31.12.2001 

Auschwitz após educação

Desdobramentos da crítica ao fetichismo das relações sociais em Adorno

Cláudio Roberto Duarte

Resumo:

Em “Educação após Auschwitz” Theodor W. Adorno sugere que as condições sociais objetivas que empurraram a humanidade à barbárie já são a barbárie, e não somente seus resultados mais terríveis. A “educação contra a barbárie” exige portanto uma crítica radical dessas mediações objetivas e subjetivas pressupostas, que, segundo nossa compreensão, aponta para o caráter fetichista da sociedade da mercadoria, do processo (de-)formativo pelo trabalho social abstrato e o atual caráter da ideologia, numa fase de “ideologia zero”. Por outro lado, contra a resignação, aponta para a constituição de uma “imanência fora da imanência” da “abstração real” do trabalho social e da forma-valor.

Palavras-chave: Adorno, fetichismo, formação, semi-formação, ideologia, crítica imanente

“O iluminismo é totalitário” (Horkheimer e Adorno, Dialética do Iluminismo, 1947).

“…atingir além do conceito através do conceito” (Adorno, Dialética Negativa, 1966).

“Abre-te Sésamo, quero sair!” (S. Jerzy Lec, citado por Adorno, Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã, 1969).

1. O teorema marxiano do fetichismo e sua reflexão adorniana como crítica da semi-formação pelo trabalho social abstrato

“Não o sabem, mas o fazem””(Marx, O Capital)

O século da indústria cultural e do Estado intervencionista, da massificação do trabalho e do consumo forçados, o “século de Auschwitz”, aliás sobre cujos portões constava o terrível dístico “O trabalho liberta”, é o da negação das promessas burguesas, nomeadamente daquilo que um dia fulgurou como “formação cultural” (Bildung). No contexto do idealismo alemão a Bildung era promessa de auto-consciência social, maioridade moral e autonomia ética, portanto, “igualdade” e “liberdade” tornadas efetivas no interior da sociedade civil-burguesa. O Bildungsbürger, o “cidadão/burguês culto” ou “bem formado”, seria resultado do esclarecimento do mundo. Mundo, portanto, que, segundo a crença, deixaria de ser “mito”, “destino natural”. Mas em vez disso, como nos diz Adorno, o “espírito objetivo” – a esfera renaturalizada das instituições sociais e da cultura(1) –, no seu desenvolvimento, cristalizou-se no negativo, numa espécie de alienação da alienação: como “semi-formação” (Halbbildung) que tende à universalização social, à universalização da barbárie.

“Naquilo em que a formação cultural se converteu e agora se sedimenta, de modo algum meramente na Alemanha, como uma espécie de espírito objetivo negativo, teria de ser derivado a partir das leis do movimento social e do próprio conceito de formação cultural. Ela se converteu em semi-formação socializada, a onipresença do espírito alienado (entfremdeten Geistes), que, segundo sua gênese e seu sentido, não precede à formação cultural, mas a sucede” (2).

Não se trata, porém, de mera “ideologia”, um problema “localizado” na atmosfera rarefeita das altas “superestruturas sociais”, portanto, na esfera separada da cultura ou da educação, de modo imediato. No momento do radical “desencantamento do mundo”, o problema será bem mais rasteiro, muito mais “prático” e “materialista”: liga-se à velha totalidade objetiva (hoje tão subestimada pela ideologia acadêmica) e ao que se põe como “fundamento” desta sociedade. De início, então, a “semi-formação” – podemos decifrar com Adorno – “é o espírito tomado (ergriffene) pelo caráter de fetiche da mercadoria” (ib.: 181).

Fetichismo foi o conceito dado por Marx à forma dominante da socialização dos indivíduos na modernidade. Pretendia-se à crítica da práxis cega de uma sociedade fundamentalmente configurada como sistema produtor de mercadorias. Seu ponto de ataque era duplo: não só ao fato de que o valor de troca dos produtos era confundido com uma simples coisa útil ou natural, e era, portanto, um “hieróglifo social” para os trocadores do mercado (nele se esconde sempre determinado tempo de trabalho social abstrato), mas essencialmente que o valor já era o terror – pois este é a muleta de socialização radical de uma sociedade contraditória, isto é, uma “sociedade” que não é uma verdadeira sociedade – uma associação consciente de homens livres. Para serem trocados os produtos precisam ser reduzidos realmente à abstração “trabalho”. A lei do valor – formada pelo tempo desse trabalho abstrato socialmente necessário, isto é, pelos índices de produtividade social do trabalho –”age” “por trás das costas dos indivíduos” e se lhes impõe objetivamente como “lei histórico-natural”, através da concorrência empresarial global. Assim, por um lado, aos trocadores, diz Marx, “aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações coisificadas [sachliche] entre as pessoas e relações sociais entre as coisas”(3). Tal é a “aparência objetiva” (ib.: 72) da “sociedade”: as forças produtivas materiais aparecem, desde a circulação simples, identificadas como valores em si mesmas; assim, nas formas mais desenvolvidas, ocorre a completa “aglutinação imediata das relações materiais com sua dterminação histórico-social” (C, III, 2, 261-2). Por outro lado, a “abstração real” trabalho exerce dominação social, no fundo, sem sujeito, sem uma vontade consciente por trás. Tal abstração “surge” e “impõe-se”, anonimamente: tal é a especificidade da dominação moderna. A vontade de exploração capitalista é também abstrata, “social”. De fato são os homens sensíveis, as classes sociais etc., que agem, se relacionam e lutam no mercado, porém, estas ações aparecem e se lançam sobre eles estranhamente de modo puramente “material”, como “coerção muda”(Marx), coisificadas sob a forma de médias incontroláveis de lucro, produtividade ou preços concorrenciais, ritmos mecanizados e supervelozes de trabalho, desemprego “tecnológico” etc., isto é, de modo “sensível supra-sensível”, como se fossem forças da natureza. No limite, perde-se a condição real – embora não a formal – de “sujeito”: este torna-se suporte (Träger) da relação “social” abstrata. Isto é, na socialização indireta efetuada pelo dinheiro, os homens não decidem coletivamente o que, como, onde e para que produzir, portanto, nem quem ou como vai consumir. Daí que o mercado, quando funciona sem entraves (lei da oferta e procura etc.), possa parecer milagrosamente algo assim como um “deus secularizado” (uma “mão invisível” dizia Smith), algo como um “sujeito” que pensa/abstrai (o modelo secreto da “astúcia da razão” de Hegel), perfazendo uma totalidade social mais ou menos coerente, pois que suporta negações internas, desequilíbrios inter-setoriais, crises etc. É o que Marx tentou exprimir no desenrolar dialético da exposição do fetichismo, na substância do valor tornando-se capital:

o “valor em processo”, diz ele, ou seja, o dinheiro agora com a determinação de capital (na fórmula D-M-D’), “passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático [automatisches Subjekt]” (C, I, 1: 126).

Se o valor capitalizado, como relação social, é o “sujeito usurpador”(übergreifende Subjekt, ib: 126) da modernidade, será a divisão social e técnica do trabalho que funcionará concretamente como mediação social entre os sujeitos: seu intercâmbio em valores expressa o de trabalhos equivalentes, embora isso também seja só uma aparência para a expropriação de mais-valia, sem troca. O tempo de trabalho impõe-se como medida e modo do ser social inconsciente, não bastando entretanto a mera consciência para suprimir essa alienação prática. Aliás, “quem não trabalha não deve comer” – era também o lema burguês “consciente” do socialismo russo surgido na fase do “comunismo de guerra”. Automaticamente põe-se que as necessidades concretas de cada um restam soterradas e emudecidas, pois quantitativamente codificadas pelo critério universal coercitivo do elo trabalho-dinheiro.

Mas, contraditoriamente, como se sabe, a tendência imanente à economia capitalista é a do aumento da composição orgânica do capital, isto é, o aumento dos “custos mortos” da reprodução do capital social total, a redução relativa da substância do valor criado socialmente, portanto, a negação da própria forma-valor (e portanto, do trabalho social) como mediação social essencial. A crítica imanente é feita pelo próprio objeto (que é “sujeito”) a si mesmo: o automovimento do capital simultaneamente inclui e exclui trabalho necessário – e seu impulso histórico predominante é o da exclusão. Assim, a crítica de Marx pode ser subentendida como uma crítica a esta crítica interna, e portanto à própria forma-valor/trabalho como meio autonomizado de socialização e desenvolvimento, e não simplesmente ao trabalho não-pago e à distribuição de renda(4). O fenômeno fetichista é mais específico que a noção antropológica de alienação, pois quem se aliena e retorna da alienação é o próprio capital, num automovimento cego que só pode tragar para dentro de si os homens de carne e osso e depois cuspi-los. O fetiche é tanto a mais-valia como o próprio valor e sua fonte, o trabalho “social”. Transformar infinitamente trabalho humano em dinheiro e dinheiro em mais trabalho – eis todo o sentido de uma sociedade sem sentido: assim, uma teleologia da história passa a existir no capitalismo – mas é ela que deve ser negada internamente por aquela metacrítica (e no limite, em Marx, ela é práxis revolucionária). A produção concreta de bens úteis, o uso e o valor de uso, é apenas um pretexto da acumulação insensível de dinheiro, e pode ser, na autonomia momentânea (bem visível nos dias atuais) do capital-dinheiro frente à economia real, até mesmo totalmente abstraída (embora não eternamente). É por isso que, para Marx, o auge do fetichismo estava na fórmula trinitária da distribuição de rendas (salário do trabalho, renda da terra, lucro e juros do capital), e mais especificamente no chamado “capital fictício” – a valorização do dinheiro sem trabalho (D-D’), o dinheiro que “valoriza a si mesmo”. Na prevalência social do capital a juros, o “fetiche automático”(C, III, 1: 279) da valorização mostra sua eficácia mortal como dominação social reificada.

Assim, tal aparência social em Marx não é simples engano subjetivo, mas um momento necessário da práxis totalizante, confrontando os indivíduos com os seus próprios produtos – pois produzidos (inconscientemente) como mercadorias – determinando-os como portadores das relações, e por fim seu próprio modo de pensar. Assim, mercadoria e valor são determinações formais objetivas da existência social, mas também da própria subjetividade: “Tais formas” [“de vida humana”: a mercadoria, a troca, o valor etc.], diz Marx,

“constituem pois as categorias da economia burguesa. São formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, objetivas para as condições de produção desse modo social de produção, historicamente determinado, a produção de mercadorias” (C, I, 1: 73, g.m.).

Por isso, para Marx o “cinismo” econômico-político de Smith e Ricardo ainda é “ciência”, diferente da “economia vulgar” ou da mera ideologia. Em verdade, aqui não se trata mais de “idelogia”, “alienação” ou “abstração mental” das condições materiais, no sentido da religião e da arte, do direito e da moral, da política e da filosofia esclarecida, humanista ou (neo)hegeliana (tal como tratado por Marx na Ideologia Alemã), muito menos de uma conspiratória “manipulação ideológica” das “classes dominantes”. A ideologia tinha certo momento de verdade e transcendência ética intrínseco (a realização do “humano”, da “liberdade” etc.) e era produzida na autonomia relativa em relação à práxis(5). Ao contrário, o pensamento fetichista é sem-sujeito – ele “brota naturalmente” (naturwüchsig entsteht, Marx, G: 111) das próprias engrenagens da práxis da abstração real, e não é simples “falsa consciência”: em certo sentido, é a consciência correta de uma práxis falsa, invertida, esta sim realmente autonomizada, portanto, de uma experiência também falsa, pois prejudicada, impedida, danificada(6)… Aqui reconhecemos já os temas de Adorno. Esta condição também não é de classe, mas atinge a todas as classes sociais, como bem analisou Lukács em História e Consciência de Classe(7) – análise também seminal para os frankfurtianos. O pensamento social fetichista cola-se identitariamente no ser social tal qual é, na forma em que aparece de imediato o mundo, conceituando-o sob as categorias formais derivadas do valor, tomadas como naturais. Nesta superfície o movimento social se apaga, embora seja imenso o fosso real cavado entre a coisa e o pensamento, entre o real e o possível. É claro que esta matriz formal de consciência identitária não é um “fundamento ontológico natural” da sociedade e da consciência de seus agentes. Provavelmente também não operaria imediatamente nesta consciência social, mas sim como uma espécie de “grade formal” do pensamento, “por baixo”, fundamentando “ideologias” com conteúdos e sentidos diferentes, de acordo com “pontos de vista” ou “visões de mundo” coerentes do todo social, inclusive antagônicos, como sugeriu Lukács (ib.:167 ss.). Mas para Adorno, viveríamos – na atual condição de total desencantamento do mundo, de semi-formação quase integral e da atuação de um nova força na reprodução cega – um bouleversement do próprio conceito de idelogia. Eis o dado novo.

* *

Para Adorno, assim, a análise marxiana do fetichismo e o modelo de crítica imanente específico derivado daí (corroborados pelos escritos de Weber, Lukács, Benjamin etc.) são muito profícuos. Os escritos sobre história natural ou a tese do Iluminismo como retorno ao mito o comprovam. Mas, no século XX, este modo de crítica tinha alcançado, pelo menos naquele momento, um certo limite, que o alteraria. De saída deve-se lembrar que, para o autor, a sociedade que superdesenvolveu as forças produtivas tornou cada vez mais o “primado da economia”, isto é, a centralidade do trabalho que produz mercadorias, como mediação social cega, uma condição totalmente anacrônica. Isto confirma, num primeiro momento, os prognósticos de Marx: tal sociedade já não tem mais Grund – fundamento, razão de ser. Assim, já na Dialética do Iluminismo (DE: 48-9, g.m.), diz-se:

“Só os dominados aceitam como necessidade intangível o processo que, a cada decreto elevando o nível de vida, aumenta o grau de sua impotência. Agora que uma parte mínima do tempo de trabalho à disposição dos donos da sociedade é suficiente para assegurar a subsistência daqueles que ainda se fazem necessários para o manejo das máquinas, o resto supérfluo, a massa imensa da população, é adestrado como uma guarda suplementar do sistema, a serviço de seus planos grandiosos para o presente e o futuro. Eles são sustentados como um exército de desempregados (…). O absurdo dessa situação, em que o poder do sistema sobre os homens cresce na mesma medida em que os subtrai ao poder da natureza, denuncia como obsoleta a razão da sociedade racional.”

