Esta edição da Krisis é aberta pelo artigo A Cruzada Pós-Moderna de Franz Schandl, concebido originalmente como contributo para a temática central. Em 20 parágrafos, o autor tenta uma aproximação ensaística ao problema ainda de contornos pouco claros, uma vez que ainda se reveste de uma relativa novidade, da “guerra pós-moderna” sem a tal associar qualquer pretensão a uma análise exaustiva. Ele designa o seu processo de trabalho como caracterizado por “golpes de luz e acrescentos”. A guerra pós-moderna é entendida como uma forma degenerativa da guerra moderna, estatal, nacionalista e política, tal como Clausewitz a resumiu em primeiro lugar de forma teórica. Com o desmoronamento do conceito do estado também se desmorona esta forma da condução de guerras a fim de se ir tornando tendencialmente pós-estatal, pós-nacional e pós-política. O que a caracteriza não é a sua definição, mas antes a sua indefinição. O anything goes também se aplica à guerra. Até mesmo a dualidade de guerra e paz vai perdendo cada vez mais a sua validade onde bandos se digladiam em coligações em constante mutação, as frentes se confundem e as declarações formais de guerra caíram em desuso. E mesmo as guerras do Norte contra “estados-vilões” irreverentes, que preferimos designar eufemisticamente como acções punitivas ou, melhor ainda, como missões de paz, adquiriram um carácter diferente do das que ocorreram no tempo da guerra fria. Metamorfosearam-se em cruzadas em nome da liberdade e da democracia que perseguem fins cada vez menos estratégicos. Tal não torna a política guerreira do Norte menos perigosa. Antes pelo contrário. Ela é expressão de um cada vez mais cego fundamentalismo dos direitos humanos que passa por cima de cadáveres sem se comover – “É permitido ferir seres humanos, os direitos humanos é que não” (Schandl) – e entre cujos mais importantes impulsionadores se conta Huntington (ver também Krisis n° 20). Se bem que o que este escreve pode quase ser designado de ridículo, o que se perfila por detrás de tudo isso é o poderio militar concentrado do Norte.
O artigo de Schandl vai, no entanto, para além dos aspectos políticos da guerra. Nos parágrafos “O caralho e a guerra” e “Sejam homens!”, ele lança um alguma luz sobre a ligação entre a masculinidade patriarcal e o belicismo. De passagem, ele reflecte igualmente o papel dos media nas cruzadas pós-modernas: “São sobretudo os mass media alucinogénios que tentam constantemente impelir a política para cada aventura militar. No ranking dos instigadores, a sociedade civil, em muitos casos, deixou longe atrás de si os aparelhos estatais e militares. Os comissários ideológicos do Norte andam mais pelas ONGs do que param nos estados-maiores.” E, por fim, o autor debruça-se sobre o reacender da loucura identitária, cujo pano de fundo é constituído justamente pela progressiva fragilização das identidades. A isso, ele contrapõe a perspectiva da “desnacionalização” dos seres humanos. “Tal como hoje ninguém carpe os Godos e os Vândalos, um dia também ninguém verterá uma lágrima pelos alemães e austríacos, nem pelos franceses ou americanos. As nações são perecíveis, e o mesmo se aplica ao singular. A teoria crítica e a prática emancipatória devem dar o seu contributo a semelhante precariedade.”
No artigo A Essência do Direito trata-se de um excerto de um projecto desenvolvido a mais longo prazo em torno da crítica da democracia que tem o título provisório “O Domínio da Indiferença”. O autor, com isso, empreende a segunda tentativa de representar o processo da democratização fundamentalmente desde o ponto de vista da crítica do valor. Uma primeira tentativa, que empreendeu uma abordagem do tema a partir do fenómeno do partido político, teve de ser descontinuada (cf. Krisis n° 14: Pars pro toto).
