por diante, às vezes até a destruição ostensiva de suas próprias riquezas. Mais do que sobre a equivalência, o potlatch se baseia no desperdício de seus recursos que são prodigalizados sem a certeza, às vezes até mesmo com o desejo secreto, de não receber em troca um valor equivalente. Marcel Mauss introduziu este conceito em etnologia (Essai sur le don, 1924), mas é sobretudo graças a La Part maudite (1949) de George Bataille que a noção de potlatch entrou na reflexão francesa e adquiriu aí o valor de uma espécie de alternativa para a economia de troca.

Elaborar uma teoria crítica sobre a categoria da troca, como fez Debord e, de uma outra forma, a Escola de Frankfurt, constituía um progresso importante em relação aos marxistas do movimento operário para os quais só contava a troca “desequilibrada ” que é o comércio da força do trabalho. Aos olhos desses “marxistas”, conferir à troca o lugar central equivale a consagrar uma atenção primordial à esfera social e às relações intersubjectivas, em detrimento de qualquer consideração pela relação entre o homem e a natureza, isto é, pela objectividade a que conduziria a análise da produção. Quando Lukács, em 1967, faz a lista dos erros de História e consciência de classe, ele faz algumas observações que, seguramente, teria aplicado também a seu rebento tardio, A sociedade do espectáculo. Segundo ele, História e consciência de classe participava da “tendência a interpretar o marxismo exclusivamente como teoria da sociedade, como filosofia do social, e a ignorar ou a rechaçar a sua posição em relação à natureza. […] Em várias passagens, afirma-se que a natureza é uma categoria social […] [e que] só o conhecimento da sociedade e dos homens que nela vivem seria filosoficamente relevante”. Distingue “no existencialismo francês e seu meio intelectual” uma consequência dessa tendência (HCC, 392, posfácio). À História e consciência de classe e à “tendência” que a acompanha, o filósofo húngaro critica, do mesmo modo, o facto de não analisar o trabalho mas apenas as “estruturas complexas” (HCC, 396, posfácio). Lukács afirma que isso, contudo, contrariava suas intenções subjectivas e que havia querido manter o fundamento económico da história: “Há, com certeza, um esforço para explicar todos os fenómenos ideológicos a partir de sua base económica, mas a economia está empobrecida, pois sua categoria marxista fundamental – o trabalho como mediador da troca orgânica entre a sociedade e a natureza – está eliminado dela” (HCC, 393, posfácio). Em seguida, Lukács relaciona essa incapacidade para avaliar correctamente o peso da objectividade material com sua identificação errónea da objectivação com a alienação.

A partir de tal perspectiva, o conceito de espectáculo parece absolutizar o que se pode chamar de superestrutura, esfera de circulação, esfera do consumo, o social. Entretanto, Debord rechaçou a crítica que lhe fazia C. Lefort (54), o qual “imputa falsamente a Debord o haver dito que ‘a produção da fantasmagoria comanda a das mercadorias’, ao invés do contrário […] que é claramente enunciado em A sociedade do espectáculo, notadamente no segundo capítulo; o espectáculo não sendo definido senão como um momento do desenvolvimento da produção da mercadoria” (IS, 12/48). Evidentemente, a grande importância atribuída à cultura, isto é, à superestrutura, faz parte da análise de Debord. Nos primeiros anos, os situacionistas justificavam suas tentativas de chegar a uma espécie de “hegemonia” no mundo da cultura pelo facto de que esta é “o centro de significação de uma sociedade sem significação” (IS, 5/5). Numa linguagem mais sociológica, poder-se-ia dizer que identificam na cultura o lugar onde acontece a “criação de consenso”. Em sua definição, a “cultura” cobre um vasto campo, isto é, tudo o que supera a pura reprodução. (55) Mais tarde, seu interesse se desloca para a crítica da ideologia; e, quando Debord define o espectáculo como “ideologia materializada”, é claro que, aqui, a ideologia está longe de ser concebida como uma simples “superestrutura”.

O conceito de espectáculo analisa como o processo de abstracção transforma tanto o pensamento quanto a produção. É assim que tal conceito evolui exactamente no sentido de superar a oposição dualista entre “base” e “superestrutura”, entre “aparência” e “essência”, entre “ser” e “consciência”, na qual era forte um “marxismo ” que não havia compreendido que o valor é um “facto social total” – como diria M. Mauss – que instaura a divisão em diferentes esferas. Em seguida, esse marxismo sociologista fazia passar como sendo a “dialéctica” suas dissertações sobre as “relações recíprocas” dessas esferas que se mantiveram rigorosamente distintas. Não ter aceito esta distinção não é, portanto, uma falha dos situacionistas mas, ao contrário, um importante avanço teórico que pode, com razão, prevalecer-se de Hegel e de Marx. Do mesmo modo, a recusa a colocar o trabalho na base de sua teoria está longe de ser um defeito. Concepções do trabalho, como a de Lukács em 1967 evocada acima, transformam numa eterna necessidade ontológica aquilo que é uma característica do capitalismo. Se é compreendido como “troca orgânica com a natureza”, então o conceito de trabalho é tão verdadeiro e tão conceptualmente inútil quanto a afirmação de que o homem deve respirar. Entendido como modalidade para organizar essa troca, o trabalho é, ao contrário, um dado histórico potencialmente ultrapassado pelo próprio desenvolvimento do capitalismo. A “troca” de unidades de trabalho objectivadas em mercadorias seria supérflua num modo de produção imediatamente socializado. O modo presente já o é no plano material, ainda que não consiga libertar-se de um sistema em que o indivíduo só participa do produto comum através de sua parte de trabalho individual. Os situacionistas, com sua crítica do trabalho, não são pois boémios atrasados, mas anteciparam, a partir de uma perspectiva marxista, um fenómeno absolutamente actual.