“Indiretamente…”, diz Adorno, “a teoria do colapso do sistema se confirmou”(8). Potencialmente, mas só potencialmente, já vivemos numa sociedade emancipada, para muito além do trabalho produtor de mercadorias. A questão nova, porém, não é mais como a dominação social acontece, mas como continua a acontecer. É não só a produção social mas a reprodução das relações sociais de dominação e exploração que entra em questão. Para os frankfurtianos em geral é aqui que entra a força material e ideológica do Estado e da indústria cultural no século XX – o que se expressava com os conceitos amplos de “primado da política” (Pollock), de “Estado autoritário” (Horkheimer), de “mundo administrado” (Horkheimer e Adorno) ou de “sociedade unidimensional” (Marcuse).

Assim, a legitimação social não se daria somente pelo mercado e suas relações de produção, que já funcionam mal, mas exigiria o apoio da reprodução política do Estado. Mas tal política tem a mesma lógica da legitimação mercantil, isto é, a do fetiche da mercadoria, transfigurando-se agora em mera técnica administrativa, tornando “as relações de produção (…) mais flexíveis”(Adorno, CTSI: 69). A diferença é que no momento em que as forças produtivas descolam-se virtualmente das relações de produção, mais elas parecem fundidas: “Que forças produtivas e relações de produção formam hoje uma identidade e de que, portanto, se poderia construir a sociedade diretamente a partir das forças produtivas, constitui a configuração atual da aparência socialmente necessária”(ib.: 74). O fetichismo capitalista é ainda a base social de legitimação(9). Porém, não de forma espontânea (i.é, natürwuchsig); mas sem, também, as instituições regulativas constituirem-se como “sujeito geral da sociedade” (ib.: 74). Tais instituições revelam que “a invasão do não-imanente ao sistema pertence também à dialética imanente”(ib.: 73, g.m.). Assim, sob coação interna da valorização, o Estado não seria mais uma mera superestrutura ideológica, mas como “parte das relações de produção” e no “papel de capitalista total”, diz Adorno, assegura que as forças produtivas só possam funcionar como capital; ou, conseqüentemente, que “o ideal seria a plena ocupação e não se libertar do trabalho heterônomo”(ib.: 69).

Adorno, assim como os frankfurtianos em geral, compreende então com Weber que o princípio da troca contido na racionalidade empresarial e burocrática, ou abstratamente falando – a racionalidade instrumental – se alastra, cindindo e penetrando em todos os momentos da vida, até o cerne mesmo das “formas” ou “mundos da vida”: até o ponto de a “terra inteiramente iluminada resplandecer sob o signo de uma calamidade triunfal”. Tal razão se fez mundo, mas o mundo não se fez razão: ao contrário, tornou-se irracional. É nesse contexto que a crítica precisa aguçar-se e reencontrar novos pontos de ataque, perseguindo os pressupostos lógicos e as cadeias materiais concretas dessa racionalização formal fetichista do mundo. Adorno parece-nos ter, neste sentido, um percurso singular entre os frankfurtianos.

O teorema do fetichismo da mercadoria, como se vê, é tomado como a matriz da formação social burguesa. O jovem Lukács de História e Consciência de Classe tem aqui sua parcela substancial de influência(10). Mas, para Adorno, Lukács paralisou o negativo, a dialética: “contentou-se com sua lânguida Renaissance” (DN: 14), ficando no patamar de crítica imanente marxista clássica, como “consciência de classe” e “práxis revolucionária”, vale dizer, conquista do Estado pelo partido de tipo leninista, que traz de fora a consciência às massas. Neste sentido, Lukács, indiretamente, mostrava que o trabalho social abstrato negava a formação cultural. Mesmo assim, recaiu na mitologia hegeliana de um sujeito positivo, quase dado a priori, o proletariado. Neste novo momento, porém, tal práxis parecia bloqueada para Adorno. Assim, é o próprio modelo de dialética (e sua determinação concreta) que precisava ser criticado. Seria preciso estudar as mediações subjetivas essenciais no novo contexto objetivo do “mundo administrado”, pondo o acento no negativo dessa formação: assim, é a tese idealista da “formação pelo trabalho” que será posta, doravante, em questão.

2- Trabalho e troca como proto-formas fetichizadas da experiência social

“Fazer preços, medir valores, inventar equivalentes, trocar – (…) é o pensar” (Nietzsche, Para a Genealogia da Moral)

O “trabalho… desejo refreado… forma”, dizia Hegel na Fenomenologia(11) . Na verdade, a Bildung era um ideal que vinha desde pelo menos Lessing e Humboldt, passando pelo criticismo kantiano, os romances de formação de Goethe, as lições de estética de F.Schiller… A “religião da cultura” torna-se um ethos da classe burguesa alemã em sua luta contra a nobreza. Na sua base material e espiritual, o que diferenciava tais classes médias urbanas era evidentemente o ethos protestante do trabalho urbano(12). A formação sempre dependeu da qualidade da experiência (Erfahrung), que criaria forma dentro e fora do indivíduo, tal como Schiller tentou redefini-la esteticamente(13). Foi Hegel, porém, quem mais aprofundou o seu conceito, tornando-o, de certo modo, o centro de sua filosofia: inclusive uma das definições da própria dialética(14). O ideal kantiano da síntese social de um sujeito transcendental, criticado imanentemente, teria de superar efetivamente às antinomias da razão e da práxis burguesa, reconciliando cultura e natureza, espírito subjetivo e objetivo. Hegel formula tal experiência abstratamente, sem mais, como trabalho – daí o célebre “trabalho do conceito” da Fenomenologia e os temas correlatos (p.ex.: a “Obra” no “reino animal do espírito”). Sua matriz prática, porém, é o trabalho intelectual e artesanal burguês – mas, de roldão, também a mediação dialética da sociedade burguesa, com seu sistema de necessidades, divisão do trabalho e troca de mercadorias(15). A formação cultural, assim, não é uma simples teoria do espírito subjetivo autônomo, mas como Kultur (ou Zivilisation), envolve todas as esferas da práxis cotidiana – e como diz Adorno (TdH: 170) – a “adaptação” do indivíduo ao todo, tal qual no “Goethe tardio” e na “doutrina da formação” de Hegel. Nos seus cursos sobre Filosofia da História, Hegel falava em Bildung como formação social objetiva do “espírito do mundo” e do “espírito do povo”, não só do momento da superação da mera individualidade imediata (o erigir-se como sujeito), como adequação ao todo, ao Estado(16). Na Pequena Lógica, ela aparece como a doutrina do “ardil da razão” e do “juízo teleológico”, próprio do trabalho e da racionalidade conforme um fim (Zweckrationalität): formação como posição de fins subjetivos no mundo – atividade de subsunção e doação de forma à matéria natural(17).

Hegel foi valente o suficiente para sustentar a negatividade do trabalho na sociedade burguesa por toda a sua obra. Mas sua superação – idealista – exigida pelo método e o postulado do “sistema”, sempre levou a melhor: sua dialética sempre foi, apesar do momento da alienação e da dolorosa inconsciência do processo, uma “filosofia do sujeito” triunfante. Se, na Fenomenologia, as figuras finais do “Espírito” e especificamente do “Saber Absoluto” já aparecia como um final mal-acabado, talvez como uma espécie de reconciliação positiva “forçada” (e por isso talvez ainda negativa, em vista da retirada espiritual do mundo histórico após o “Terror” da Revolução Francesa), através da moral, da religião, da arte e da filosofia (ou seja, vita contemplativa como solução)(18), na Filosofia do Direito, Hegel abandonava bem mais visivelmente o “trabalho do negativo” da juventude. Adorno mostra como Hegel esbarra nos limites de explosão do idealismo absoluto, sinônimo da identidade de conceito e realidade, tal como pressuposta por ele como fundamento de sua filosofia, sendo obrigado a renunciar à crítica imanente tal como a postulava. Ele paralisava, então, a própria dialética: mas assim, ao mesmo tempo, ontologizava a dialética real ao detê-la, perenizava a contradição social ao postular o primado do todo, constituído por uma gigantesca negatividade – a dos sujeitos concorrentes do trabalho. Por um “golpe de força”, diz Adorno(19), para a “resolução” das contradições da sociedade civil-burguesa, foi necessário recorrer ao Estado justamente porque Hegel entende que tais contradições “não podem suavizar-se por seu próprio movimento” (ib.: 48). É claro que só pôde as “resolver” apenas no plano mitológico da Idéia. Neste sentido, Hegel (FD: §244) enxergava “bem” a contradição básica da acumulação de capital: a produção simultânea de riqueza privada e privação da riqueza. Assim, “aqui vem à luz que a sociedade burguesa com seu excesso de riqueza não possui riqueza o bastante para controlar o excesso de pobreza e a geração do populacho” (ib.: §245). Eis, segundo Adorno, o fundo material da dialética idealista. Daí a necessidade hegeliana de uma “ordem externa” ao jogo de forças (ib.: §249) – o Estado e suas instituições de reprodução e repressão social – para repor a ordem prévia da sociedade burguesa. E isto em dois momentos principais. De um lado, o remédio para a desordem, conforme pode-se captar em muitos parágrafos de sua Filosofia do Direito, era colocar a massa despossuída para trabalhar e educar-se para o trabalho social (§§ 245; 249; 187; 197-8). De outro lado, “por essa sua própria dialética”, diz Hegel, a sociedade burguesa desloca-se no espaço social: “impulsiona-se para além de si” em busca de mercados (ib.: § 246), no que requer a mediação do direito, de fundos públicos etc. O incontornável é que o postulado liberal do direito natural – a apropriação privada conforme o trabalho, i.é, a forma-valor – é assegurado aqui como universal (§245), e é o plano semi-encoberto de toda a questão(20). Se o Estado, diz Adorno, “deve apaziguar o que por outra maneira não haveria como se apaziguar” (TEsH: 49), isto sucede-se por coerência de Hegel ao seu próprio postulado da identidade absoluta!

“O golpe de força era, porém, necessário, já que, de outra forma, o princípio dialético levaria para além do existente, e, assim, para além da tese da identidade absoluta, que só enquanto efetivada é absoluta: tal é o cerne da filosofia hegeliana”(ib.:49-50). A contradição está em que o Estado reforça a totalidade das mesmas relações: “a sociedade burguesa é uma totalidade antagonística. Ela mantém-se viva unicamente por causa de seus antagonismos e não pode suavizá-los” (ib.: 47).

Assim, por último, a formação só se completa com a doutrina do “momento prevalecente” (übergreifenden Moment), a “usurpação” lógico-idealista da totalidade sobre o particular(21) – vale dizer, uma “reconciliação extorquida” através da hegemonia cotidiana, ideológica e material do Estado sobre os antagonismos irrefreáveis da sociedade civil-burguesa. A contradição entre o mau burguês utilitarista e o bom cidadão universal, revela-se em Hegel, por fim, uma antinomia realmente insuperável na dialética da Aufklärung.

Para Adorno, assim, Hegel desmentiu o seu próprio método de crítica imanente. Mas o problema é saber se de fato o trabalho, tal como se configurou historicamente, como abstração social, tinha ainda a capacidade de formação da consciência crítica e de explodir o sistema de contradições. Como se sabe, Marx, sobretudo Engels, e mais ainda o marxismo posterior, apostaram nisto, até de modo afirmativo e inocente(22). O jovem Hegel, segundo Herbert Marcuse, p.ex., chegou a desconfiar desse poder de síntese abstrata e por isso desde sempre teve de recorrer ao Estado legal forte(23). Para Adorno isso será, no seculo XX, revelador: “nada poderia explicar de modo mais contundente o conceito de dialética” (CTSI, 73) – a baseada numa filosofia da identidade: “o sujeito-objeto de Hegel é sujeito” (TEsH: 28-9). Mas a reflexão adorniana é uma luz prismada:

“Isto confere, contudo, ao bloqueio kantiano seu momento de verdade: ele prevenia contra a mitologia do conceito. O que estabelece a suspeita social de que esse bloqueio, a barreira ante o absoluto, seja uma só coisa com a penúria (Not) do trabalho, que mantém os homens realmente sob o mesmo feitiço que Kant transfigurou em filosofia. O cativeiro da imanência a que este condena o espírito, tão honesta como cruelmente, é o da autoconservação, tal como impõe aos homens uma sociedade que conserva senão uma negação já não mais necessária” (DN: 388, g.m.).

O autor ensaia mostrar, então, os traços genéticos dessa tradução de “trabalho social” por “espírito”. “A primazia do logos”, diz ele sobre o idealismo alemão, “foi sempre uma parcela da moral do trabalho. A maneira do pensamento comportar-se, como tal, indiferente ao que tenha como conteúdo, é confrontação, tornada habitual e interiorizada, com a natureza; intervenção, não mera recepção” (TEsH: 39, g.m.). Assim, Hegel, absolutizando o espírito, elude o momento da natureza sensível contido em toda produção, tornando o próprio trabalho, forma historicamente relativa, um absoluto: uma “metafísica do trabalho” (ib.: 42). Com efeito, na “obscura” dedução das formas a priori de um tal sujeito transcendental, tal como reconhecida pelo próprio Kant(24), esconde-se, como ensaiaram mostrar Lukács, Sohn-Rethel e Adorno(25) – na trilha de Marx – o trabalho social ou a forma-mercadoria como um universal a priori do pensamento e da sociabilidade burguesa. A forma-identidade tem ligações profundas com a troca e o trabalho social. Mais: para Adorno e Horkheimer, no trabalho social já estaria pressuposta (como mera possibilidade), a forma-sujeito da dominação – o proprietário, masculino (viril), astuto, duro e idêntico consigo mesmo, cuja pré-históra estaria na personagem alegórica de Ulisses da Odisséia (DE: 43-6 etc.). Assim, conclui Adorno sobre o legado hegeliano,

“a experiência inconsciente de si mesma do trabalho social abstrato torna-se encantada para o sujeito que reflete. O trabalho converte-se para ele em sua forma de reflexão, em puro ato do espírito, em sua unidade produtiva. Porque fora disto nada deve ser” (TEsH: 38, g.m.).

