O presente n° 23 está dedicado à temática fulcral “Pós-política e administração de crise democrática” (que, de certo modo e com enfoques diferentes, conforme já insinuámos anteriormente, deverá continuar a ser desenvolvida no n° 24).
Franz Schandl apresenta, no seu artigo, o “fenómeno Haider” contra a corrente das interpretações predominantes. Em sua opinião, Haider não pode ser apreendido de forma adequada com base na designação de “nazi”, embora ele recorra, de um modo selectivo, a elementos das ideologias fascista e nacional-socialista. Antes, ele deve o seu sucesso e a sua perigosidade à descolagem bem sucedida do extremismo de direita tradicional. O “Haiderismo” não se perfila em oposição à democracia e à economia de mercado constituindo, antes, a sua expressão adequada nos tempos da respectiva decadência. A característica de Haider é a simbiose ideológica bem sucedida entre a euforia em torno da economia de mercado e um pseudo-anticapitalismo reaccionário de fundo nacionalista. A este respeito, Haider não se distingue de forma essencial de outras figuras políticas que vão sendo trazidas à superfície no âmbito do processo de decomposição do sistema politico-partidário e no decurso da administração de crise capitalista (que tem de ser flanqueada de argumentos “pós-políticos” e ideológicos). No entanto, o que o distingue é uma especial habilidade para manusear os conteúdos de uma forma perfeitamente flexível. Não defendendo qualquer programa consistente, ele atende com mestria os humores perigosos do bom senso da economia de mercado e da democracia. Assim consegue conciliar, de forma aparente, os interesses e as exigências particulares mais contraditórios. Em certa medida, os “Liberais” podem, por isso, ser definidos como uma corrente pós-política em que os potenciais regressivos do pós-modernismo vêm a si de um modo perfeitamente indisfarçado.
Gerhard Scheit, no seu artigo “Racismo Democrático, Outsourcing do Estado”, debruça-se sobre a mesma temática a um nível um pouco mais geral. Também ele caracteriza Haider como um democrata pós-moderno mas, ao mesmo tempo, como um racista clássico. Ambas estas características, longe de se excluírem mutuamente, constituem pressupostos uma para a outra. A aleatoriedade de Haider no que diz respeito aos conteúdos encontra os seus limites onde a “pátria” acaba e os perigos para a “comunidade nacional” começam. A “identidade nacional” é a perna de apoio que permite à perna de remate o tão mediático desprendimento. Haider constitui um caso proeminente e exemplar do “extremismo do centro” que mais facilmente pode ser apreendido como um racismo democrático. A “comunidade nacional” dos nacional-socialistas permanece, neste contexto, uma referência consciente ou inconsciente que, embora já não possa ser mobilizada da mesma forma, agora se torna eficaz em cada mónada monetária. O que ainda foi encetado pelos nazis enquanto programa de estado, com a finalidade alucinada de “elevar a pureza da raça ariana”, hoje é reorganizado democraticamente sob a forma de uma selecção social-darwinista individualizada. A isso corresponde o entrosamento que se desenha entre o estado e o banditismo, para o qual o “partido dos rapazinhos” FPÖ não é o único a apontar. As chamadas “zona nacionalmente libertadas” no Leste alemão e o grande número de ataques racistas configuram um “outsourcing” das funções do estado e confirmam o temível sucesso da “democracia directa” que Haider representa.
Ernst Lohoff, com a sua análise “Alguém tem de fazer de mastim. Anotações a propósito da nova social-democracia e da sua missão histórica”, volta a debruçar-se sobre a transição pós-política tendo como referências o “New Labour”, no Reino Unido, e a coligação SPD-Verdes, na RFA. Após a passagem pela história do keynesianismo e da social-democracia, comum desde o fim da segunda guerra mundial, torna-se evidente que a função sistémica da nova social-democracia ou do “novo centro” consiste, no seu essencial, em organizar, sob o rótulo do “pragmatismo”, a repressão social contra os excluídos, mascarando-a com os resquícios da ideologia do trabalho da velha social-democracia; acresce que o keynesianismo deixou de constituir um programa coerente de uma reforma assente na política social, como o efabula, com toda a seriedade, um socialismo esquerdista segundo um Oskar Negt ou um Joachim Bischoff, limitando-se ao papel de um cenário móvel no seio do circo mediático. Trata-se de, numa aparente demarcação do neoliberalismo, não reconstituir porventura a “exequibilidade política” em termos reais, mas introduzi-la enquanto fantasma, no processo social de simulação. Neste sentido, um conteúdo coerente seria, antes de mais, prejudicial para a tarefa da administração da crise, onde a consistência real da repressão social tem de ser secundada pelo acompanhamento escrupuloso das ondas e dos humores de uma consciência de massas que já nem sequer é capaz de conceber algo semelhante a uma coerência política. Nesta medida, não só pode ser atestado a Schröder e Blair um estreito parentesco com um Haider, como a nova social-democracia talvez também seja a força política para, com o seu “policy mix” específico, levar por diante as necessárias medidas de mastim pós-políticas.