Desse ponto de vista, as ideias de Debord beneficiaram-se do facto de terem partido de considerações sobre a arte. É uma coisa frequente na tradição francesa (56) que, em geral, privilegia o aspecto “social” em relação à “dura realidade” da economia. Mas nisso também se esconde uma oposição totalmente justificada, embora deformada, em relação a um “marxismo” reduzido a ser apenas o fiador da modernização económica. O modo pelo qual Debord e os situacionistas estiveram entre os primeiros a apreender em parte os novos dados criados pelo fim do ciclo fordista depende também da fractura que representam em relação a quase toda a crítica social anterior. Se puderam anunciar algo de novo nesse domínio, redescobrindo, ao mesmo tempo, certos aspectos sepultados da teoria marxiana, é exactamente porque não partiram do debate marxista interno. Os situacionistas haviam compreendido que também as ideias de Marx deviam ser submetidas ao afastamento; deviam ser modificadas e inseridas em um novo contexto para reencontrarem sua validade. Se os situacionistas estavam predispostos a realizar esse afastamento, era porque saíam da experiência da decomposição das artes. A situação criada pelo fim – real ou presumido – da poesia, bem como o desejo de se forjar uma vida quotidiana apaixonante, estavam no centro dos interesses de Debord bem antes que reflectisse sobre a teoria marxista. A origem artística da IS tornou-se, mais tarde, um grave obstáculo, quando foi necessário passar da seita – ela própria concebida como a obra suprema de uma arte sem obras – a um movimento de massa. Mas é exactamente tal origem que permite à IS encontrar a “passagem para noroeste”, ao menos no que diz respeito à teoria marxista.

Como já sublinhamos várias vezes, os diferentes marxismos sempre evoluíram no interior da socialização criada pelo valor, limitando-se a pedir-lhe uma organização mais “justa”. A libertação dos obstáculos do trabalho abstracto, do dinheiro, do Estado e da produção como um fim tautológico em si estava, no melhor dos casos, postergada para um futuro muito longínquo, e somente depois que tivesse estendido para toda a sociedade as formas sociais criadas pela mercadoria. Mesmo os marxismos heréticos pediam, substancialmente, apenas uma gestão mais radical ou mais democrática desse processo. Pode-se afirmar, portanto, que só nas vanguardas artísticas e, de um modo mais consciente, no surrealismo – mas também na tradição utopista francesa, como em Fourier – é que se encontra, embora expressa de modo ingénuo, a exigência de uma libertação do concreto, exigência que já remetia para além do horizonte da sociedade industrial. Somente aí é que se encontram os rudimentos de um pensamento que supera as categorias criadas pela forma-mercadoria. Esta herança permitiu justamente que Debord chegasse a um patamar que iniciativas como Arguments ou Socialisme ou Barbarie não haviam podido atingir. Suas tentativas para rejuvenescer o marxismo não partiam de Marx e não compreendiam então que o economicismo que combatiam podia ser criticado de modo mais eficaz através do recurso à “crítica da economia política” marxiana. Ao contrário, tentavam suprir os defeitos do “marxismo”, tomado em bloco, pela introdução de elementos tomados alhures. Socialisme ou Barbarie, apesar de todos os seus méritos na crítica da União Soviética, de um lado continuava vinculada a um banal marxismo sociologista, muito afastado de uma crítica da forma-valor ou do fetichismo e, de outro lado, assimilava de modo não crítico diversas outras disciplinas, como a antropologia e a psicologia. Esta combinação puramente exterior de elementos indiscutíveis em si mesmos levava, naturalmente, a resultados pouco satisfatórios; assim, não surpreende que os Morin e os Castoriadis, após alguns anos, tenham abandonado completamente toda crítica social séria.