(Veremos mais adiante o que poderia significar para Adorno esse interno “fora” da imanência capitalista e de seu fiel Cérbero, o Estado). Indo mais longe, talvez a produção pré-capitalista historicamente já pressuponha a repressão social e o sacrifício individual do momento irredutível não-idêntico que contém: a natureza. Pois, enquanto produção social (dividida em intelectual e manual), já fosse uma abstração, uma cisão do contexto de vida(26), embora vá se pôr efetivamente só com a acumulação originária capitalista: pois só a produção como trabalho social (abstrato) contém dialeticamente a troca (propriedade privada); aqui, os dois termos se internalizaram, numa totalidade em movimento fetichista(27). Tal trabalho nunca é um simples processo técnico, mas político-normativo – e sua separação é ideologia. Pois,

“o próprio culto do elaborar, da produção, não é somente ideologia do homem dominador da natureza, ilimitadamente autônomo e ativo. Nele fica sedimentado que a relação universal de troca, na qual tudo o que é somente é um ser-para-outro, fica sob o domínio daqueles que dispõem sobre a produção social: tal dominação é venerada filosoficamente.” (ib.: 47).

E como bem sabe Adorno, tal dominação, por ser “social”, abstrata, atinge inclusive os dominantes, como “máscaras de caráter burguês” do fetiche (cf. ib.: 68-9). Hegel faz apologia do “trabalho sans phrase” (isto é, socialmente, do trabalho abstrato) – ideologia, legitimação da práxis burguesa (ib.: 44). Trabalho social transfigura-se em “Espírito”. A ascese do trabalho (embora o das artes liberais, artesanais, intelectuais, pois aqui rege o primado aristotélico da “vida contemplativa”) torna-se modelo da experiência formativa hegeliana:

“a grande filosofia, literalmente, faz passar de modo subreptício a quintessência [Inbegriff] da coerção como liberdade”, diz Adorno (ib.: 45, g.m.).

* *

E foi essa específica “educação pelo trabalho”, configurada, imposta e super-imposta pela práxis social moderna, e não simplesmente pela filosofia iluminista (como se a culpa imediata fosse dos ideólogos), que levou, por mediações históricas complexas, objetivas e subjetivas, ao limite de Auschwitz. Afinal, na base da Totale Mobilisierung nazista – cujo lema invertido era Kraft durch Freude (Força através da Alegria) – não estava o culto do trabalho em abstrato, da técnica, da potência, da atividade física em si mesmos, que foi “apenas” superexposto e elevado ao absurdo nos campos de trabalho de extermínio ?; mas por que não lembrar também dos Gulags e Vorkutas do socialismo real, ou do capitalismo democrático de Hiroshima-Nagasaki ou ainda das new work-houses do Estado fordista e pós-fordista? Guerra e trabalho, caserna e fábrica, pensar político-estratégico e pensar empresarial-instrumental cruzaram-se não por um mero acaso histórico. Mais: talvez desenvolvam-se em ação recíproca(28). E tal mediação social subsiste objetivamente, segundo Adorno, no “princípio de civilização” atual(29) . A semi-formação não se trata, assim, reitere-se, de simples névoa ideológica: pois ocorre que tal “quintessência da coação” forma, de fato, os “sujeitos”.

“O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas” (…) A humanidade, cujas habilidades e conhecimentos se diferenciam com a divisão do trabalho, é ao mesmo tempo forçada a regredir a estágios antropologicamente mais primitivos (…)” e “a desgraça não está em que os indivíduos tenham se atrasado relativamente à sociedade ou à sua produção material (…) os atrasados não representam meramente a inverdade (…). A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão” (DE: 40 e 46, g.m.).

Por isso, a teoria adorniana é da semi-formação pelo trabalho “social”, não da pseudo-formação. Tal semi-formação é um efeito prático do fetiche, da espessura da aparência social:

“É da imaturidade dos dominados que se nutre a hipermaturidade da sociedade. Quanto mais complicada e refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz. Graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua conversão em funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e tende a assemelhá-lo de novo ao mundo dos anfíbios. A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas. Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se reconvertem exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força (…) São as condições concretas do trabalho na sociedade que forçam o conformismo e não as influências conscientes, as quais por acréscimo embruteceriam e afastariam da verdade os homens oprimidos. A impotência dos trabalhadores não é mero pretexto dos dominantes, mas a conseqüência lógica da sociedade industrial, na qual o fado antigo acabou por se transformar no esforço de a ele escapar.” (DE: 47, g.m.).

Não há como separar realmente, no estado de coisas vigente, forças produtivas e relações de produção: sociedade industrial e capitalismo tardio formam uma unidade fetichista. No capitalismo desenvolvido, a forma “social” se pôs na matéria. A reificação se fez literal: a subsunção real do trabalho ao capital, a obsolescência planejada das mercadorias, a própria positivização e desumanização das ciências – tudo isso transforma o caráter objetivo do mundo social material. A abstração real não só forma um mundo: pois no limite, “fazer valer as abstrações no mundo real significa destruir a realidade” (Hegel). Objetivação (Vergegenständlichung) e estranhamento (Entfremdung) não podem ser separados, a não ser pela superação prática como (quase) reconheceu Lukács (HCC: XXV, posfácio de 69): assim, fica a questão de se a atual estrutura do “valor de uso”, do “trabalho concreto” ou da “técnica” não terá também de passar por modificações – de modo que superar o capital é superar, como reconheceu Marcuse, a própria “matéria” social – que explodem as suas formas abstratas postas. Pois é o trabalho em sua dupla dimensão (abstrato-concreto) que se tornou modelo social fetichista. Para Adorno,

“por toda parte e para além de todas as fronteiras dos sistemas políticos, o trabalho industrial tornou-se o modelo de sociedade. Evolui para uma totalidade, porque modos de procedimento que se assemelham ao modo industrial necessariamente se expandem, por exigência econômica, também para setores da produção material, para a administração, para a esfera da distribuição e para aquela que se denomina cultura” (CTSI: 68 g.m.).

Nestas condições de generalização da forma-valor, através da forma-trabalho abstratamente social, a semi-formação também se generaliza como determinação social (possível). O fetichismo do trabalho, assim, implica em experiência social falsa, produtora de uma consciência “correta” (no sentido de “exatidão” do Verstand, entendimento) mas também falsa, pois presa à aparência imediata. Da esteira da fábrica não saem somente mercadorias, mas um mundo de “homens sem qualidades”. Para Adorno trata-se do seu principal produto. Semi-formação é no limite uma incapacidade de fazer experiência (Erfahrung): de constituir uma mediação dialética concreta e viva com o mundo, portanto, uma debilidade em relação ao ego e à sensibilidade, ao conceito e à tradição, ao tempo e à memória (cf. TdH: 187 ss.). Para o indivíduo inundado por informações, vivenciadas ávida e velozmente, tal tempo fugaz só traz o vazio, não há aprendizado significativo algum. Flaubert, em Bouvard et Pécuchet, de certo modo, escreveu uma das primeiras fisiognomias sociais desse tipo de semi-culto. Um dos temas da filosofia “experimental” de Nietzsche é tal perda da experiência(30) .

Walter Benjamin havia já mostrado o moderno declínio da Erfahrung, da experiência “aurática”, “épica” e ligada à “narração”, em detrimento da Erlebnis (vivência) e das Chockerlebnisse (vivências de choque). A “vivência de choque”, típica da cidade grande, é segundo ele, a correspondente do tempo industrial capitalista(32). Aos gestos homogêneos, vazios e repetitivos do trabalhador corresponde a vivência sempre-alerta do transeunte isolado na multidão, sob fortes impressões que precisam ser assimiladas às pressas, mas também a dos jovens nos Lunapark, ou do “jogador” sob os efeitos imediatos e descontínuos do tempo, ou ainda a do “último poeta lírico”, que abandona sua aura para se tornar “esgrimista dos choques”, embora vacilando no limiar e tentando “elevar a vivência à categoria de experiência”(ib.: 45) – enfim, todos imersos no tempo racionalista do progresso, do continuum “sem história, só da história natural”(33).

A indústria cultural do século XX age e tira proveito desta subjetividade previamente debilitada ou “de-formada”. O aniquilamento dos nervos no trabalho impede uma recepção qualitativa da arte, digna do conceito. Por isso, a indústria cultural nada mais é que o esquema de vivências da indústria capitalista reevocado no tempo do lazer: o predomínio do efeito e dos reflexos condicionados, a hipertrofia do estilo, fácil, adocicado, espetacular, obsceno e conformista(34). Do lado da produção, em lugar do conteúdo temos a forma purificada e sem história um pouco como Barthes em Mitologias e os semiólogos estruturalistas (se auto-) descreveram, sem, contudo, alcançar a especificidade histórica e social da abstração de conteúdos nesta produção de sujeitos e subjetividades. Então, não só subjetivamente, por causa da recepção comprometida, mas já objetivamente o conteúdo apresenta-se empobrecido, a priori filtrado, “não passa de uma fachada desbotada” para um público infantilizado (DE: 128); no limite, ele é o simples nada, a isca das puras malhas formais do valor de troca. Para Adorno, o fetichismo da mercadoria, potencializado como abstração radicalmente “social”, torna-se também fetichismo do consumo e da cultura: esta, vegetando como coisa entre coisas ou como se existisse como um fantasma em si mesma – na música, p.ex. – torna-se o consumo do puro valor de troca, a de um meio e não de um fim (tal qual no exemplo evidente da televisão): a música sob a pura forma-propaganda (jingles etc.) e status (“possuir um bilhete do concerto X”)(35); por outro lado, distração não concentração, divertimento não diversidade (DE: 128, 134 e ss.). O problema não é a abundância e a satisfação material, que são reais, mas a satisfação ilusória. A chave da dialética de Adorno, como já se vê, é levar até o fim a negação determinada da harmonia social fetichista(36).

“O semi-culto dedica-se à conservação de si mesmo sem si mesmo”(TdH: 187). Uma consciência reificada, imune à experiência do outro, é “indigente” (ib.: 180), mas não “passiva”: primordialmente porque interpõe-se e dilata-se cegamente, por impulso de auto-conservação, por sobre os objetos – reificação é subjetivismo(37). Por isso, antes de ser liqüidado, o indivíduo se protege no amor a esse Si em decomposição, no “narcisismo coletivo” (ib.: 186) ou tende ao seu contrário no “sado-masoquismo” (DE: 129 ss.). É um novo tipo antropológico – “de-formado” por assim dizer – que Adorno tem em mente com a sua teoria da regressão da audição, a experiência que retorna a do “mundo dos anfíbios”.

A consciência de classe proletária tende a dissipar-se com a sua integração subjetiva nos mercados massificados. Por isso, a semi-cultura é típica das classes médias ascendentes (TdH: 173-5). A integração ideológica tem eficácia, embora não total. Mas por outro lado, como vimos, a tendência é a do fim da ideologia no sentido estrito, clássico, com a erosão da autonomia da esfera do espírito. A lógica da mercadoria penetra-a inexoravelmente, através da divisão social do trabalho. A “aura” decomposta da arte é agora um “círculo de névoa” (IC: 95) utilizado pelo novo setor econômico. Como estímulo e efeito, anything goes, pois vem preencher a “carência de imagens” (Bilderlosigkeit), de símbolos e referências sociais tradicionais em todo esse esquema de percepção formalizado e desencantado – embora reencantado pelo mundo da mercadoria. Por isso, o predomínio é o de uma espécie de realismo naturalista caótico, de um objetivismo férreo espetacular (cf. TdH: 180; I: 202 etc.): o mercado, a selvageria da concorrência e da violência, sob a forma de índices e sinais sem sentido em si, aparecem como condições (sobre-)naturais. Ao lado disso, o ocultismo, o misticismo, a astrologia, os preconceitos, a psicanálise barata são reevocados racionalmente como complementos irracionais à irracionalidade do todo(38). A tevê e a música popular brasileira do fim do século são algo assim como a “imagem dialética” dessa barbárie culturalizada apontada no livro de 44/47. Assim como não é o valor de uso, é menos a ideologia em si que interessa a essa indústria(39), mas sim o lucro que os mercados pré-moldados por ela possam realizar: seu álibi é o desejo do consumidor, que ela mesmo já produziu de antemão, pois o “sistema da cultura” já nasce como necessidade subjetiva do sistema em geral. Mas não se trata também de uma teoria da manipulação ideológica, pois,

“A cultura é a reinvidicação perene do particular contra o geral (…). A administração, porém, representa necessariamente, sem culpa subjetiva e sem vontade individual, o geral oposto a todo particular (…) No mundo administrado os managers são tão bodes expiatórios quanto os burocratas; a transferência de conexões funcionais e responsabilidade objetivas para pessoas constitui uma parcela da ideologia dominante”(40).

Para Adorno, a dominação é prazerosa, vivida positivamente, embora a ditadura do sempre-de-novo-igual sempre frustre no final. Que o oferecido seja um puro negócio ou farsa, pode-se até mesmo ser esbofeteado na face do consumidor (DE: 114). Por isso, os produtos dessa indústria “não são mais também mercadorias, mas o são integralmente”(IC: 94). Se a “abstração real” e as categorias derivadas do fetichismo do valor eram a matriz formal do pensar identitário e de toda ideologia (cf. DN: 353-4), a nova ideologia sobrecodifica e preenche tais categorias com conteúdos diversos, por “duplicação e super-ratificação da situação já existente”(I: 202). A má “teoria do reflexo” perversamente tende a se confirmar. “A ideologia… é hoje a própria sociedade real, na medida em que o seu poder integral e sua inexorabilidade, a sua irresistível existência em si substitui o sentido por ela própria exterminado”(CCS: 22). O que foi uma vez ideologia agora “converge com a realidade”, é o terrorismo de uma falsa “transparência” social: “Os indivíduos sentem-se, desde o começo, peças de um jogo e ficam tranqüilos (…) Os homens adaptam-se a essa mentira mas, ao mesmo tempo, enxergam através do seu manto”(I: 203). Mas “vê-se tão às claras o que é e sua apologia está tão gasta, como são cada vez menos os que a compreendem”(DN: 266). O que se pode ver não é o irracional só dos fins, mas dos próprios meios (cf. ib.). Assim, “a celebração do poder e a irresistibilidade do mero existir são as condições que levam ao desencanto. A ideologia já não é um envoltório, mas a própria imagem ameaçadora do mundo (…) porque a realidade dada, à falta de outra ideologia mais convincente, converte-se em ideologia de si mesma”(I: 203); ou ainda, numa formulação-chave: “a vida se transforma em ideologia da reificação…” (CCS: 21). Nesta inversão, não há mais “ideologia autônoma dotada de uma específica pretensão de verdade” (DN: 266). A ideologia zero é, apesar de sua debilitação, ainda o predomínio do fetichismo – aquela “religião da vida cotidiana” (ou “do vulgar”) a que Marx já se referia na fórmula trinitária (C, III, 2: 262) – mas, no limite, até mesmo sem a sólida contrapartida da igualdade, da possibilidade da harmonia e da ascensão social, tal como no fascismo ou na opinião pública dos atuais países periféricos em colapso(41). Nada mais é crível, tudo perde seu fundamento e tende para um “cinismo realista”, “convenção naturalizada”(42). Na época da ideologia total esta tende a aparecer como minima ideologia.