O pensamento central que é desenvolvido nesta crítica pode ser resumido da seguinte forma: o processo da democratização, tal como ocorreu nos últimos duzentos anos, é o da apropriação dos seres humanos envolvidos por parte da forma social do direito, ou seja, da juridicização de todas as relações humanas. O sistema jurídico, por seu lado, tem por base uma “forma do sujeito” complementar à “objectividade” do valor ou da forma do mesmo, nomeadamente a do indivíduo solitário ou abstracto que tem (e vê) a sua “dignidade” no facto desse mesmo sistema jurídico lhe conceder o recurso à livre vontade tal como ela actua em todas as situações contratuais – sobretudo de compra e venda. A livre vontade é, igualmente a tal categoria de que parte a Filosofia kantiana do direito. Kant procede à prova de que o reconhecimento em princípio desta forma do sujeito apenas se encontra garantida no estado do direito e que a livre vontade exige, de uma forma logicamente necessária, um estado da sociedade que seja governado de forma impessoal: por leis que se devem aproximar o mais possível da concepção teórica da lei (nomeadamente, da “forma pura da generalidade por excelência”). Esse estado, contudo, é o Estado. A abordagem crítica da Filosofia kantiana do direito encontra-se no centro do projecto global, mas não no do parágrafo aqui publicado que se destina a começar por preparar o terreno para semelhante abordagem crítica. Isso também é expresso pelo subtítulo. O autor considera necessária uma “Reabilitação da Filosofia do Direito” porque o positivismo que reina nas ciências sociais há muito que pôs às actas o nível de reflexão correspondente onde ainda pode ser debatida a própria forma do direito. Aqui, a situação assemelha-se muito àquela que, com a progressão do capitalismo, também veio a verificar-se na área da economia política. Afinal já Marx chamou a atenção para o facto do “vulgo entre os economistas” já pouco tempo após Adam Smith ter deixado de perguntar que conteúdo social – e, assim sendo, limitado e finito em termos históricos – é o que se afirma, a bem dizer, na forma do valor ou da mercadoria. Esta categoria (do valor ou da mercadoria), pressuposta como algo de evidente, constitui o fundamento, não criticável desde a sua perspectiva, de toda e qualquer economia política. E nas disciplinas modernas da ciência jurídica passa-se o mesmo com a forma do direito. A incompreensão face à “etapa filosófica da juridicização” manifesta-se no facto de a pergunta pela “essência do direito” ser, em parte, declarada ultrapassada, em parte, reinterpretada de uma forma politicista. Incapaz de pôr em causa de um modo fundamental as instituições que são o direito e o estado, o positivismo retorce as investigações filosóficas sobre o assunto empreendidas nos séculos XVII e XVIII a ponto de fazer crer que estas teriam tido por objecto o conteúdo verdadeiro ou correcto do direito. De forma inadvertida faz-se então a ponte para a era do totalitarismo político e da sua “ideologia unitária divulgada pelo estado”. A questão de como a própria forma do direito deverá ser pensada é pura e simplesmente esquecida. O muitíssimo comum entendimento de Rousseau como defensor de um determinado tipo de estado, nomeadamente da assim chamada “democracia totalitária” ou do “socialismo”, é a prova acabada dessa realidade. No ensaio presente, Rousseau é defendido contra semelhantes interpretações – sem que isso o faça parecer mais inofensivo. O autor demonstra que sem dúvida podemos rotular a posição de Rousseau de totalitária, mas que o conteúdo desse mesmo totalitarismo, visto também abranger a livre vontade do indivíduo solitário, vai muito mais longe do que se afigura desejável aos defensores da democracia pluralista. Rousseau (como posteriormente também Kant) representa aquele totalitarismo que se encontra determinado pelo próprio estado do direito, aquele totalitarismo que coloca as pessoas à mercê do estado ilusório de uma “liberdade pessoal”, em que elas se vêem obrigadas a amanhar-se “em autoresponsabilidade” (ou seja, isoladas uma da outra e cada uma por si) com as “exigências objectivas” que o mercado globalizado lhes vai impondo. A “reabilitação da Filosofia do direito” consiste, portanto, em reconhecê-la e assinalá-la como uma adversária perigosa. A sua finalidade última é a de se poder declarar guerra ao direito e à forma do sujeito que lhe subjaz.