Debord é, pois, uma das poucas pessoas capazes de levar a crítica social além das diversas variantes do marxismo do movimento operário que, em 1968, ainda conheceu um falso Verão de São Martinho, antes que o processo de modernização se acabasse e se transformasse em catástrofe. Não era fácil compreender que quase todas as oposições ao capitalismo visaram apenas ao que ainda era exterior à pura forma-valor, e que, consequentemente, era inútil persistir nessa via. Tal inversão de perspectiva tinha sido percebida primeiro no domínio as artes. (57)

A arte vanguardista e formalista, entre 1850 e 1930, muito mais do que uma elaboração de novas formas, foi um processo de destruição das formas tradicionais. Este processo tinha uma função eminentemente crítica, ligada à fase histórica em que se impunha a organização social baseada no valor de troca. A relação entre a arte moderna e o desenvolvimento da lógica do valor de troca era ambíguo sob mais de um aspecto. De um lado, a arte moderna registrou negativamente a dissolução das formas de vida das comunidades tradicionais e de seus modos de comunicação. O choque por meio da “incompreensibilidade” visava a tornar evidente esse desaparecimento. Já muito antes das vanguardas em sentido estrito, a nostalgia de uma “autenticidade” do vivido, que havia sido perdida, se tornara um dos temas centrais da arte, como em Flaubert. De outro lado, a arte viu nessa dissolução uma libertação de novas potencialidades e um acesso a horizontes não explorados da vida e da experiência. Entusiasmou-se por um processo que consistia, de facto, na decomposição das formações sociais pré-burguesas e na libertação da individualidade abstracta das coerções pré-modernas. Entretanto, a arte concebia essas coerções não só em termos de exploração e de opressão política – como era o caso do movimento operário – mas igualmente sob o ângulo da família, da moral, da vida quotidiana e também das estruturas da percepção e do pensamento. A arte, bem como o movimento operário, não sabia reconhecer nesse processo de dissolução o triunfo da mónada abstracta do dinheiro. Acreditava (58) poder reconhecer nele o início de uma desagregação geral da sociedade burguesa, incluindo o Estado e o dinheiro, ao invés de ver aí uma vitória das formas capitalistas mais desenvolvidas – como o Estado e o dinheiro – sobre os restos pré-capitalistas. É assim que a arte moderna traçou, involuntariamente, a via para o triunfo integral da subjectividade estruturada pelo valor sobre as formas pré-burguesas. A arte moderna esperava que a desorganização dos modos de produção, realizada pela evolução capitalista, tivesse como consequência lógica provocar a reversão das superestruturas tradicionais, desde a moral sexual até o aspecto das cidades. Acusava a “burguesia” de se opor a isso com o objectivo de conservar seu poder. Mas a arte enganava-se pesadamente quando pensava que seria necessário reivindicar essa desorganização. “A destruição foi minha Beatriz”, de Mallarmé, realizou-se de modo muito diferente do que pudera imaginar o poeta. A própria sociedade capitalista é que arruinou tudo. Efectivamente, foi possível assistir à abertura de novas vias e ao abandono dos modos tradicionais, não para libertar a vida dos indivíduos de vínculos arcaicos e asfixiantes mas, sobretudo, para destruir todos os obstáculos à transformação total do mundo em mercadoria. A entrega às pulsões inconscientes, o desprezo pela lógica, as surpresas inesperadas, as combinações arbitrárias e fantásticas foram realizados pelo progresso da máquina económico-estatal, mas de um modo bem diferente do que esperavam os surrealistas. A decomposição das formas artísticas torna-se então completamente isomorfa ao estado real do mundo e não pode mais exercer uma acção de choque. A falta de sentido e a afasia, como em Beckett, a incompreensibilidade e o irracionalismo não podem parecer senão uma parte integrante e indistinta do mundo circundante, transformando-se de crítica em apologia.

Os representantes da parte mais consciente das vanguardas foram os primeiros a reconhecer que a continuidade de seu trabalho crítico exigia uma revisão. Em 1948, André Breton – a quem se pergunta se os surrealistas,, em sua sede de romper a paz burguesa, não teriam, em 1925, chegado a saudar a bomba atómica – responde: “Em La Lamp dans l’horloge […] vocês verão que é sem dificuldade que me explico sobre esta mudança de importância fundamental: a aspiração lírica ao fim do mundo e sua retractação, esta em relação às novas circunstâncias” (59). Em 1951, Breton expressa, com algumas palavras eficazes, a grande mudança que se produziu em menos de três décadas e que, acrescentamos nós, desde então não deixou de se ampliar infinitamente. “Na França, por exemplo, o espírito estava ameaçado de enrijecimento, ao passo que hoje está ameaçado de dissolução” (60).