Deste modo, a figura hegeliana do “espírito do povo” (Hegel, RnH: 61-4), que tinha seu nascimento, apogeu e morte (“deformação”, diz Hegel) na história, é satanicamente “aufgehoben” (suprimida, conservada, elevada) nesse espírito objetivo negativo universal da sociedade administrada mundializada(43). O ticket thinking, caso limite da mentalidade falsamente (des)politizada que levou ao nazismo, é o pensar que expulsa a qualidade e a diferença. Subsume o outro, em “juízos sem-juízo” sumários, sob a estereotipia de slogans publicitários do poder. Pensa por equivalências imediatas e brutais. Mas, segundo Horkheimer e Adorno, “a base da evolução que conduz à mentalidade do ticket é, de qualquer modo, a redução de toda energia específica a uma única forma de trabalho, igual e abstrata, do campo de batalha ao estúdio cinematográfico” (DE : 187-8, g.m.). Esta é a base, dizem os autores, da própria democracia de mercado de massas.

Se a educação para a emancipação é necessária para evitar recair na barbárie total, ela tende a deixar intocada, contudo, as raízes da questão. Não basta, portanto, a mera educação ou formação cultural – a solução kantiana, pós-kantiana e hegeliana – para sua superação:

“O progresso da formação cultural que a jovem burguesia se atribuiu frente ao feudalismo de modo algum transcorreu tão retilíneo como sugeria aquela esperança. Quando a burguesia tomou politicamente o poder na Inglaterra do século XVII e na França do XVIII, estava economicamente mais desenvolvida que a feudalidade, e certamente também quanto à consciência. As qualidades que posteriormente receberam o nome de Bildung (formação cultural) capacitaram a classe ascendente para suas tarefas na economia e na administração. (…) Diferentemente era a situação da nova classe que a sociedade burguesa engendrou (…). O proletariado (…) de modo algum estava mais avançado subjetivamente que a burguesia; (…) Os proprietários dispuseram do monopólio da formação cultural também numa sociedade formalmente equalizada; a desumanização da vida no processo capitalista de produção recusou aos trabalhadores todos os pressupostos para a formação cultural, antes de tudo o ócio. As tentativas de remediar isso pedagogicamente malograram-se em caricaturas. Toda a chamada cultura popular (Volksbildung) (…) padeceu da ilusão de que a exclusão socialmente ditada do proletariado da formação cultural poderia ser revogada através da mera formação cultural” (TdH: 172-3, g.m.).

E isso se mostra crucialmente exato quando os partidos e sindicatos da própria esquerda se burocratizam e tendem a agir sob a mesma racionalidade do “cálculo” (DE: 40, 49; DN:305), com a própria lógica da cultura administrada. A sua indiferença da “direita” é só o corolário do esgotamento das ideologias, da cultura e da própria política, com o predomínio do totalitarismo da eficiência de mercado (que jamais é meramente técnica) como norma e legitimação social. O rei deve estar nu, mas todos dão as costas. Na verdade, a ideologia política hoje é um descarado materialismo vulgar – pragmatismo, Realpolitik.

A solução da crítica imanente como “consciência de classe” e “práxis revolucionária” do marxismo tradicional precisava assim ser repensada. O que segue é a tentativa de deslindar qual seria o procedimento metodológico de uma tal crítica.

* * *

3- Crise, hipo-crisia e expo-crisia. Breve ensaio sobre crítica imanente numa época de reificação plena e colapso do sistema: êxodo da “imanência”

“Se algo existente não pode, em sua determinação positiva, abarcar ao mesmo tempo sua determinação negativa e manter firme a uma e outra, isto é, se não pode ter em si mesmo a contradição, então não é esta a unidade vivente mesma, não é fundamento, antes sucumbe na contradição” (Hegel, Ciência da Lógica)

“Afetada pelos eventos do século XX”, diz Adorno na Dialética Negativa, “foi a idéia de totalidade histórica como uma necessidade econômica calculável” (DN: 321). O que ficou evidente no trágico século XX do Estado fascista e de “Bem-Estar Social”, na era da indústria cultural e da produção massificada de sujeitos-sem-subjetividade, é que a crítica imanente da economia política tinha agora de ir mais além. O veredicto do predomínio efetivo das forças produtivas sobre as relações de produção foi questionado pela história recente; e tal como vimos, pela reificação plena da consciência do movimento social possível. Não que o movimento dialético tenha se paralisado, mas este aparece e é “história natural”, “semi-formação”. O campo de imanência das leis do “sujeito automático” é mais real do que nunca, embora estas também estejam mais caducas e remendadas do que nunca. Aquele veredicto, que se justificava menos pela dialética hegeliana do “prevalecer” do todo que pelo estudo das transições históricas das sociedades pré-capitalistas, que tinham relações de produção menos elásticas e “coerentes” (do ponto de vista instrumental), enfraqueceu-se no século XX quando passa a entrar em cena o poder de integração estatista e monopolista do sistema. Assim, era o próprio conceito de negação determinada (ou positiva) – “o nervo da dialética” segundo Adorno (TEsH: 109) – que precisava ser reconsiderado pela crítica materialista. Mas, quando as contradições se avolumam, começam a girar em falso até o paradoxo e a coexistência espacial, ou seja, não se superam “racionalmente” no tempo, como “previsto”, a dialética não abandona simplesmente as idéias de totalidade objetiva antagônica e superação (Aufhebung), como parece sugerir alguns comentadores, mas torna-se negativa(44).

Há sempre, então, a impressão que só uma teoria historicista da dominação, contra toda lógica e finalismo de tipo econômico, estaria ainda aberta para Adorno. Sua dialética seria nada mais que um dualismo kantiano criticamente defendido (cf. DN: 178). Mas como diz Habermas, ao contrário de alguns discípulos seus, Adorno nunca pretendeu substituir uma crítica da economia política por uma teoria transhistórica da dominação, malgrado o peso (às vezes muito exagerado) que ele dá aos conceitos antropológicos/psicanalíticos de “dominação da natureza” e “autoconservação”. Se não, por que, p.ex., Adorno se volta (contra a) à dialética hegeliana no fim da vida? Talvez para extrair daí o núcleo relativo de “verdade” e “racionalidade” históricos abortados. Este o significado dos Três estudos sobre Hegel e do Excurso da Dialética Negativa. Sem esta base, não haveria passo possível fora da dominação. Talvez, assim, seja possível entender melhor a ambigüidade de Adorno com relação à totalidade hegeliana. Talvez quem mais criticou a totalidade é quem mais a levou a sério: como crítica da má imediatez do particular, mas também como índice (mas não símbolo) da reconciliação, só possível no caráter negativo da dialética real do sistema (na identidade cabal entre forças produtivas e relações de produção desvelada como falsa)(45). Pois, quanto mais a totalidade fetichista se afirma, mais é aparência. Trata-se de tentar mostrar que a identidade absoluta é, no fundo (no Hintergrund), um nada sem fundamento. Certamente, “a consciência coisificada fez-se, enquanto feitiço, total”. Mas, em contraste ao que coerentemente se pensa (Nobre, OEF: 156-63), Adorno não parece se exonerar, sem mais, de pensar a contradição sugestiva desta consciência:

“Que ela seja falsa, promete a possibilidade de sua supressão (Aufhebung) (…). Quanto mais a sociedade se dirige para a totalidade, que se reproduz no feitiço [Bann] dos sujeitos, tanto mais profunda também sua tendência à dissociação. Isto tanto ameaça a vida da espécie como desmente o feitiço do todo, a falsa identidade de sujeito-objeto (…). Esta desintegração é ao mesmo tempo o horror e uma realidade em que o feitiço explode” (DN: 344, g.m.).

Ao mesmo tempo, é verdade que a luta de classes, tendo por base o trabalho abstrato, perde sua evidência revolucionária. O que resta à “dialética negativa” então ?

* *

Adorno dirige esforços à crítica da cultura, à nova figura da ideologia. Mas com a reificação plena e o esvaziamento da atual ideologia, “no fim das contas, até mesmo o método imanente é atingido”(CCS: 25). A crítica que levar muito a sério as pretensões da indústria cultural e mesmo da política, que por si mesmas tendem já a recusar, pode terminar, contra sua intenção, por legitimá-las. Logo, o meio que ainda resta é mostrar a historicidade do que veio a ser como só um dos possíveis, não o único: destruir “o fetiche do ser-assim-e-não-outro, da irrevogabilidade do existente”(DN: 58). E são justamente tais possibilidades que são bloqueadas e expulsas do campo de “imanência total da sociedade vigente” (CCS: 15), ou seja, potenciais em devir proscritos pelo “cativeiro da imanência” do trabalho abstrato, o qual Kant transfigurara em philosophia perennis do bloqueio (cf. DN: 388). Assim,

“o que é, é mais do que é. Este mais não lhe é imposto, mas permanece imanente, enquanto deslocado/recalcado (Verdrängte) dele. Neste sentido, o não-idêntico seria a própria identidade da coisa contra suas identificações” (ib.: 164, g.m.).

Assim, é preciso reconsiderar os próprios conceitos de imanência e transcendência e fluidificá-los, dinamizá-los, especificá-los, inclusive multiplicá-los. E a chave dialética (hegeliana!) para isso é que “o chorismos (separação radical) de dentro e fora está historicamente condicionado”(ib.: 166). Na idéia da exposição em constelação está a de múltiplos planos de imanência específicos interligados, sem um avançar escalonado abstrato para uma identidade. Mas no caso da crítica dialética da cultura, ela não pode mais se circunscrever à estrita imanência conceitual dos objetos, isto é, “hipostasiar os critérios da cultura”: “sem essa liberdade, sem o transcender da consciência para além da imanência cultural, a própria crítica imanente não seria concebível: só é capaz de acompanhar a dinâmica própria do objeto aquele que não estiver completamente envolvido por ele” (CCS: 19). É que o objeto simbólico é tresspassado por mediações, “como que vindo de fora”, da “má totalidade” (ib.: 24). Por isso, o olhar adorniano é o do estrangeiro na própria casa(46) – ou melhor, o do emigrante. Pois não há paragem onde possa descansar por muito tempo. – “A origem é a meta”, disse Karl Kraus. Tal categoria de origem, a serviço da dominação, confirma sempre “o autóctone contra o migrante, o sedentário contra o nômade”. Mas “a meta não seria reencontrar a origem, o fantasma da boa natureza, mas a origem seria atingida (Ursprung fiele) somente na meta e só a partir desta se constituiria. Nenhuma origem fora da vida do efêmero”(DN: 158). Só que, literalmente, tal “arqui-salto” (Ur-sprung) ainda está no ar, sem algo sólido para pisar. “Verdadeiro seria este [o pensamento] quando, liberado da maldição do trabalho, descansasse por fim em seu objeto” (PeS: 25). Pois o sopro que lhe impele adiante é a dialética fetichista do mundo da mercadoria, a coisa opaca a si mesma.

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O que sucede em Adorno então é a crítica heróica do conceito, inexoravelmente ligado à abstração real da troca, por meio do conceito. Assim, de saída, a crítica almejada só pode ser imanente ao sistema, i.é, não deixa este “permanecer tranquilamente tal qual é”, pois que “ao encontrar-se intacto, pode ressurgir em outra constelação do poder” (DN: 206). Se o sistema não é a medida da dialética negativa (ib.:164), mesmo assim, ele é o medium de toda crítica possível. É preciso “tocar a sua melodia” e “jogar sua força contra si próprio”. E sua força é a do não-idêntico no objeto, que potencialmente explode a totalidade formal em que aparece (ib.: 37). Porém, a razão dialética não poderia, de modo simples e banal, se “deslocar equivocamente”(47), por uma troca de paradigmas (já que “dialética não é um ponto de vista” ib.:13), do “sistema” (ou da “produção”), supostamente tomado como uma coisa em si insuperável, para a transparência da “linguagem cotidiana”, mas só pode encará-lo de frente, por dentro dele. Pois seu ojetivo é saltar fora do continuum da história (Benjamin), ou seja, “transcender o contexto natural e sua ofuscação, que se repõe com a coação subjetiva das regras lógicas, mas sem impor-lhe seu domínio: sem vítimas, nem vingança (…)”. Assim, Adorno não quer regredir a uma crítica pré-dialética, dogmática. Pois, “nada conduz para fora do contexto dialético da imanência senão ele mesmo” (DN: 145 g.m.). O potencial explosivo está já na imanência, embora não evidente, pois ao mesmo tempo está fora dela. “O mais íntimo do objeto se mostra, por sua vez, como esse externo”(ib.: 164).