O autor considera a fé na democracia, tida ao longo de largos trechos do desenvolvimento como “de esquerda”, uma “manifestação colateral ilusória” do processo de juridicização. Ela tem as suas origens no facto dos sujeitos colectivos – povo, nação, classe – que, ao longo da história da democratização, chegaram ao “poder político” ou por isso se esforçaram, terem sido associados à esperança de uma capacidade real de dispor do contexto vital comum. Na realidade, porém, limitaram-se a abrir caminho – ao debaterem-se com as relações de dependência pré-modernas – à kantiana “generalidade de uma lei enquanto tal”. A produção desta generalidade abstracta que amarra todos os membros da sociedade enquanto cidadãos do estado à mesma “forma do sujeito do valor” sucedeu ao longo das ideologias políticas conhecidas: do liberalismo/socialismo por um lado (= fase ascendente da fé democrática) e do totalitarismo/pluralismo por outro (= fase de decadência da fé democrática). Com a representação desta “história da juridicização” pretende-se encerrar o projecto. Para além do parágrafo aqui publicado ainda se encontra disponível a “Introdução” ao projecto global, de aproximadamente vinte páginas, que os interessados podem encomendar sob a forma de cópia no endereço da redacção (contribuição para as despesas em selos postais: 4 DM ou 2 Euros).
Com o artigo Genes, Valores, Levantamentos camponeses, Anselm Jappe inaugura o debate num campo temático explosivo e novo para a discussão crítica do valor. A sua crítica da tecnologia genética destaca-se fundamentalmente do discurso corrente sobre a ética, invariavelmente dotado de um determinado cheiro pastoral, na medida em que assinala esta como uma tecnologia de expropriação por excelência em vez de se limitar a avisar contra os possíveis desmandos no decurso da sua aplicação. O autor demonstra que a tecnologia genética é a consequência extrema da forma como a moderna sociedade do valor encara a natureza e se relaciona com ela, porque nela o princípio da reductio ad unum, ou seja, o princípio do valor, é levado ao extremo. Todas as formas de vida, quer se trate de plantas, animais ou seres humanos, são tratadas como amostras do mesmo material genético indiferenciado, de onde decorre que é operada uma abstracção radical de todas as diferenças e especificidades qualitativas. Durante a sua análise, Jappe tematiza, ao contrário dos críticos fixados no fantasma de um super-homem geneticamente optimizado que se limitam a aderir, eles próprios, de forma negativa à loucura da exequibilidade dos impulsionadores da tecnologia genética, os limites imanentes da apropriação do mundo por parte das ciências naturais. As perspectivas desastrosas decorrem menos do facto das quimeras genéticas dos praticantes da tecnologia genética poderem tornar-se plenamente uma realidade. Antes, a forma do domínio sobre a natureza que se encontra consubstanciada na tecnologia genética candidata-se a destruir aquilo de que julga estar a apoderar-se. O património genético não se compraz com um tratamento de mercadoria, a natureza, na sua complexidade, não pode ser reduzida à pobre unidimensionalidade da tecnologia genética e, onde tal redução se transformar em prática social, o resultado acaba por ser, em vez de uma “destruição produtiva” (Schumpeter) no sentido que lhe confere o capital, uma destruição pura e simples.
O artigo de Anselm Jappe não é apenas explosivo por inaugurar, com a sua análise, um campo novo para a Krisis, estabelecendo com isso, ao mesmo tempo, um acento contrário ao debate bastante contido que se tem mantido sobre o assunto. Ao mesmo tempo, ele levanta com isso novamente a questão fundamental pela relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e a emancipação social. É bem provável que a sua resolução desta questão venha a ser discutida de um modo em nada menos controverso do que o foi no círculo dos autores da Krisis. Assim sendo, entendemos o artigo como ponto de partida de um debate que certamente não deixaremos de prosseguir nas próximas edições.