Os situacionistas eram os sucessores dessa autocrítica das vanguardas. O “irracionalismo” declarado de inúmeros dentre eles constituía um protesto contra o aprisionamento, nos limites de uma “racionalidade” estreita e duvidosa, das potencialidades humanas prefiguradas no imaginário e no inconsciente. É bastante característico do desenvolvimento deste século a crítica do modo de vida da sociedade capitalista ter sido inaugurada pelos surrealistas como uma crítica do racionalismo excessivo, enquanto os sucessores dessa crítica tiveram que constatar que mesmo o racionalismo mesquinho do século XIX, do qual os surrealistas tanto zombaram, hoje apareceria como bem comportado em comparação com a irracionalidade galopante do espectáculo. Debord critica nos surrealistas exactamente seu irracionalismo, doravante útil à sociedade existente, e insiste sobre a necessidade de “racionalizar mais o mundo, primeira condição para torná-lo apaixonante” (Rapp., 691-92). Se os surrealistas apresentaram, em 1932, suas “pesquisas experimentais sobre algumas possibilidades de embelezamento irracional de uma cidade”, Potlatch apresentou, em 1956, um divertido “Projecto de embelezamentos racionais da cidade de Paris” (Potl., 203-207). Do surrealismo, os situacionistas recusavam exactamente a concepção idealista da história que só vê nela a luta entre o irracional e a tirania do lógico-racional (IS, 2/33 ). Igualmente, os situacionistas não gostavam da desordem como um fim em si: segundo Debord, “a vitória será daqueles que souberem provocar a desordem sem gostar dela” (IS, 1/21).

É possível fazer considerações semelhantes a respeito da cultura humanista e da relação com o passado. Os situacionistas sempre desprezaram o humanismo das boas almas que, afinal de contas, não pedem nada mais do que um pequeno lugar no espectáculo; sustentavam que é inútil opor os maus mass-media à boa “grande cultura” ou à verdadeira satisfação artística (IS, 7/21 ) que, na realidade, não são menos alienadas. No início os situacionistas afirmavam que “os artistas livres e a polícia” disputam o controle das novas técnicas de condicionamento dos homens, ao passo que “é toda a concepção humanista, artística, jurídica, da personalidade inviolável, inalterável, que está condenada. Nós a vemos desaparecer sem desgosto” (IS, 1/8).

Mas quanto à apreciação das obras do passado, Debord mudou de opinião. Em 1955, segundo o relatório de uma reunião letrista dedicada aos já evocados “embelezamentos racionais da cidade de Paris”, “declara-se partidário da destruição total dos edifícios religiosos de todas as confissões”; concorda com os outros letristas quanto a “rechaçar a objecção estética, fazer calar os admiradores do portal de Chartres. A beleza, quando não é uma promessa de felicidade, deve ser destruída” (Potl., 204). Depois de muitos anos, acha, ao contrário, que a coisa mais assombrosa hoje seria ver “ressurgir um Donatello” (OCC, 225), que as restaurações “à americana” da Capela Sistina ou de Versalhes são um crime (Com., 72) e que alguns edifícios antigos, pelas mesmas razões que alguns livros, são tudo o que ainda não foi transformado pela indústria moderna (Com., 23). No começo, os situacionistas queriam ser os “partidários do esquecimento” (IS, 2/4 ); dificilmente podiam prever que o próprio espectáculo se faria o portador do esquecimento de todo o passado histórico e da destruição de todas as “velharias” que dificultavam seu progresso, sem facilitar em nada o projecto revolucionário. O passado, imperfeito e às vezes execrável, torna-se então um mal menor e, amiúde, merece ser defendido. Debord escreve em 1989: “Quando ‘ser absolutamente moderno’ tornou-se uma lei especial proclamada pelo tirano, o que o escravo honesto teme acima de tudo é que possa ser suspeito de passadista” (Pan., 83) (61). O que, no passado, se acreditava uma contestação radical da sociedade burguesa, na realidade serviu apenas para se livrar do que já era caduco e, de todo modo, destinado a ser varrido pelo triunfo da mercadoria. Debord faz uma alusão a isso em Guy Debord, son art, son temps, aproximando a revolta dadaísta – isto é, um dos momentos a que os situacionistas mais se referiram – daquilo que pode existir de mais desprezivelmente moderno e que qualifica de “dadaísmo de Estado”, a saber, as colunas estriadas de D. Buren no Palais Royal, comparando-as, depois, com os “códigos de barra” das mercadorias contemporâneas. De facto, os dadaístas, como outros movimentos iconoclastas, eram involuntariamente os precursores dos urbanismos modernos. O que estes não podem destruir, devem, pelo menos, transformar de modo a lhe retirar toda espessura histórica e, portanto, toda lembrança de um passado diferente do espectáculo. Combinando o pátio do Louvre ou o Palais Royal com um elemento arquitectónico que nada tem a ver, esses edifícios são reduzidos à condição de simples bastidores de teatro que parecem tão artificiais quanto o resto.