A dialética negativa não é, assim, um divagar “moralista” ou “hipócrita” (ou ainda nominalista, ceticista, “raciocinante”) na imanência, mas a tentativa de êxodo da “imanência total” (a capitalista, que tudo suga). Por isso, ela “ex-põe” a contradição, traz à tona a crise subjacente, profere seu juízo crítico. Daí a sua atenção para o que ainda não é: “Aquilo com que a dialética negativa perpassa seus objetos endurecidos é a possibilidade que lhes foi roubada pela sua efetividade e que, porém, reluz de cada um deles”(ib.: 58). Mas, se para Marx a “negação da negação” já era só plenamente válida se concretizada na práxis (e que era iminente), para Adorno ela tende ainda mais a girar em torno da indeterminação objetiva (da mera e/ou da concreta possibilidade – pois a negação dialética, pode ser determinada no objeto, também no nível do pensamento): assim, “quando a filosofia determina, contra Hegel, a negatividade do todo, ela cumpre pela última vez o postulado da negação determinada, que seria a posição. O raio que revela o todo, em todos os seus momentos, como o inverdadeiro não é outro que o da utopia, o da verdade total, que ainda primeiramente teria de ser realizada” (TEsH: 118, g.m.). No fundo, tal indeterminação é a da infinidade perversa da valorização e da reificação, mas também a da história, sem teleologia salvadora e sem hipostasia da Teoria. Então, vejamos.

O “homem”, para Adorno, é fundamento suspenso (aufgehoben), apenas pressuposto: ele “não é só o que era e é, mas o que pode chegar a ser” (DN: 57). Não há nenhuma invariante antropológica ou ontológica na sua dialética, a não a ser os fundamentos postos pela história. E “o negado é negativo até que ele tenha passado. Esta é a diferença decisiva em relação a Hegel”(ib.: 162-3). Aqui desponta a crítica à negação positiva abstrata, isto é, à abstração contida na Aufhebung hegeliana. “Que a negação da negação seja positividade, só pode ser defendida por quem já a pressupor como conceitualidade total. Isto é o butim do primado do lógico sobre o metalógico”(ib.: 163). A desmitologização com base na “reductio ad hominem” se completa na “reductio hominem” (ib.: 187).

A negação determinada perseguida pela dialética negativa é concreta (cf. ib.: 60; 161, 177, 331 etc.), mas sabe da insuficiência do mero pensar, regulado pela legalidade histórica imanente do capital (onde “pensar significa identificar”, ib.: 13), para atingi-la objetivamente e por mais performativa que seja: “mesmo com um esforço extra para expressar lingüisticamente a história coagulada nas coisas, as palavras usadas permanecem conceitos. (..) Entre elas e o que conjuram abre-se um espaço vazio”(ib.: 58, g.m.). Há, assim, descontinuidade (mas não corte absoluto, à moda estruturalista) entre as oposições constituídas, ou seja, entre as noções postas e as pressupostas ou entre o real e o possível. Assim, “os únicos pensamentos verdadeiros são os que não compreendem a si mesmos” (ib.: 53), isto é, aqueles que não clarificam totalmente o objeto em devir, logicizando-o a priori, reduzindo-o ao que já é conhecido.

Tal dialética, por outro lado, sabe da caducidade da dialética real (ib.: 145) e de sua própria falsidade como obediente à lógica da identidade (a abstração real), como seu ponto de partida (ib.: 151); e não obstante, “aqui se coloca também o momento de verdade que possui a ideologia: a indicação de que não deveria haver nem contradição nem antagonismo”(ib.: 153). Mas sua negação da negação não quer recair numa totalidade, identidade ou positividade abstrata (cf. ib.: 403) – ou seja, desembocar num padrão unitário de sociabilidade, como que prefigurada e espelhada na forma-valor: como se se tratasse de afirmar a “identidade [da troca] como o último e absoluto” (ib.: 150). Eis aí outra diferença face à dialética hegeliana. “A crítica do princípio da troca como pensamento identificante busca a realização do ideal da troca livre e justa, que até hoje foi mero pretexto”. Mas, conclui Adorno: “só isto transcende a troca” (ib.: 150, g.m.), e assim “a sociedade estaria além do pensamento identificante”(ib.).

Por isso, para a dialética negativa, é preciso “atingir além do conceito através do conceito”(ib.: 24), pois eles mesmos estão “fundidos ao falso”, não são um “telos positivo” ou “ontológico” (ib.: 53), pois são históricos e imanentes à ordem ultrapassada da abstração real. Talvez valha a pena lembrar que Adorno subentende o Conceito (Begriff) literalmente como apreensão (greifen = agarrar, pegar), portanto, sempre sob a ameaça da subsunção sumária do particular (histórico, em devir) ao geral, historicamente petrificado (ver p.ex. MM § 46). Mas não nos enganemos. Como mostrou Marx(48) tais conceitos gerais são também os do próprio direito burguês de igualdade e liberdade, vale dizer, a equivalência dos trabalhos como definição da participação igualitária e livre do indivíduo – como “eterno” operário – na sociedade socialista. Já em Marx, as normas do direito burguês não estão sendo afirmadas ou pressupostas sem mais na sociedade emancipada. A igualdade é um pressuposto, mas não o fim de uma sociedade verdadeira, diferenciada, “conforme as necessidades”, para além do valor e do trabalho abstrato. Um mundo reconciliado, sonha Adorno, “seria livrado de sistema e de contradição” (ib.: 19); “a utopia seria, para além de identidade e contradição, uma conjunção do diverso [ein Miteinander des Verschiedenen; literalmente: um um-com-o-outro diversos”)]”(ib.: 153). Daí a constelação como figuração da “síntese” adorniana.

Assim, a forte descontinuidade já obtida entre o possível e o real, o fundamento pressuposto (p.ex. o homem) e o fundamento posto (o “princípio da troca”, a relação-capital), vai até o questionamento dos conteúdos desses pressupostos nos conceitos. Por um lado, como vimos, o conceito, quando só pressuposto, representa frente ao particular um mais que ele não é, expressa sua “carência”, sua “negatividade”, diz Adorno. “O teor da contradição entre o geral e o particular é que a individualidade ainda não existe e portanto é má ali onde ela se estabelece”. Mas o singular é menos e mais que sua determinação geral: “a contradição entre o conceito de liberdade e sua realização permanece a insuficiência do conceito. O potencial de liberdade exige crítica àquilo que sua inevitável formalização lhe fez” (ib.: 154).

Daí também a importância daquela crítica da formação pelo trabalho abstrato. A crítica não se paralisa. “A teoria dialética tem de ser imanente – e a de Marx o foi largamente”, e no limite, continua Adorno, “mesmo se acaba negando toda a esfera em que se move. Isto contrasta-a com uma sociologia do saber aplicada meramente a partir de fora…” (ib.: 198). Não há como se escorar a priori em “sujeitos portadores” do interesse pela revolução (como diria Lukács). Eis aí também, por outro lado, a limitação da crítica da ideologia, como limite do próprio pensar que se sabe não-idêntico à práxis global e suas multiplicidades fático-normativas. “O pensamento não pode antever aqui e agora, sem cair no utopismo, o que incumbe e pertence a uma práxis melhor, tampouco absorvê-la, segundo o seu próprio conceito” (ib.: 244). A crítica da identidade é a crítica do sujeito monológico, “portador da história”. A história fica indeterminada, portanto, aberta. Por fim, isto implica em querer superar a própria Teoria genérica e externa ao objeto, que tende à subsunção: já que “a pura identidade é algo posto pelo sujeito e, nesta medida, algo trazido de fora. De modo que, paradoxalmente, criticá-la imanentemente significa também criticá-la de fora” (ib.: 149). Aqui, este “fora” é a “imanência” infernal do conceito identitário, espelhado na forma-valor – seja o espírito mundial de Hegel, seja o “sujeito”-capital, como “transcendentes” ao mundo material (DN: 321) – em contraste com a imanência do que seria o não-idêntico. Por isso, diz Adorno, “o fim da própria teoria filosófica:… sua realização” (ib.: 37). Isso faz a dialética dirigir-se ao particular (e à sua crítica). Ela gostaria de ser sua linguagem mais íntima, aquela que “dissolve o feitiço de sua mesmidade (Bann seiner Selbstheit)”(ib.: 166).

E isso, principalmente quando a práxis vigente se turva inteiramente com a irracionalidade da administração particularista, “subjetiva”, do “todo falso”. Por isso, escreve Adorno, “face à possibilidade concreta da utopia, a dialética é a ontologia do estado falso” (ib.: 19 g.m.). Ontologia ?! Neste sentido ainda, todo pensamento “pós-metafísico” é vão enquanto a verdadeira metafísica da modernidade – a da “subjetividade do capital” – permanecer inviolada. Assim, o sujeito mônada mercantil não é superado com um giro para dentro da mera linguagem: como se o lema – “mudar o estilo de pensar é a única coisa que conta naquilo que fazemos” (Wittgeinstein) – fosse já a solução.

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E, não obstante, um “estímulo externo”, uma “iniciativa de fora” (Anstosses von aussen) – considerado heresia por Hegel(49), pode ser um salto – embora fique reduzido a um “protesto em vão” fora da crítica imanente. É esta a típica tensão da dialética negativa:

“Por certo, totalmente sem um saber de fora, se se quiser, sem um momento de imediatidade, uma penetração (Dreingabe) do pensamento subjetivo, que olha para além da estrutura dialética, nenhuma crítica imanente é capaz de cumprir seu fim (…). Justamente o idealismo não pode ver mal neste momento, o da espontaneidade, pois sem este ele próprio não existiria. O idealismo, cujo âmago chama-se espontaneidade, é quebrado pela espontaneidade. O sujeito enquanto ideologia está enfeitiçado pelo nome subjetividade (…). Nenhuma introspecção por si só levaria-o à regra de sua figura deformada e de seu trabalho. É preciso um estímulo de fora (…). Tal estímulo é para a filosofia, principalmente à hegeliana, heresia. O limite da crítica imanente consiste em que, ao final, a lei do contexto imanente é idêntica ao ofuscamento que tratar-se-ia de romper. O momento do estímulo externo é, em verdade, o salto qualitativo, mas só se põe (stellt sich) na execução da dialética imanente, cuja característica é transcender-se” (DN: 184).

Se a intenção da dialética negativa é substituir a onipotência da imanência conceitual pela “idéia do que haveria fora do feitiço de uma tal unidade”(ib.: 8), para isso, precisa “desmontar o caráter lógico coercitivo a que segue” (ib.: 15). Por um lado, o esforço extra e/ou extremo que dirige à decifração da história do objeto singular, chega ao ponto de torná-lo “mônada” (ib.: 36), implodindo as categorias (a “Teoria” como vimos) às quais lhe subsumia. Isto exige um impulso de fora, um elemento de espontaneidade, não totalmente consciente e interior ao mundo já constituído, que Adorno tem como atributo peculiar do ato de pensar: a “passividade” (PeS: 16-9) – tornada, na concentração e na meditação constitutiva, “paciência com a coisa”. Mas, por outro lado, ele sabe que tal imanência do não-idêntico, do que cai fora, é também falsa quando isolada de seu contexto mais geral, sua constelação (cf. DN: 166).

Adorno exige, assim, um trabalho extra do negativo, fazendo-o migrar constantemente dos círculos de imanência, aniquilando “as posições de identidade” (ib.: 184) que lhes são propostas. Seu êxodo no abismo do objeto é “vertiginoso” (ib.: 39). Sabe que “só na mais extrema distância começa a proximidade”, o país da “utopia” (ib.: 62). O conceito (Begriff) ganharia, neste passe livre entre dentro e fora, o caráter de uma “intervenção” (Eingriffe) (ib.: 36), embora auto-limitada por sua própria essência. É que, por estranho que pareça aos que se acostumaram a ver nos frankfurtianos o traço da resignação, a dialética negativa implica e requer, por sua própria auto-limitação lógica, ainda mais o momento da práxis, por mais travada e adiada que apareça a práxis no sentido enfático(50). E primeiro, a da teoria como práxis – contra Wittgeinstein, o esforço de dizer o que não se deixa dizer. É essa, a diferença entre a perspectiva da Dialética do Iluminismo e os trabalhos de Adorno, como tentou mostrar Marcos Nobre (OEF; embora forçando um pouco a dicotomia). É essa, por outro lado, a abertura na Teoria Crítica, feita por Adorno, que chegou até Habermas. Este, porém, tem de sofrer as consequências de uma crítica que, se não é completamente externa, o é muito mais que a de Adorno. Em nossa opinião, Adorno tende ainda a pensar em termos de práxis social imanente, porém superadora desta “imanência”, em termos de forças “produtivas”. Senão, vejamos. Isto leva-nos também para além da base histórica da Dialética Negativa.

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Ora, aquele poder integrativo do mundo administrado tinha apenas autonomia relativa (via déficit spending keynesiano) para reproduzir as relações de produção “anacrônicas, enfermas, prejudicadas, vazadas” (CTSI: 72). Certo, a nova ideologia é “a naturalização da ilusão necessária de identidade” como diz Nobre (OEF: 175), mas também o seu homólogo, a naturalização da não-identidade, como eterna antinomia ou contradição petrificada – como ontologização do caos social, do cálculo de “riscos sistêmicos”. Um tema uniria os dois pontos hoje. O mote da dialética negativa – crítica da ilusão socialmente necessária – traduzida para os dias atuais, seria, em última instância, a crítica das ilusões do dinheiro. Assim, havia algo de histórico naquela autonomia monetária do Estado: a atual crise fiscal, o declínio do Welfare State, a acumulação flexível, desconectada na hegemonia dos mercados acionários, a precarização do trabalho – seriam apenas a ponta do iceberg de um colapso sistêmico (o que de modo algum significa emancipação social !), já presente, vindo da periferia para o centro mundial: o “fundamento” social, já negado pelo capital (a não-troca de equivalentes), tende a cair no abismo com a desintegração dos mercados de trabalho e de consumo, com a conseqüente perda da substância do valor(51). A desigualdade social pode vir à tona quando o capital começa a tornar-se igual a si mesmo, como se não houvesse mais nada externo ou não-adequado a ele mesmo, ou seja, no momento em que ele alcança seu conceito – no dinheiro autonomizado, carente de substância. Mas, bem aí está o limite da crítica imanente que o próprio sistema faz a si mesmo. A dialética objetivada do capital não leva automaticamente à posição final da contradição e à sua resolução. Tal dialética é ela mesma negativa. Como diz Nobre, “para Adorno, ‘crítica imanente’ não significa comparação do conceito com o conceituado em vista de sua unidade (atual ou potencial), mas não-identidade de conceito e conceituado em vista da ilusão necessária de sua identidade real”. Isto é, há a impossibilidade da identidade “se efetuar por completo” sob “o pano de fundo da não-identidade de ser e pensar” (OEF: 174-5)(52). Neste sentido, sabe-se que Marx já defendia, na sua metacrítica ao sistema capitalista, em certos momentos da exposição, o entendimento (Verstand) contra a teleologia da razão dialética (Vernunft)(53) – ou seja, materialismo contra dialética – jogando um contra o outro (reciprocamente). Ora, também será nessa tensão que Adorno pensará a dialética como negativa… não há garantia de emancipação alguma quando o conceito (capital) converge com a realidade (afinal não está posto bem aí, inclusive, o caráter paradoxal da atual ideologia?): pelo contrário, a tendência é a da barbárie social e, de outro, a daquela nova consciência ideológica correspondente – uma “má consciência” moral que, na sua dialética, como que “prefigurada”, em um dos seus veios, por Hegel (FD: §140, adendo), vai até a hipocrisia, a ironia inescrupulosa, o cinismo insolente… Ou seja, convivência paradoxal com a crise, tapeação subjetivista que a joga para debaixo do tapete (hipo-crisia, juízo submerso), discurso amoral e vazio. Hoje, como diz Robert Kurz, “os passageiros do Titanic querem ficar no convés e que a banda continue tocando” (CdM: 234)(54). Por certo, há reprodução político-militar forçada ainda, embora hoje a própria política talvez esteja se tornando impotente contra as leis internas da valorização – o automovimento destrutivo do dinheiro como medida irracional de si mesmo (especulação financeira, fundiária, comercial).