A secção dos comentários e debates é aberta por um artigo de Ernst Lohoff sobre a energética da sociedade das mercadorias e a economia política do recurso à energia nuclear. O artigo Um modelo de fim de linha sui generis foi originalmente escrito como palestra introdutória do convénio federal do movimento anti-nuclear alemão, em Março de 2000, e sofreu, para esta edição da Krisis, uma ligeira revisão e actualização. Nas suas teses Objectivismo e subjectivismo na sociologia, Udo Winkel debruça-se sobre uma problemática fundamental da ciência social burguesa: a sua oscilação entre os dois pólos da “socialidade asocial” que são o indivíduo abstracto, por um lado, e o seu contexto social materializado, por outro. A forma da mercadoria e a forma do direito de ANTI, um redactor da karoshi, é a recensão do livro de título homónimo de Andreas Harms. Trata-se de um contributo à crítica da concepção do direito com recurso a uma versão actualizada da história da recepção da teoria do direito de Eugen Paschukanis. Mais uma recensão é o artigo de Gerd Bedszent Nada de tomar café com o chanceler que se debruça sobre o livro editado por Bernd Gehrke e Wolfgang Rüddenklau com o título … afinal não era esta a nossa alternativa. Dez anos após a “viragem”, antigos opositores do regime da RDA fazem um balanço. A seguir, Anselm Jappe apresenta no seu contributo Valor sem trabalho? o periódico francês Temps critiques. Esta revista é uma das poucas em França que possuem um enquadramento crítico do valor (num sentido lato) e, já por isso, merece a nossa atenção. O artigo O marasmo social de Franz Schandl dedica-se a analisar a questão do que faz uma sociedade quando se depara com os limites do seu desenvolvimento. A sua tese a este respeito é a seguinte: em vez de se afundar na complacência, ela irá mobilizar mais uma vez todas as suas forças destrutivas. Como sintoma de peso desta tendência pode ser encarado o significado crescente do banditismo no processo de desagregação da sociedade das mercadorias. Como último contributo, documentamos ainda um conjunto de teses de Ernst Lohoff e Norbert Trenkle com o título O que quer dizer envolvência da Krisis? que foi redigido para o último seminário da Krisis. A finalidade do documento foi a de incentivar um processo de reflexão da envolvência bastante heterogénea que se vai agrupando em torno da Krisis sobre si própria. Precisamente perante o pano de fundo de uma diferenciação crescente da crítica do valor e da sua crescente influência sobre o discurso de crítica social consideramos urgente uma semelhante auto-reflexão. É, também, por isso que não queremos privar as nossas leitoras e os nossos leitores das teses destinadas originalmente, antes de mais, para “uso interno”.
Por fim queremos ainda chamar a atenção para dois livros recentes de autores da Krisis: “Traduções – Ensaios sobre Herbert Marcuse” (Ventil-Verlag) de Roger Behrens e “Ler Marx” (Eichborn Verlag) de Robert Kurz. Para além disso chamamos a atenção para a nossa renovada homepage (www.krisis.org) com um extenso arquivo de textos, assim como para a nossa nova newsgroup que informa sobre actividades, datas e publicações actuais. Mais sobre isso encontra-se na p. 15).
Pela redacção, Ernst Lohoff e Norbert Trenkle
P.S.: Mal estava terminada a composição deste número da Krisis quando o irracionalismo do sistema mundial produtor de mercadorias se repercutiu sobre si próprio em Nova Iorque e em Washington. Já era tarde para mais uma vez reabrirmos o número. Quanto a análises dos desenvolvimentos actuais temos de remeter os nossos leitores, para já, para a nossa homepage, assim como para artigos de autores da Krisis publicados em outros periódicos (entre outros, um texto de Robert Kurz no número 11/01 da revista Konkret). Para além disso gostaríamos de recordar a todos a crítica de Huntington, publicada no número 20 da Krisis, que neste preciso momento se revela de uma actualidade redobrada.
Tradução de Lumir Nahodil