Durante muito tempo, a tarefa da crítica social foi combater o “velho”, dos centros históricos até as filosofias clássicas, da família até as profissões tradicionais. Uma primeira observação que se deve fazer a esse respeito é que o poder se apropria de muitas inovações propostas ou concretizadas por seus contestatários. A prática do afastamento, tal como foi definida pelos situacionistas, permaneceu um epifenómeno diante desse gigantesco afastamento que foi aplicado a todas as tendências revolucionárias do século. Também os situacionistas sabiam disto: “O poder não cria nada, recupera” (IS, 10/54). Mas não se pode falar de afastamento a não ser referindo-se às intenções subjectivas dos contestatários. O conteúdo objectivo de suas acções geralmente acompanhava a tendência profunda do desenvolvimento da sociedade da mercadoria. Pode-se citar um exemplo em que os situacionistas foram verdadeiros pioneiros: o desprezo pela ética do trabalho e a consideração do trabalho como uma pura fonte de ganho, ainda necessária momentaneamente. Hoje esse ponto de vista é aceite por quase todo mundo, sem abalar em nada o funcionamento da “sociedade do trabalho”. Ao contrário, a organização espectacular soube tirar proveito da dissolução de todas as formas de associações profissionais, da perda das competências específicas e da ausência generalizada de identificação com a própria profissão, o que fortalece o desaparecimento de todo aspecto qualitativo e a disponibilidade para qualquer crime. O próprio Debord observa nos Commentaires: “seria desnorteante pensar no que foram, recentemente, os magistrados, os médicos, os historiadores, e nas obrigações imperativas, que amiúde reconheciam como próprias nos limites de suas competências” (Com., 35), ao passo que hoje se desencadeou “um fim paródico da divisão do trabalho” (Com., 24). Uma outra antecipação situacionista, que afinal mostrou estar em sintonia com a evolução das últimas décadas, consistia em criticar como “alienante” ou “espectacular” qualquer actividade que não visasse à satisfação imediata de suas próprias necessidades ou de seus desejos. Por mais que se justificasse, na década de 60, a zombaria do militante político que esquece sua miséria identificando-se com acontecimentos longínquos ou com acções de chefes políticos, ela é uma antecipação do homem contemporâneo que se recusa a ouvir falar de guerras e de desastres porque “não lhe dizem respeito”. Evidentemente, tais efeitos não eram previstos nem previsíveis.

Concluindo, pode-se dizer que muitos dos aspectos mais fortes da teoria de Debord inscrevem-se na linha de continuidade e de autocrítica do esclarecimento, isto é, da “dialéctica do esclarecimento” (62). Entende-se por “esclarecimento”, aqui, a definição que lhe deram Adorno e Horkheimer: ” O Aufklärung, no sentido mais amplo de pensamento em contínuo progresso, sempre teve por objectivo libertar os homens do medo e torná-los soberanos”. (63) O esclarecimento sempre se empenhou em revelar que as forças que dominam a sociedade são de origem humana, ou que, de qualquer modo, é possível submetê-las a um controle racional por parte do homem. Durante muito tempo a religião foi seu principal alvo, e Debord considera o espectáculo como “o herdeiro da religião” (Sde, § 20; IS, 9/4): em ambos, a humanidade contempla as próprias forças separadas. Não é por acaso que formas de “fetichismo” estão presentes na religião e na produção moderna; Debord também compara a arte à religião. O desenvolvimento material retirou, doravante, a legitimidade de todas as formas que antes foram a causa e o efeito da impossibilidade de realizar directamente os desejos, enquanto, agora, ” a construção das situações substituirá o teatro apenas no sentido em que a construção real da vida substituiu cada vez mais a religião” (IS, 1/12). O programa para abolir tudo o que é separado do indivíduo – a economia, o Estado, a religião, as obras de arte – a fim de que ele possa ter acesso directo à construção de sua vida quotidiana é, sem dúvida nenhuma, um programa que continua a obra de desmistificação empreendida por Marx e Freud. Segundo a definição de Kant, o Aufklärung é “a saída para o homem de sua condição de menoridade”; segundo Debord, o espectáculo mantém os homens num estado de infantilismo, condicionando a “necessidade de imitação que o consumidor experimenta” (Sde, § 219), ao passo que “não há, em parte alguma, acesso à idade adulta” (OCC, 45).

A teoria de Debord é uma crítica tanto do esclarecimento incompleto quanto de seus reversos. Adorno e Horkheimer analisaram como o Aufklärung cai no mito e transforma-se numa nova dominação quando sua racionalidade se autonomiza e se torna fetichismo da quantidade. O espectáculo descrito por Debord, fruto da racionalização capitalista, é também um novo mito e uma nova religião nascidos de um esclarecimento irreflectido. É uma separação das forças humanas de um projecto global consciente, que acaba levando ao que A dialéctica do esclarecimento descreve assim: “Os homens esperam que esse mundo sem saída seja posto em chamas por uma totalidade que eles próprios constituem e em relação à qual nada podem”. (64)

A actualidade dos conceitos de Debord não está mais em querer generalizar uma cultura do jogo que o progresso teria tornado possível, mas no facto de haver dado um novo fundamento à observação do jovem Marx de que a economia política é “a negação total do homem” (Com., 58). Disso resulta ao menos uma vantagem para o projecto de libertação: pela primeira vez, pode mobilizar em seu proveito o instinto de conservação (65). Em seu filme de 1961, Debord observa que “a questão não é constatar que as pessoas vivem mais ou menos pobremente e, sim, sempre de uma maneira que lhes escapa” (OCC, 44). Mais de 30 anos depois, as consequências de uma sociedade organizada dessa forma tomaram-se evidentes. Uma nova teoria crítica – de que estes tempos necessitam com urgência – e a práxis que dela deve decorrer saberão reconhecer de modo adequado o valor da contribuição de Debord.