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Para Adorno, aquela ontologia negativa aparecia “ao final das contas como a patogênese da vida falsa. Ela é apresentada como estado de eternidade negativa”(NsL: 207). Hoje, em nossa opinião, é na crítica radical à práxis do trabalho abstrato – em estado crítico – que esta pode ser melhor conduzida. A começar pela da “necessidade objetiva” do trabalho(55). Por isso, a “prioridade do objeto” (DN: 185 ss.) é o alerta ao possível que a práxis falsa traz consigo: “a dialética da práxis exigiria a abolição da práxis, da produção pela produção, fachada universal de uma práxis falsa”(ib.: 389). Pois, “uma humanidade livre do trabalho estaria livre da dominação”(TEsH: 45). Nestes termos, o valor e o trabalho social (e suas derivações até o Estado), enquanto formas da sociabilidade e do pensamento vigentes, podem ser criticados mais incisivamente hoje, a começar pela educação, que sempre glorificou-os, tornando-os “valores humanos” ou “condição supra-histórica”. A teoria crítica não precisa ter vergonha de ser fora de moda até nos temas obsessivos que persegue, para ela essenciais, pois seu procedimento não tem nada de uma “má infinidade”(DN: 58) que não aprofunda suas determinações. Seu migrar não é uma fuga precipitada e à esmo do conteúdo a ser pensado.

Por outro lado, se a formação imanente pelo trabalho abstrato se tornou mais do que ideologia, é preciso pensar na possibilidade de um particular imanente se formando fora da “imanência” capitalista, mas sem garantia lógica de um sujeito da superação histórica, pois,

“a teoria não tem jurisdição sobre o que removeria o feitiço do mundo falso. A mobilidade não é qualidade casual, mas essencial à consciência. Ela significa um comportamento duplo: a partir de dentro, o processo imanente, o propriamente dialético; e um livre, como se pisasse fora da dialética, desvinculado. Ambos, no entanto, não são apenas díspares. O pensamento não-regulamentado é a afinidade eletiva da dialética, que, enquanto crítica do sistema, recorda o que estaria fora do sistema” (DN: 39, g.m).

Essa memória, ou melhor, essa experiência social, deve ser resgatada e construída, embora a teoria crítica esteja habilitada a indicar mais o que não-fazer do que a dar conselhos morais de como agir positivamente no mundo. E a pura repetição do passado violento seria o não-rompimento com a lógica da forma-mercadoria. Trata-se de produzir um “melhor” plano de imanência: isso prossegue em certa medida Marx, pois segundo Adorno, este “pensava o revolucionamento das relações de produção como algo coercitivamente imposto pelo percurso da História e, ainda assim, como uma ação a ser desenvolvida de modo qualitativamente distinto do caráter fechado do sistema”(CTSI: 73, g.m.). Nesse sentido, Herbert Marcuse também ensaiou pensar numa crítica dialética que fosse interna-externa(56). De forma interessante, também Habermas parece-nos querer, naquela trilha aberta por Hegel, pensar este externo: mas não seria este, como já dissemos, um externo que se mantém como externo, recaindo na aporia hegeliana da “ordem exterior” (o Estado, FD: §249), ou seja, na utopia de frear o sistema sem poder superá-lo de fato? É o preço pago por separar totalmente linguagem e produção, reduzindo esta última ao trabalho abstrato (entendido como mero processo técnico-instrumental) e extrapolando-o “antropologicamente” para toda a história(57).

Quanto a Adorno, quer abrir a forma do pensamento para ir além da exigência da exposição dialética sistemática, que facilmente tende a “filosofia da história” (o que implica em novas formas: o ensaio, os modelos, a constelação etc.), mas também para nomear a resistência de outros conteúdos sociais, como a vida privada (Minima Moralia) e a arte. Para Adorno, o “transcendente” da arte é, na verdade, a constituição de uma imanência radical, já uma “forma” real e um “modelo possível de práxis”: “força produtiva”, ela busca conservar o não-idêntico, na confluência de racionalidade e mimesis, numa outra produção, para além da forma-mercadoria e do mônada-sujeito reificado(58). Mas, enquanto esfera separada, como reflete conseqüentemente Adorno, ela não tem como evitar a sua neutralização e degradação (formalismo etc.) ou conversão em outra espécie de fetiche. Não obstante, a “razão sensível” da arte, ainda irrealizada na sociedade, fala – não, age, contra a filosofia e a práxis fetichizada do trabalho:

“A arte não é somente o substituto de uma práxis melhor do que a até agora dominante, mas também crítica da práxis enquanto dominação da autoconservação brutal no interior do estado de coisas vigente e em consideração a ele. Censura as mentiras da produção em si mesma, opta por um estado da práxis situado para além do feitiço do trabalho [des Banns von Arbeit]. Promesse de bonheur significa mais do que o fato de que, até agora, a práxis despista [verstellt] a felicidade: a felicidade estaria para além da práxis. A força da negatividade na obra de arte mede o abismo entre a práxis e a felicidade” (ib.: 23-4).

Hoje, no momento em que todos gritam fanaticamente para se incluir na práxis metafísica do trabalho morto, já obsoleta, como “corresponde” a seu conceito, aqui talvez fique a pista de como o “inteiramente outro” de Frankfurt não é necessariamente a transcendência da religião (como no último Horkheimer) ou a utopia de uma razão desencarnada e fora da história real, mas, em Adorno, o seu exato oposto. “Abre-te Sésamo, quero sair!”

Notas

(1) No sentido hegeliano da “segunda natureza” como “efetivação” do “reino da liberdade”. Cf. Hegel, Princípios da Filosofia do Direito § 4 (Philosophy of Right. Chicago, William Benton, 1980). Doravante sempre citado sob a forma-padrão: FD: §4. (Todas as traduções dos livros citados podem ser corrigidas sem prévio aviso).

(2) Adorno, T.W. “Theorie der Halbbildung” [1959] in: Horkheimer, M. / Adorno, T.W. Sociologica II (Reden und Vorträge). Frankfurt a.M., Europäishe Verlagsanstalt, 1984, p.168. Doravante: TdH. O conceito de Halbbildung e seu diagnóstico, porém, já aparecem desde os anos 40 – vide p.ex.: Horkheimer & Adorno. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos [1947/69]. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p.184. Doravante: DE

(3) Marx, K. O Capital. Crítica da economia política.[1867]. S.Paulo, Nova Cultural, 1988, t. I, v.1, p.71 (g.m.: grifo meu). Doravante: C, I, 1: 71.

(4) “Com o desenvolvimento da grande indústria (…) o trabalho já não aparece incluído no processo de produção, mas o Homem se apresenta como guardião e regulador desse mesmo processo”(…) “com esta transformação nem o tempo de trabalho utilizado nem o trabalho imediato efetuado pelo homem aparecem já como o principal fundamento da produção de riqueza” (Marx, Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. Berlim, Dietz, 1953, pp.592, g.m.; Doravante: G). Trabalho e produção, valor e riqueza em si são diferentes e podem se desvincular. A Bildund passa pelo tempo de não-trabalho! (G: 593). O Humano torna-se possibilidade concreta.

(5) Cf. Adorno, “Ideologia” [1956] in: Horkheimer/Adorno (org.). Textos básicos da sociologia. São Paulo, Cultrix, 1973, pp.191-2 e 199-200. Doravante: I

(6)Termos usados por Adorno, Dialéctica Negativa. Madrid, Taurus, 1975, pp.191, 389 etc. (Dorav.: DN). Aqui seguimos também termos de Habermas (Teoría y Praxis. Madrid, Tecnos, 1990, pp.411-2; Dorav.: TyP) na sua discussão da teoria da ideologia.

(7) Na sociedade burguesa, a “estrutura da relação mercantil” é o “protótipo de todas as formas de objetividade e de todas suas formas correspondentes de subjetividade” diz Lukács, Historia y consciencia de clase (Estudios de dialéctica marxista) [1923/69]. Mexico, Grijalbo, 1969, p.89. Doravante: HCC.

(8) Adorno, “Capitalismo tardio ou sociedade industrial?” [1968] (in: Cohn, G.(org.). Theodor W. Adorno: sociologia. São Paulo, Ática, 1986, p.73. Doravante: CTSI). Tais determinações, escandalosas para um olhar já “naturalizado” em “Teoria Crítica”, chocam-se com outras no interior dos textos, tal é sua dialética: por que elas são sempre esquecidas pelos comentadores ?

(9) Ao contrário do que diz Habermas, Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa, ed.70, 1997, pp.68-9 (D.: TCI). No rastro de Pollock, ele sustenta que com a “repolitização” da dominação “a ideologia da troca justa se desmorona” (como se ninguém mais acreditasse no poder do dinheiro e se abrisse o conflito social para além do mundo do dinheiro!) e que o fetichismo do capital (e suas crises) poderia ser “regulado” (ou “destruído”) pela política (social democrata de preferência), dissolvendo o objeto da crítica da economia política. Ora, a crítica então só pode girar em torno da distribuição de poder e dinheiro. Nisto cai também Seyla Benhabib (“A crítica da razão instrumental” in: Zizek, S. (org.). Um mapa da ideologia. Rio, Contraponto, 1996, pp.76-8) que diz que “se a liberdade de troca no mercado materializou, em certo momento, os ideais normativos da sociedade burguesa liberal [!] – individualismo, liberdade, e igualdade –, com o desaparecimento do mercado [!] por trás de um sistema de controles diretos, os ideais normativos do liberalismo também desaparecem”. Apesar disso, ela parece perceber que a nova crítica imanente exige uma nova lógica e recorre a novos conteúdos fático-normativos (não mais ao trabalho e à lei natural liberal), embora impute à Teoria Crítica, tomada em bloco, nas aporias [do real !] em que se move, apenas uma saída elitista: utópica/transcendental (fora da história) ou retrospectiva (ib.: 87 ss.).

(10) Cf. Maar, W. Leo – “Lukács, Adorno e o problema da formação”. Lua Nova (27), São Paulo, CEDEC, 1992. O autor, no entanto, sustenta que Adorno tem ainda como ideal normativo de sua crítica a mera Bildung, como se não tratasse também de sua crítica interna (dialética negativa, autocrítica da cultura como separação). Mas não é, ao contrário, Lukács que, através da práxis proletária, queria realizá-la no socialismo (concretização dos ideais burgueses)? Erigindo até, na maturidade, o trabalho como “proto-forma do ser social”? Não é ele que permanece mais fortemente ligado à Bildung burguesa (realismo, sujeito humanista, vanguarda partidária leninista etc.)?

(11) Hegel, Phénoménologie de l’Esprit [1807-8]. Paris, Aubier, 1939, t.I, p.165. Doravante: Ph.,I, 165.

(12)Apesar do pathos da distância em relação à práxis, nutria-se em todo o humanismo europeu um tácito gosto pela ciência empírica e pela prática, sem a qual não há “formação” alguma: pode-se lembrar dos “romances de formação” de Rousseau (Emílio) e Goethe (Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister), que irão dar mais a frente na Fenomenologia de Hegel. No Goethe tardio (o de Os anos de peregrinação de W.Meister), segundo W.Benjamin (“Goethe” in: Benjamin, Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie (escritos escolhidos. Seleção e apresentãção de W.Bolle). São Paulo, Cultrix, 1986, p.59), o conflito torna-se evidente: “o ideal de formação classicista… recua totalmente. É óbvio que a agricultura pareça obrigatória, enquanto nada se diz sobre o ensino de línguas mortas. Os ‘humanistas’ dos Anos de aprendizagem tornaram-se todos artífices: Wilhelm tornou-se cirurgião; Jarno, mineiro; Philine, costureira. Goethe assimilou de Pestalozzi a idéia da formação profissional”. Patente também em lemas seus como: “propriedade e bem-comum” ou “do útil ao belo através do verdadeiro”. Segundo J.Habermas (TyP: 335), cristalizou-se na Europa no séc.XIX um projeto de formação universitária enquanto promoção de “habilidades práticas” (“a transformação do saber em obras”, dizia Fichte) não nos moldes da especialização cientificista e tecnicista tal como iria vingar no século XX, mas sim reflexivamente orientada pela autonomia ética. Vide ainda sobre o tema: Elias, N. O processo civilizador: uma história dos costumes (Rio de Janeiro, J.Zahar, 2v.); Eagleton, T. A ideologia da estética. (Rio de Janeiro, Zahar, 1993); Arantes, P.E. Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel (antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã). (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996); Hauser, A. Historia social de la literatura y el arte [1951] (Madrid, Guadarrama, 1968, t.2, especialmente Cap.4).