Robert Bösch, nas suas teses “Entre a Omnipotência e a Impotência”, debruça-se sobre a questão em que é que consiste a psicopatologia estrutural do sujeito burguês (desde sempre constituído como “masculino”), demonstrando que a psicanálise freudiana já contém, de forma implícita, as respectivas respostas se a interpretarmos, contrariamente à sua própria concepção de si própria, de um modo não antropológico e rejeitarmos a sua ideia central segundo a qual a natureza dos impulsos seria ahistórica. O que há que perguntar não é qual seria o “destino” histórico a que o impulso “natural” é sujeito ao ingressar na esfera do social mas, antes de mais, como pode dar-se o caso do indivíduo burguês se desdobrar em dois mundos aparentemente inconciliáveis – aqui, a “natureza” impulsiva, além, a sociedade repressiva – que, agora, têm de ser de algum modo “intermediados”. Trata-se, portanto, de superar a identidade negativa dos pontos de vista da “repressão social” (Wilhelm Reich) versus a “produtividade do poder” (Michel Foucault) na lógica dinâmica do sujeito burguês enquanto contradição processante. A fim de trazermos à luz do dia esta lógica, já formulada em Freud de forma implícita, temos, no entanto, de entender as contradições inerentes à sua teoria e às concepções psicanalíticas que nela entroncam (e que, na maior parte dos casos, intentam resolver essas contradições de um modo unilateral) como expressão ideológica das contradições da socialização do valor. Assim, o autor inaugura uma abordagem socialmente crítica, em nossa opinião radicalmente nova, da psicanálise, tal como já a esboçou ao debater-se com Jacques Lacan, na última edição da Krisis. A segunda parte da crítica de Lacan, infelizmente, requis um pouco mais tempo do que o originalmente previsto e, por isso, sairá apenas na próxima edição da Krisis (n° 25).
A rubrica “Recensões, comentários, glosas” começa com um artigo que (tal como alguns outros nesta rubrica) continua a desenvolver a temática central. No seu ensaio “A Comunidade dos Democratas em Itália”, Anselm Jappe analisa o papel e a função de Silvio Berlusconi e dos pós-estalinistas italianos para concluir que o “modelo italiano”, no fundo, tem evidenciado desde sempre características pós-políticas e, nessa medida, se encontra muito mais adequado a tempos pós-modernos do que o defunto “modelo alemão”. Karl-Heinz Wedel demonstra, no seu comentário “Pedro e o Lobo”, que a viragem biologista e social-darwinista do filósofo da moda (Peter) Sloterdijk já se encontrava prefigurada, sem qualquer dúvida, na lógica da teoria pós-moderna do discurso com que este se tem perfilado até à data. Franz Schandl contribui para a temática central com duas recensões: sob o título “Em diante rumo à ordem da pós-escassez”, ele versa as banalidades da “segunda Modernidade” com recurso ao livro “Para além da esquerda e da direita” de Anthony Giddens; para além disso, ele demonstra de forma exemplar, no livro de Josef Cap e Heinz Fischer (editores) “Marcas vermelhas para o século XXI”, o carácter deploravelmente destituído de nível e a laborar inteiramente em ponto morto do “discurso teórico” da actualidade (“That’s it? – Forget it!”). Udo Winkel, na sua recensão detalhada com o título “A Revolução enquanto Poder Ordenador”, chama a atenção para o livro extremamente digno de ser lido do historiador social Wolfgang Deßen “A Lei e a Violência” – uma interpretação da Revolução de 1848/49, com base no exemplo de Berlim, diametralmente oposta à das afirmativas publicações devotadas à sua exaltação. Dreßen demonstra, de resto, de um modo inteiramente consentâneo com o nosso a duplicidade do conceito democrático de revolução que, desde o início, foi manuseado no sentido de um instrumento para incutir disciplina. No seu segundo artigo, “Controlo Estatal ou Associação”, Udo Winkel recapitula as duas correntes principais do debate em torno da socialização dos anos 20. Finalmente, Roger Behrens debruça-se sobre um objecto de recensão pouco usual, nomeadamente o novo catálogo da IKEA: “Descobre as possibilidades. Ou: Como se mobila a crise”.
Já chamámos a atenção para o livro que é publicado em simultâneo com esta edição da Krisis, “O Sexo do Capitalismo” de Roswitha Scholz, assim como para o “Livro Negro do Capitalismo” de Robert Kurz e a nossa colectânea “Fim de turno! 11 ataques contra o trabalho”, publicada em paralelo com o “Manifesto contra o Trabalho”. Queremos também aproveitar a oportunidade para anunciarmos e recomendarmos uma nova publicação de Gerhard Scheit: o seu livro “Estado Oculto, Dinheiro Vivo. Sobre a dramaturgia do antisemitismo” saiu em Novembro de 1999 na editora ça ira de Friburgo. Finalmente chamamos mais uma vez, e muito em especial, a atenção das nossas leitoras e leitores para o revista trimestral “Streifzüge”, publicada em Viena, que divulga artigos interessantes de um largo espectro de autores que se dedicam à crítica do valor, assim como promove debates controversos. (Os índices das últimas edições e a morada para encomendas encontram-se na página seguinte desta revista).
Ernst Lohoff, Norbert Trenkle e Robert Kurz pela redacção da “Krisis”.
Tradução de Lumir Nahodil