NOTAS

1 Daniel Lindenberg, Le Marxisme introuvable, Calmann-Lévy, Paris, 1975, p. 243. A reflexão que segue baseia-se sobre algumas conclusões deste livro.

2 Op. cit., p. 9.

3 Reedição integral em dois volumes: Privat, Toulouse, 1983.

4 Encontra-se uma crítica severa de alguns desses autores (Glucksmann, Castoriadis etc.) numa perspectiva próxima da dos situacionistas in Jaime Semprun, Précis de récupération, Champ Libre, Paris, 1976.

5 Gombin, op. cit., p. 70, vê a marca distintiva de todo o esquerdismo, mesmo em relação aos “comunistas extremistas”, na recusa ao determinismo economicista.

6 É o que afirma Vincent Descombes, Le Même et l’autre. Quarante-cinq ans de philosophie française (1933-1978), edições Minuit, Paris, 1979, p. 24. Este livro, apesar de seus numerosos defeitos, pode ser utilizado para a leitura ex negativo da teoria situacionista – que Descombes nunca menciona – e para ver em que ela se distingue das outras teorias de sua época.

7 Claude Lefort era aluno e amigo de Merleau-Ponty. Encarregou-se da edição de seus textos póstumos.

8 Descombes, op. cit., p. 13.

9 Ele, ao contrário, conheceu pessoalmente o ensino de outro grande intérprete francês de Hegel, Jean Hyppolite, tendo assistido a seus cursos no College de France, por volta de 1967.

10 New York 1imes, 31 de dezembro de 1969, citado in M. Poster, Existencial Marxism in Postwar France. From Sartre to Althusser, Princeton, 1975, p. 368.

11 Descombes, op. cit., p. 150.

12 Já o grupo COBRA havia recusado o culto surrealista do irracional.

13 Debord e Canjuers, Préliminaires, op. cit., p. 344.

14 Tal visão – alguns se surpreenderão com isso – é muito próxima da de Marx, tão amiúde acusado de “fetichismo do trabalho”. Marx lembra a composição musical como exemplo de uma actividade que combina o aspecto lúdico com uma aplicação séria (Cf. Principes d’une critique de l’économie politique, in Oeuvres, vol. II, op. cit., p. 289).

15 Os situacionistas recusavam um dos slogans mais difundidos de Maio de 68, “a imaginação no poder”, porque era “pobre” e “abstracto” (IS, 12/4).

16 Gombin, op. cit., p. 167.

17 É o que afirma D. Cohn-Bendit, citado in R.J. Sanders, Beweging tegen de schijn, Huis aan de Drie Grachten, Amsterdam, 1989, p. 271.

18 Le Débat, nº 50, op. cit., p. 59.

19 Lindenberg, op. Cit., p. 30.

20 A ideia de uma dialética não idêntica, como a que T. W. Adorno tentou elaborar, parece não ter sequer aflorado para esses pensadores.

21 Descombes, op. cit., p. 93.

22 Le Débat, n° 50, op. cit., p. 176.

23 Se se quer descer a níveis mais baixos, pode-se citar Il teatro nella società dello spettacolo, sob a direcção de Claudio Vicentini, Il Mulino, Bologna, 1983, em que este afirma que ninguém nega a espetacularização, mas – pergunta-se ele – por que, então, fazer dela uma avaliação negativa?

24 Francesco Guicciardini, Ricordi politici e civili, Feltrinelli, Milão, 1983, Redazione C, § 141.

25 Este parágrafo não consta da versão francesa (N. T.).

26 Debord, Panégyrique. Tome second, Arthême Fayard, Paris, 1997, ” Avis”.

27 Identificar o “sujeito revolucionário” com um proletariado cujo conceito havia sido exageradamente ampliado continuava, de toda forma e de modo geral, mais próximo da realidade do que identificá-lo com um grupo sociológico bem preciso, como fez Marcuse definindo os estudantes como um “sujeito revolucionário”.

28 Debord acrescenta que se trata aí da definição de dinheiro dada por Hegel na Realphilosophie de Iena.

29 Não seria menos equivocado atribuí-la a Lukács; este rechaça “a filosofia irracionalista de Hamann a Bergson” (HCC, 140).

30 Para ter sido influenciado por ele, não é absolutamente necessário que Debord o tenha estudado atentamente; durante muito tempo, toda a vida cultural francesa foi impregnada pelo bergsonismo.

31 Theodor W. Adorno, Dialectique négative (1966), trad. fr. Payot, Paris, 1978, p. 151.

32 §§ 2,102,105,106, 107,108, 110,111, 206.

33 Debord, Considérations, op. cit., p. 55.

34 Originalmente, os situacionistas concebiam o afastamento como uma negação do culto burguês do autêntico. M. Bernstein considerava “reaccionários” problemas do género “o verdadeiro buffet Henrique II, o falso buffet Henrique II, a falsa tela que não é assinada” (IS, 2/27) – mas essas frases são de 1958, quando a falsificação generalizada estava apenas começando.