(13) “Quanto mais facetada se cultiva a sensibilidade, quanto mais móvel é, quanto mais superfície oferece aos fenômenos, tanto mais mundo o homem capta, tanto mais disposições ele desenvolve em si; quanto mais força e profundidade ganha sua personalidade, quanto mais liberdade ganha sua razão, tanto mais mundo o homem concebe, tanto mais forma cria fora de si. Sua cultura consistirá, pois, no seguinte; primeiro: proporcionar à faculdade receptiva os mais multifacetados contatos com o mundo e levar ao máximo a passividade do sentimento; segundo: conquistar para a faculdade determinante a máxima independência com relação à receptividade e ativar ao extremo a atividade da razão. Quando as duas qualidades se unificam, o homem conjuga a máxima plenitude de existência à máxima independência e liberdade, abarcando o mundo em lugar de nele perder-se e submetendo a infinita multiplicidade dos fenômenos à unidade de sua razão” (Schiller, Friedrich von. A educação estética do homem (numa série de cartas). São Paulo: Iluminuras, 1995, carta 13, pp.72-3).

(14) Lembrando que na Fenomenologia, “a série de figuras que a consciência percorre nesse caminho é (…) a história detalhada da formação [Bildung] da própria consciência para a ciência”(Ph, I: 69-70), pressupondo, para tanto, a experiência [Erfahrung] concreta dos momentos particulares: “Esse movimento dialético que a consciência exerce em si mesma, tanto em seu saber quanto em seu objeto, enquanto dele surge o novo objeto verdadeiro para a consciência, é propriamente aquilo que se chama experiência” (ib.: 75).

(15) Adam Smith tem textos muito parecidos a este de Hegel (FD §199, g.m.): “Quando os homens são dependentes uns dos outros e reciprocamente relacionados em seus trabalhos e satisfação de suas necessidades, a atividade subjetiva egoísta torna-se uma contribuição para a satisfação de necessidades de cada um. Isto é, por um movimento dialético, torna-se a mediação do particular pelo universal, resultando que cada homem produzindo, ganhando e usufruindo por conta própria está eo ipso produzindo e ganhando para o usufruto de cada um. A compulsão que conduz a isto está enraizada na complexa interdependência de cada um ao todo, e agora apresenta-se a cada um como a riqueza universal permanente que dá a cada um a oportunidade, pelo exercício de sua educação e habilidade, de compartilhar desta e assegurar sua subsistência, enquanto o que se ganha, assim, por meio do próprio trabalho, mantém e eleva a riqueza geral” (Ver tb. Ph, I, 291). Donde a moral protestante do trabalho: “O bárbaro é preguiçoso e diferencia-se do homem culto na medida em que fica mergulhado em seu embrutecimento, pois a formação prática consiste justamente no hábito e na necessidade de ocupação” (ib.: §197, adendo, g.m.). Habermas (em “Trabalho e interação” in:__.TCI) tentou mostrar como Hegel pensou na juventude outros modos sociais de mediação/formação dos sujeitos (família e linguagem).

(16) “O homem formado é que sabe imprimir a toda a sua ação o selo da universalidade, o que aboliu sua particularidade, o que age segundo princípios universais. A formação é forma de pensar; mais precisamente, aí reside a causa por que o homem sabe inibir-se… habitua-se a comportar-se teoricamente…” (Hegel, A razão na história. Introdução à filosofia da história universal. Lisboa, Ed.70, 1995, p.61, g.m. Doravante: RnH)

(17) Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas (em compêndio): (t.1- A Ciência da Lógica [1830]). São Paulo, Loyola, 1995, § 204-12. O tema acusa, nestes termos, a influência de Aristóteles.

(18) Assim como Schiller, nas Cartas, paralisava sua crítica da divisão do trabalho, através da retirada da práxis: a mera educação dos sentidos e da razão passava por reconciliação com o universal. Assim, como mostrou Lukács (HCC: cap.4, “As antinomias do pensamento burguês”), toda a filosofia idealista se manteve presa à reificação, ao cárcere privado do sujeito moral ou estético, sem conceber uma “práxis revolucionária”. Habermas hoje, contudo, com seu dualismo insuperável entre Sistema e Mundos-da-Vida, apenas ligados pela ponte pretensamente inquebrantável feita de toneladas de cimento ideológico e política social-democrata, não estaria abandonando qualquer noção de práxis dialética e caindo nas mesmas antinomias idealistas? Só que agora num “idealismo intersubjetivo” (o termo é de Deleuze e Guattari – O que é a filosofia? Rio de .Janeiro, Ed.34, 1992, p.15) ? Toda contradição social aparecendo inclusive como “contradição performativa” de autores que não desistiram da mediação dialética ?

(19) Adorno, Tres estudios sobre Hegel [1963]. Madrid, Taurus, 1974, p.49. Doravante: TEsH.

(20) Neste ponto também Hegel é a culminação do liberalismo e do direito burguês, insuflados desde Locke (Segundo Tratado do Governo Civil): a legitimação da propriedade pelo trabalho próprio, constituidor do sujeito moderno, que termina exigindo a sua falsa “negação determinada” – a violência estatista para sua reprodução.

(21) O universal é o “livre poder; ele é si mesmo e prevalece sobre seu outro [greift über sein Anderes über]; mas não como algo violento, mas antes o que é no outro tranqüilamente e consigo mesmo [bei sich selbst]” (Hegel, Wissenschaft der Logik. Glockner, vol.5, 1927, pp.38-9 apud: Nobre, M. A dialética negativa de Theodor W.Adorno: a ontologia do estado falso. S.Paulo: Iluminuras, 1998, p.133; Doravante: OEF]. “O universal é inerente ao particular e ao singular, em contrapartida, ele subsume em si o particular e o singular” (Hegel, Propedêutica Filosófica. Lisboa, Ed. 70, 1989, p.181). E, claro, isso se realiza: “O Estado é o absolutamente racional… esta meta final tem o direito supremo contra o indivíduo, cujo supremo dever é ser um membro do Estado” (FD, § 258).

(22) “Não é por acaso que o proletariado passa pela escola do trabalho, dura, mas forjadora de têmpera” Marx/Engels, La Sagrada Família y otros escritos filosóficos de primera época. Mexico, Grijalbo, 1958, p.102. Marx, com o teorema do fetichismo, aguça também à crítica da formação pelo trabalho: “Não basta que as condições de trabalho apareçam num pólo como capital e no outro pólo, pessoas que nada têm para vender a não ser sua força de trabalho. Não basta também forçarem-nas a se venderem voluntariamente. Na evolução da produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalhadora que, por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes” (C, I, 2: 267, g.m.). Mas, com otimismo no “momento prevalecente” da produção e das forças produtivas, ele recai sob o modelo da dialética hegeliana, na “metafísica da história” (cf. Adorno, CTSI: 69-70): com a centralização do capital, diz Marx, “aumenta a extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa, educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista… os expropriadores são expropriados” (C, I, 2: 283-4, gm.).

(23) Para o jovem Hegel, diz Marcuse, “o trabalho abstrato não pode desenvolver as verdadeiras faculdades do indivíduo”. Assim diz-se na Jenenser Realphilosophie que: a integração de indivíduos conflitantes, através do trabalho abstrato e da troca, estabelece pois “um vasto sistema comunitário e de mútua interdependência, uma vida ativa de mortos. Este sistema move-se daqui para lá, de modo cego e elementar e, tal como um animal selvagem, exige rigoroso e permanente controle e repressão” (apud: H.Marcuse, Razão e Revolução (Hegel e o advento da teoria social). [1941]. Rio de Janeiro, Saga, 1969, pp.81-2. Doravante: ReR.

(24) P.ex. Kant, Crítica da razão pura (B). São Paulo, Nova Cultural, 1996, p.48.

(25) Lukács, HCC: cap.4; Sohn-Rethel, A. Trabalho espiritual e corporal (Para a epistemologia da história ocidental), 1989 [Trad. provis.: Césare Galvan, fotocópia; Doravante: TCE]; Adorno, DN: 19; 53; 150, 179 etc.

(26) A proto-história adorniana do sujeito justapõe e às vezes até embaralha, produção em geral e trabalho moderno fetichizado: sob o nome de autoconservação ou domínio da natureza (DN: 30-2; 347; 354), a dominação social torna-se transhistórica e a crítica perde a sua especificidade. Até que ponto isso também aprofunda a crítica, não pode-se aqui responder.

(27) Aqui poder-se-ia tentar um confronto de Adorno com Sohn-Rethel (TCE), que assume que é apenas a troca (a posteriori) o problema e não o trabalho social. Por certo, isso mereceria uma reflexão mais apurada através da leitura que Adorno faz de Marx [em Minima Moralia (São Paulo, Ática, 1993; Dorav: MM), Adorno fala em “a priori da produção para a troca”]. Além de Nietzsche (p.ex. Para a Genealogia da Moral, 2ª dissert., §8 – sobre a forma da troca como forma do “pensar”; §§ 9-13 etc. sobre o sacrifício, o castigo, a vingança e a guerra como seus co-relacionados; também A Gaia Ciência, §§ 42; 329 etc. sobre o trabalho), além de Weber (sobre o trabalho e a ascese protestante), Freud (O mal-estar na cultura etc.), Mauss etc. (sobre o mito e a mimese, a festa e a magia, o dom e a troca de não-equivalentes). Fora os Grundrisse, já citado (nota 4), fiquemos aqui com um insight do jovem Marx: “O ‘trabalho’ é, em sua essência, a atividade não-livre, não-humana, não-social, determinada pela propriedade privada e criando a propriedade privada. A superação da propriedade privada se efetivará somente quando ela for concebida como superação do ‘trabalho’. Superação que, é claro, foi primeiro tornada possível pelo próprio trabalho, isto é, pela atividade material da sociedade – e que não se deve conceber como a substituição de uma categoria por outra.” (Marx, Crítica da Economia Nacional. Sobre o livro ‘O sistema nacional da economia política’ de Friedrich List, [1845] in: Marx/Engels. Textos inéditos de 1845. Lisboa, Ulmeiro, 1976, p.72). Vide também, sobre o tema da “abolição do trabalho” (basicamente na Ideologia Alemã) em Marcuse, ReR: 266 e ss.

(28) Vide p.ex. as pesquisas sugestivas (embora mistificadoras) de W.Sombart, Guerra e capitalismo e Le bourgeois (Contribution a l’histoire morale et intellectuelle de l’homme économique moderne), Paris, Payot, 1926, pp.75-7. Também M.Foucault, Vigiar e Punir (Petrópolis, Vozes, 1988, pp.125 e ss.) é rico em sugestões. Além disso, os ensaios exagerados mas prolíficos de P.Virilio, Velocidade e Política, Guerra Pura etc. Para uma visão crítica: R.Kurz, “A origem destrutiva do capitalismo” in:__.Os últimos combates. 3ª ed. Petrópolis, Vozes, 1997 e Id., Schwarzbuch Kapitalismus. Frankfurt a. M., Eichborn, 1999. Por último, uma sugestão de Clausewitz (Da guerra): “Dizemos, pois, que a guerra não pertence ao domínio das artes e das ciências, mas àquele da existência social (…) Seria melhor compará-la, mais que a uma arte qualquer, ao comércio, que é também um conflito de interesses e de atividades humanas; ela se assemelha ainda mais à política, que pode ser considerada por sua vez, ao menos em parte, como uma espécie de comércio em grande escala…”.

(29) Adorno, Palavras e Sinais. Petrópolis, Vozes, 1995, p.105 (“Educação após Auschwitz”), Dorav.: PeS.

(30) “Se vós, como homens de ciência, procedeis com a ciência como os trabalhadores com as tarefas, que lhes impõem sua indigência e as necessidades da vida, o que será de uma civilização que está condenada (…) a esperar pela hora de seu nascimento e redenção? Para ela ninguém tem tempo – e no entanto o que há de ser, em geral, a ciência, se não tem tempo para a civilização? Ora, talvez então à barbárie (…) Se se ouve falar Strauss sobre as questões da vida, quer seja sobre os problemas do casamento ou sobre a guerra ou a pena de morte, ele nos apavora pela falta de toda experiência efetiva, de toda penetração original no homem: a tal ponto todo seu julgamento é livrescamente uniforme, e até mesmo, no fundo, somente jornalístico; reminiscências literárias tomam lugar de idéias e entendimentos efetivos, um fingido comedimento e afetação na maneira de expressão deveriam compensar-nos pela falta de sabedoria e de maturidade de seu pensamento.” (Nietzsche, 1ª das Considerações Extemporâneas, § 8, g.m.). Sobre a ‘Experimental-Philosophie’: Além de Bem e Mal, §§ 42 e 210.

(31) Benjamin, “O narrador” in:__.Obras escolhidas I (Magia e técnica, arte e política). S.Paulo: Brasiliense, 1985.

(32) Benjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: __. Obras escolhidas III (Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo). 2ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1991, pp.126-7. Doravante: SATB.

(33) “Bicho, escravo sem história/Só da história natural !”. A triste história de semi-formação de Pedro foi contada por Mario de Andrade em “Lira Paulistana” in:__. Poesias completas. S.Paulo, Martins Fontes, 1972, pp.303-4. O flanêur baudelairiano já é o fetichista da mercadoria, o homem de puras vivências, com “olhos que haviam por assim dizer perdido a capacidade de olhar”, “que se sente banido do calendário” (Benjamin, SATB: 141; 136).

(34) Ver em especial, além do capítulo clássico sobre a indústria cultural (DE: 128), “Sobre a música popular” (in: Cohn, G. Adorno: Sociologia, op.cit., pp.136-7) e “A indústria cultural” (in: ib.: 93), doravante: IC.

(35) Adorno, “O fetichismo na música e a regressão da audição” in: Id. et alli. Os pensadores. S.Paulo, Abril, 1983.

(36) O movimento analítico, que é enfático, passa mais pelas extremidades dos opostos, menos pela média (o que ele tinha como o “sal” da dialética hegeliana, cf. TEsH: 111), ou seja, mais pela determinação do particular (“micrológica”), que é negação do seu conceito, embora nem sempre posta objetivamente (totalmente efetiva). Daí o buraco cavado entre o real e o possível parecer “totalização da crítica” e “suspensão do movimento” [i.é, “dialética em paralisação” (Benjamin)]. Com efeito, em Adorno “trabalha” uma espécie de “paciência extra” do conceito (cf. DN: 35; 42; 58; 159-60).