35 Este parágrafo não se encontra na versão francesa (N. T.).

36 “Forma do valor simples, singular, ou seja, acidental: […] vinte metros de tecido = um casaco, ou vinte metros de tecido têm o valor de um casaco […]. O segredo de toda forma de valor reside nessa forma simples de valor. A dificuldade real e específica está, pois, em sua análise” (Marx, Il capitale, tr. it. Editori Riuniti, Roma, 1980, vol. I, p. 80 [MEW 23/63]. De facto, Marx dedica-se de modo longo à sua análise; a forma do valor total, a forma geral do valor e a forma do dinheiro vêm depois, rapidamente e como simples conclusão.

37 Determinando assim a “forma da célula” da sociedade burguesa, torna-se claro, aliás, que a negação hegeliana do princípio da não-contradição, seu famoso início com “ser=nada”, corresponde exactamente à realidade do mundo das mercadorias.

38 Por exemplo, in Dialectique négative, op. cit., p. 119-121.

39 Op. cit., p. 151-152.

40 Op. cit., p. 293.

41 É o que declara um comunicado da IS que critica severamente Vaneigem, logo após sua demissão. No Traité de Vaneigem, pode-se, efectivamente, identificar o desejo de uma total correspondência entre si e o mundo e que, às vezes, parece confinar-se ao misticismo – tendência que apareceu em diversas ocasiões nas fileiras dos letristas e dos situacionistas.

42 Enquanto outros falavam do “fim da história”, os situacionistas queriam que, enfim, se entrasse na história verdadeira e se saísse da pré-história (IS, 4/36; VS, 34).

43 Marx, Manuscrits, op. cit., p. 92.

44 Um medo que, por exemplo, incitava Adorno a aceitar a sociedade contemporânea como um mal menor, temendo que qualquer tentativa de mudança pudesse levá-la a algo pior.

45 Cf., por exemplo, a sequência do artigo “Le mouvement révolutionnaire sous le capitalisme moderne”, publicado em Socialisme ou Barbarie, n° 32 (1961), reproduzido in Castoriadis, Capitalisme moderne et révolution, vol. II, op. cit.

46 Assim, por exemplo, in Jacobs-Winks, At Dusk, Berkeley, 1975, p. 42-43.

47 Essa força tão grande, que Debord estava convencido de que seu amigo G. Sanguinetti havia tornado pública exactamente no momento do sequestro de Moro, sua afirmação de que este sequestro era orquestrado pelos serviços secretos, isso teria podido fazer fracassar toda a encenação. Na sequência, Sanguinetti publicou, em 1979, Du terrorisme et de l’Etat. La théorie et la pratique du terrorisme divulguées pour la premiere fois. Obra publicada em tradução francesa em 1980, sem o nome do editor. Cf. Champ Libre, Correspondance, op. cit., vol. II, p. 118-124.

48 Pode-se notar aqui o risco de se resvalar para uma noção “des-historicizada” da alienação, como se dá quando se enfatiza excessivamente – como faz Histoire et conscience de classe – o efeito reificador da divisão do trabalho que, na realidade, existiu bem antes do capitalismo.

49 Declara isso explicitamente in “Cette mauvaise réputation…”, op. Cit., p. 31.

50 Op. cit., p. 42, 107.

51 Op. cit., p. 30. A melhor análise desse processo encontra-se em Robert Kurz, Der Kollaps der Modernisierung, Eichborn, Frankfurt a.M., 1991. Tr. Br. O Colapso da Modernização, Paz e Terra, S. Paulo, 1993.

52 Os que se obstinam em utilizar categorias como “imperialismo” quando, de modo evidente, o capital não tem hoje nenhum interesse em ir conquistar espaços onde não há mais nada a ganhar e que seriam apenas pesos mortos, não compreendem melhor tal mudança de época. Os países do Leste e do Sul, nesses últimos tempos, pedem de joelhos para serem explorados em troca de uma sobrevivência, mas os pretensos “centros imperialistas” só têm vontade de intervir eficazmente nas zonas do mundo que estão em crise.

53 Os jovens letristas teriam podido, igualmente, descobrir o potlatch em Socialisme ou Barbarie, onde C. Lefort havia feito uma resenha do Essai sur le don para sua reedição (1950). J. Huizinga, autor de Homo ludens (1938), parcialmente apreciado por Debord, também lembra o potlatch.

54 “Le parti situationniste”, critique de La Société du Spectacle, in La QuinzaineLittéraire,1-15.2.1968.

55 Debord e Canjuers, Préliminaires, op. cit., p. 342

56 Autores como Lefebvre e Sartre preferem o conceito de “aço”, que é puramente subjectivo, ao de “trabalho”, que implica uma relação entre homem e natureza.