(37) Na música,”sua recepção não obedece a critérios imanentes, mas só ao que o cliente crê obter dela” (TdH:182).

(38) Ver p.ex. Adorno, “Aberglaube aus zwieter Hand” in: Horkheimer/Adorno. Sociologica II, op.cit., passim.

(39) Cf. Adorno, “Crítica cultural e sociedade” (in:__. Prismas. São Paulo. Ática, 1998, pp.20-1..; Dor: CCS).

(40) Adorno, “Kultur und Verwaltung” in: Horkheimer/Adorno. Sociologica, op.cit., pp.53 e 58.

(41) Como interpretar “ideologicamente” a frase do presidente Cardoso de que no Brasil os inempregáveis são mais de 30 milhões, “excluídos” do mercado ? O argumento não é só técnico: é econômico fetichista. Mas tanto aqui como no clima desesperador de hiperinflação alemã e de escalada do nazismo, o poder do equivalente geral ainda é legitimado (mesmo que se tivesse, como de fato ocorreu, de comprar pães com um balde de dinheiro).

(42) Tenhamos em mente o outro lado da mistificação da forma-mercadoria: se o “fetichismo” naturaliza, o “convencionalismo” torna arbitrário a determinação do valor (R.Fausto, Marx: Lógica e Política, t.1. São Paulo, Brasiliense, 1983, pp.170-1). De certa forma, a nova ideologia é esse emaranhado de naturalização e convenção. E de certo modo, essa erosão da ideologia clássica começa, como sugeriu Marx, Lukács, entre outros, com a desilusão européia das (contra)revoluções de 1848: da falsa consciência à consciência falsa (falseadora).

(43) Ver DN: 338 ss. Se o capitalismo hoje fosse julgado segundo o veredicto de que só “o real [necessário] é o racional”, então a seguinte frase de Hegel poderia ser relida em chave materialista, já que por sua irracionalidade, sua hora histórica teria chegado, quando a ideologia é o mero ser do costume: “A morte natural do espírito do povo pode mostrar-se como anulação política. É o que chamamos o costume (…) O costume é uma ação sem oposição, à qual só resta a duração formal e em que a plenitude e a profundidade do fim já não precisam de se expressar – é, por assim dizer, uma existência externa, sensível, que já na coisa não mergulha. Assim morrem os indivíduos, assim perecem os povos de morte natural” (Hegel, RnH: 64, g.m.: perceba-se as coincidências dos termos grifados com os temas do grupo de Frankfurt). “Tudo que existe merece sucumbir” (Goethe): mas é esta racionalidade interna conseqüente, quase dedutiva, nos moldes da crítica imanente hegeliana, que está obliterada para Adorno.

(44) Assim, diz o autor num estudo [1961] sobre Fin dePartie: “A questão de possibilidade da filosofia hoje, ou da teoria em geral, suscita nele [Beckett] um dar de ombros. A irracionalidade da sociedade burguesa em sua fase tardia recusa-se a ser conceptualizada; bons tempos aqueles em que podia-se escrever uma crítica da economia política desta sociedade que a tomava por sua própria ratio. Pois nesse meio tempo ela a jogou no lixo e virtualmente a deslocou pela autoridade imediata” (Adorno, Notes sur la littérature. Paris, Flammarion, 1984, p.204, g.m. Doravante: NsL). Isso, no entanto, não é demissão da teoria crítica imanente: é justamente o paradoxo a ser rompido e posto como contradição pela dialética negativa, através do aprofundamento da dialética do interno e do externo ao sistema.

(45) “A contradição é… índice do não-verdadeiro na identidade, na adequação do concebido com o conceito”. Mas “identidade e contradição do pensamento estão soldadas uma à outra. A totalidade da contradição não é mais que a inverdade da identificação total, tal qual se manifesta nesta” (DN: 13-4). Benjamin usa o termo neste sentido que empregamos: “O passado traz consigo um índice secreto, que aponta para a redenção” (Sobre o conceito de história, 2ª tese). Este índice é, não a “salvação” que reluz do símbolo, mas algo a ser construído pela alegoria, as imagens históricas adornianas de um “materialismo sem-imagens” (DN: 204). Derivo aqui uma posição de Nobre (OEF: 45-7; 82-8), não seguindo-o à risca. (Muito menos as suas conclusões). E pode-se lembrar que se Marx e Engels “se opunham à utopia, era para realizá-la” (DN: 320).

(46) “Pertence à moral não sentir-se em casa em sua própria casa… não há vida correta na falsa” (MM, §18).

(47) Cf. Hegel (Ph, II: 156-60) sobre o movimento da “Verstellung” moral kantiana (deslocamento/dissimulação/ despistamento) que culmina na hipocrisia. Mas aqui o “santo legislador do mundo” foi talvez trocado pelo consenso legal-estatal e o mundo vivido como pretensamente alheios ao “sistema” ou à “produção”, em todo caso, como legisladores ad infinitum do mundo do capital. Lembremos que o hypócrita na antiga Grécia é o ator, o fingidor, o que representa. A Vorstellung (representação) kantiana, ao contrário da Darstellung (exposição) hegeliana (que as atravessa e desmascara), não põe a contradição, antes a desloca ao infinito (cai na Verstellung).

(48) Marx, “Crítica ao Programa de Gotha” in: Marx/Engels. Textos 1. S.Paulo, Ed. Sociais, 1977, pp.229-33: O fundamento social, a troca de equivalentes, sempre foi ilusão real. Marx mostra como a lei do valor ao se realizar inverte-se em seu contrário: “o valor de troca, ou, mais exatamente, o dinheiro, é de fato o sistema da igualdade e da liberdade, e o que no desenvolvimento do sistema, visto em detalhe, a isto se contrapõe, são perturbações imanentes, é precisamente a efetivação da igualdade e da liberdade, que na prática se revelam como desigualdade e não-liberdade”(…) “é vão… o empenho de pôr em prática os ideais desta sociedade” (G:160).

(49) “Renunciar às incursões pessoais no ritmo imanente do conceito; não intervir nele com uma sabedoria arbitrária adquirida alhures – esta abstenção é, ela mesma, um momento essencial da concentrada atenção ao conceito” (Hegel, Ph, I: 51). Hegel impõe esse sujeito transcendental, tomado como a voz imanente do conteúdo, contra dois hábitos: o pensamento material/contingente e o raciociante. Adorno (DN: 178-7) quer mostrar que esse sujeito transcendental é ideologia: sua forma de pensar é constituída pela forma-mercadoria/trabalho social.

(50) Já em Die Aktualität der Philosophie (In:__. Gesammelte Schriften. Band 1. Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1990, p.338 ss.), Adorno dizia que, numa interpretação materialista do movimento do todo erigido pela forma-mercadoria, “a resposta ao enigma [da história] não é o ‘sentido’ do enigma, de modo que ambos pudessem subsistir ao mesmo tempo; que a resposta estivesse contida no enigma; que o enigma désse forma exclusiva à sua aparição e detivesse a resposta em si mesmo como intenção”. Mas isso então exigia mais ainda o “momento dialético”, o da “práxis”: “Pelo contrário, a resposta está em estrita contraposição ao enigma; necessita ser construída a partir dos elementos do enigma e destrói o enigma – que não é algo pleno de sentido, e sim desprovido de sentido, tão logo lhe seja dada a resposta convincente. O movimento que aqui se executa como jogo, o materialismo executa com seriedade. Seriedade significa, aqui, que a resposta não permanece no espaço fechado do conhecimento e sim que é a práxis que lhe dá (…) No aniquilamento da pergunta se confirma a autenticidade da interpretação filosófica e que o puro pensamento não é capaz de levá-la a cabo a partir de si mesmo; por isso, leva forçosamente à práxis”. Assim, a práxis correta se mantém como o impulso de todo materialismo. Não é convincente dizer, então, que em Adorno faltaria tal momento: “primeira condição da resistência, que o espírito o penetre e nomeie [o consenso dominante]: um modesto início da práxis” (DN: 342).

(51) Ver: Kurz, “A falta de autonomia do Estado e os limites da política” in:__. Os últimos combates, op.cit.; além de: Kurz, “O Colapso da Modernização”. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. Doravante: CdM

(52) Ou seja, a identidade lograda – o mundo totalmente iluminado – é calamidade triufal. Nobre, no entanto, parece crer que Adorno exorcizaria a idéia de um colapso sistêmico, pois isso implicaria na possibilidade da correspondência ou “identidade absoluta” entre conceito e a realidade, resultando numa emancipação “evidente”. Mas por que não haveria absolutamente qualquer noção de correspondência e colapso possível ? Ao contrário, lemos tal identidade de outro modo: ela é de fato lograda, mas só excluindo de si regiões inteiras do mundo, i.é, se fechando e mumificando em sua auto-identidade. Ao mesmo tempo, assim, ela é um (ma)logro: idêntica à destruição do tecido econômico-social e ao terror de um Estado penal e emergencial – um pouco como na própria “sobretensão” indisfarçável do conceito de Idéia de Hegel (cf. Adorno, Terminologia Filosófica, II. Madrid, Taurus, 1977, aula 46, pp.229 ss). Mas isso só pode significar ainda “emancipação negativa” (Kurz, CdM: 206). Por isso, ideologia hoje é também a naturalização da não-identidade como antinomia insuperável.

(53)Ver quando Marx escreve sobre os limites da exposição dialética (cf. G: 69 e 945). Cf. Fausto, R. Marx: lógica e política, t.2, São Paulo, Brasiliense, 1987, p.168 e ss. (Cap.2 – “Dialética e significações obscuras”).

(54) Tal é a figura transtornada da ideologia contemporânea, que dissimula a modernização grisalha sob a tintura ideológica do “projeto inacabado”, perturbado pelas “patologias disfuncionais” (Habermas) ou pelos “riscos e efeitos colaterais do sistema” (U.Beck). A sociologia que constata o “carro de Jagrená” indo ladeira abaixo quer apenas “conduzi-lo” através do “consenso” da já operante “reflexividade da modernidade” para fornecer no final uma mais sólida “segurança ontológica” e “confiança pragmática” em “sistemas abstratos” (A.Giddens).

(55) “Reconhecer, porém, a presença da dominação dentro do próprio pensamento como natureza não reconciliada seria um meio de afrouxar essa necessidade que o socialismo veio a confirmar precipitadamente como algo de eterno, fazendo assim uma concessão ao common sense reacionário” (DE: 51). Ver tb. DN: 321.

(56) Citemos essa longa passagem de Marcurse: “Creio que a dialética hoje se encontra diante da tarefa de elaborar teoricamente esta situação essencialmente nova, sem reduzi-la simplesmente aos conceitos herdados. Aqui, farei apenas algumas indicações: o externo de que falo não deve ser entendido mecanicamente em sentido espacial, e sim como a diferença qualitativa que vai além das contradições existentes no interior do todo-parte antagônico, por exemplo, a contradição entre capital e trabalho, e não é redutível a essas contradições. Isto é: externo no sentido de forças sociais que representam necessidades e objetivos que estão reprimidos no todo antagônico existente, não podendo desdobrar-se (…) no aparecimento de novas necessidades. Na medida em que a sociedade antagônica se transforma em uma totalidade repressiva terrível, por assim dizer, se desloca o lugar social da negação. O poder do negativo surge fora dessa totalidade repressiva, a partir de forças e movimentos que ainda não estão manietados pela produtividade agressiva e repressiva da chamada ‘sociedade da abundância’, ou que já se libertaram desse desenvolvimento (…) E a essa oportunidade corresponde a força de negação no interior da ‘sociedade da abundância’, força essa que se revela contra esse sistema como um todo. A força da negação, como sabemos, não está hoje concentrada em classe alguma. Ela hoje ainda é uma oposição caótica e anárquica, política e moral, racional e instintiva: a recusa a participar e colaborar, o nojo diante de toda prosperidade; o impulso de protesto é uma oposição débil e não organizada. Mas, creio, ela se baseia em impulsos e objetivos que se encontram em contradição inconciliável com o todo existente.” (Marcuse, “Sobre o conceito de negação na dialética”[1966] in:__. Idéias sobre uma Teoria Crítica da Sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 1972, p.164-5, g.m.). Ver também: Marcuse, One-dimensional man. Boston, Beacon Press, 1964, Conclusão.

(57) Cf. Postone, Moishe. Time, Labor and Social Domination (Cambridge Univ. Press, 1993, Ch.6. Habermas’s critique of Marx). Então, tudo tende mesmo a resvalar para um reformismo ético ou estético (radical ou não) da sociedade de mercado, que ainda se mantém preso ao interior dos jogos de linguagem, e que, mantendo “poder” e “dinheiro” como verdadeiras “coisas em si” inescrutáveis e insuperáveis, mantém também a ilusão de sujeito, mesmo quando não há sujeito algum no movimento inconsciente e coisificado que continua a ter a história.

(58) Conferir: Adorno, Teoria estética (1969), Lisboa, Ed. 70, 1982, pp 256, 261, 263, 265, 270 – 1, 136 – 7, 290.

Abreviaturas de obras mais citadas

Adorno, Theodor W. – (CCS) “Crítica cultural e sociedade”; (CTSI) “Capitalismo tardio ou sociedade industrial ?”; (DE) “Dialética do esclarecimento”; (DN) “Dialéctica Negativa”; (I) “Ideologia”; (IC) “A indústria cultural”; (MM) “Minima Moralia; (NsL) “Notes sur la littérature”; (PeS) “Palavras e Sinais”; (TdH) “Theorie der Halbbildung”; (TEsH) “Tres estudios sobre Hegel”;

Habermas, Jürgen – (TSI) “Técnica e ciência como ideologia”; (TyP) “Teoría y práxis”.

Hegel, Georg F.W. – (FD) “Philosophy of Right”; (Ph) “Phénoménologie de l’esprit”; (RnH) “A razão na História”.

Kurz, Robert – (CdM) “O colapso da modernização”.

Lukács, Georg – (HCC) “Historia y consciencia de clase”.

Marcuse, Herbert – (ReR) “Razão e revolução”.

Marx, Karl – (C) “O Capital”; (G) “Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie”.

Nobre, Marcos – (OEF) “A dialética negativa de Theodor W.Adorno: a ontologia do estado falso”.