57 Para maior precisão sobre o que segue, permitimo-nos remeter a nosso artigo “Lo scacco dell’arte. Le teorie di Theodor W. Adorno e di Guy Debord”, in Iter, n° 7 (1994) e, sobretudo, à sua versão modificada, publicada em alemão sob o título “Sic transit gloria artis”, in Krisis, no 15 (1995) e em espanhol, com o mesmo título, in Mania, n. 1 (1995). Versão portuguesa em planeta.clix.pt/obeco.

58 Às vezes de modo explícito, como entre os dadaístas, os surrealistas, os futuristas e os construtivistas russos; em outros casos, de forma implícita.

59 André Breton, Entretiens, Gallimard, Paris, 1969, p. 271.

60 Op. cit., p. 218.

61 Isso não significa saudosismo de uma idade de ouro perdida: “Evoquei, no Espectáculo, as duas ou três épocas em que se pode reconhecer uma certa vida histórica no passado e seus limites. Ao se considerar isso friamente, fica claro que, no conjunto da existência do velho mundo, não houve grande coisa para se perder” (De uma carta de 26/2/72, de Debord para D. Denevert, reproduzida in Chronique des secrets publics, Centre de Recherches sur la Question Sociale, Paris, 1975, p. 23).

62 Os situacionistas sempre manifestaram uma afinidade electiva em relação à filosofia do Iluminismo do século XVIII, e M. Khayati havia alimentado o projecto de editar uma nova Enciclopédia (IS, 10/50-55).

63 Max Horkheimer / Theodor W. Adorno, La Dialectique de la Raison, Gallimard, Paris, 1974, p. 21. Tr. Br. Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985.

64 0p. cit., p. 45.

65 Como expressa muito bem o Discours préliminaire (1984) da Encyclopédie des nuisances, p. 9-10.

Abreviaturas das obras mais citadas

.Cdvq: Henri Lefebvre, Critique de la vie quotidienne, vol. I: Introduction, L’Arche, Paris, 1946; segunda edição com um novo prefácio, 1958; vol. II: Fondements d’une sociologie de la quotidienneté, L’Arche, Paris, 1961; tr. it. dos dois volumes: Vincenzó Bonazza, Dedalo, Bari, 1977.

.Com.: Guy Debord, Commentaires sur la société du spectacle, Gallimard, Coleção Folia, Paris, 1996; tr. it. Commentari sulla società dello spettacolo, SugarCo, Milão, 1990; tr. port. Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo, Mobilis in Mobile, Lisboa, 1995.

.HCC: Gyorgy Lukács, Histoire et conscience de classe, tradução de Kostas Axelos e Jacqueline Bois, nova edição ampliada, Ed. de Minuit, Paris, 1984; Storia e coscienza di classe, tr. it. de Giovanni Piana, Sugar, Milão, 1967, 1988, 7a ed.

.IS: lnternationale Situationniste, Arthême Fayard, Paris, 1997 (o primeiro número indica o número da revista; o segundo, o da página)

.OCC: Guy Debord, Oeuvres cinématographiques completes, Gallimard, Paris, 1994; tr. it. Opere cinematografiche complete, Arcana, Roma, 1980.

.Pan.: Guy Debord, Panégyrique, Tome premier, Gallimard, Paris, 1993; tr. it. Panegírico, Castelvecchi, Roma, 1996; tr. port. Panegírico, Antígona, Lisboa, 1995.

.Potl.: Guy Debord présente Potlatch, Gallimard, col. Folio, Paris, 1996.

.”Préface à la quatriême édition italienne de la Société du Spectacle”, in Commentaires, ed. cit.; tr. it. in La società dello spettacollo, Vallecchi, Florença, 1979; tr. br. in A sociedade do espectáculo, Estela dos Santos Abreu, Contraponto, Rio de Janeiro, 1997; tr. port. Prefácio à Quarta Edição Italiana de A Sociedade do Espectáculo, Mobilis in Mobile, Lisboa, 1995.

.Rapp.: Guy Debord, Raport sur la construction des situations et sur les conditions de l’organisation et de l’action de la tendance situationniste internationale, in Internationale Situationniste, Arthême Fayard, Paris, 1997.

.Sde: Guy Debord, La Société du Spectacle, Gallimard, Paris, 1992; tr. it. La società dello spettacollo, in Commentari sulla società dello spettacollo, SugarCo., Milão, 1990; tr. br. A sociedade do espectáculo, Contraponto, Rio de Janeiro, 1997; tr. port. A Sociedade do Espectáculo, Mobilis in Mobile, Lisboa, 1995 (1972). Citações conforme parágrafos (§).

.VS: Guy Debord e Sanguinetti, La Véritable scission dans l’Internationale, Arthême Fayard, Paris, 1998.

IS indica igualmente a organização do mesmo nome.

IL indica a Internacional Letrista.

As edições Champ Libre, no outono de 1984, passaram a se chamar edições Gérard Lebovici; é sob este nome que foram reeditadas as obras publicadas anteriormente. Desde 1992, as edições Ivrea (nova denominação) não dispõem mais das obras de Debord. É por esta razão que, a maior parte das vezes , se refere a única edição geralmente disponível no mercado.

*(Capítulo III do livro de Anselm Jappe Guy Debord)