A paz existe apenas para além do mercado e do estado.
Publicado em Streifzuege em Setembro de 2001
Lorenz Glatz
Igualdade
As mais de 6.000 vítimas dos atentados assassinos contra o World Trade Center em Nova Iorque e o Pentágono em Washington despoletaram no mundo ocidental uma gigantesca onda de horror e consternação. Mas será que o que esteve na sua origem foi mesmo apenas o horror perante o acto criminoso e a compaixão para com os assassinados e as respectivas famílias? Por que será então que, na última dúzia de anos, não houve qualquer reacção minimamente comparável perante os 7.000 civis mortos no bombardeamento de larga escala dos bairros pobres da Cidade do Panamá, as centenas de milhares de mortos causadas pela guerra contra o Iraque e pelo embargo subsequente, ou as pessoas despedaçadas e contaminadas com radioactividade na Jugoslávia? Até as 800.000 pessoas que foram vitimadas pelo massacre do Ruanda mal fizeram a conversa de um dia.
O que choca a opinião publicada tão profundamente nos mortos de Nova Iorque e de Washington será em primeira linha a experiência traumática de que mesmo a potência mais poderosa do mundo afinal não é mais invulnerável do que em tempos o foi Siegfried ou Aquiles.
O filósofo proto-burguês Thomas Hobbes foi o primeiro que definiu o Homem moderno, no âmbito do mercado e do estado, como um ser concorrencial, e já não como um “ser social”. Hobbes deduz que os seres humanos que andam a vigiar-se mutuamente nesta situação de concorrência acabam por ser iguais apesar de tudo do facto que o fraco também pode matar o forte. Que a concorrência acaba por conduzir a um morticínio geral não só entre estados como, igualmente, no interior de cada sociedade e que, nessa situação, nem o mais bem armado não se encontra a salvo – o choque causado por este pressentimento é deveras profundo.
Violência
A violência, incluindo o recurso à guerra e ao assassinato de massas, é desde os primórdios uma parte integrante da História do estado moderno e da sua economia. Embora um sistema económico que, em vez da satisfação das necessidades humanas, visa a multiplicação do dinheiro, seja perfeitamente irracional do ponto de vista humano, a violência permaneceu, na lógica interna do sistema, um meio limitado aos fins do roubo, da exploração e de opressão. Mesmo que tenham ocorrido vertigens sanguinárias, terror e excessos dos mais selváticos – de um modo geral, a guerra e a violência tinham uma medida proporcional à respectiva finalidade. Isto aplicava-se igualmente e sobretudo à violência do colonialismo e do imperialismo. Mas aplicava-se igualmente à violência ao serviço da “libertação nacional” e da “edificação do socialismo”. A sua finalidade consistia em “igualar e ultrapassar” os países industrializados. Também elas não deixaram de praticar – apesar de todas as diferenças de pormenor – uma economia de mercadorias e de dinheiro que incluía o trabalho assalariado e a concorrência, a obrigatoriedade do crescimento e a integração no mercado mundial.
Mas o que acontece se o objectivo da violência deixa de poder ser alcançado? Se a guerra e o terror já só causam prejuízo aos respectivos autores e mesmo a vitória deixa de ser remuneradora?
Não é por deixar de fazer sentido que a chacina pára – simplesmente perde, juntamente com o seu objectivo, a medida, tornando-se literalmente desmedida. A “moral” desde sempre foi um manto para o objectivo a alcançar e, ao perder-se este, substitui-se a ele. A punição e a retaliação tornam-se um paranóico fim em si.
Terror
Não é de admirar que a paranóia se apresente na sua forma mais pura, onde a situação geral é mais desoladora e desprovida de perspectivas. Da máxima de “igualar e ultrapassar” nada restou aos países do Leste e do Sul que chegaram tarde de mais. Desta “periferia” da decadência e da miséria, no entanto, também já faz parte a crescente “margem social” das metrópoles.
Na altura em que os EUA e companhia arrasam com as suas bombas um “estado patife”, a decadência, na maior parte dos casos, já se encontra em curso desde há muito tempo. De forma maciça, mas muitas vezes pouco aparente, o mercado (mundial) desclassifica e arruina milhões de seres humanos. Não andou aqui à solta nenhuma maldade humana pessoal. Antes o que actua aqui é uma relação objectiva de mercadorias: aqui a mão-de-obra, ali os meios técnicos de produção – dois lados do mesmo capital. Uma relação que é entabulada com o único objectivo de multiplicar o dinheiro. Onde este objectivo é falhado, desaparece igualmente o capital. Quem sucumbe à caça aos lucros são as pessoas.
Os funcionários e executores humanos desta lei ora globalizada “pesaram” sem qualquer emoção dezenas de milhões de seres humanos juntamente com os respectivos países e “consideraram-nos demasiadamente leves”, abatendo-os dos seus livros de contas como pouco produtivos, insolventes e não aproveitáveis.
Note-se bem que o que está em questão não é a capacidade de produzir as coisas necessárias a uma vida boa. Trata-se de compra e dinheiro, de crédito e pagamento: quem sucumbe à concorrência no mercado, deixando de conseguir vender(-se), deixa de poder comprar e fica pobre. Eliminado na “livre competição”, o que é humanamente lamentável, pois é claro, e convém dispensar uma esmolazinha a esses coitados, mas elas são assim, as leis desta economia de mercado que hoje se eleva acima dos estados e “já não tem concorrência”, como o presidente da bolsa de Wall Street referiu com tanta justeza por ocasião da sua reabertura.
Os excluídos deixam de contar, ficando, na sua miséria, economicamente invisíveis – um ser humano após o outro e, com eles, regiões inteiras e estados (em desagregação).
A luta política e militar dos estados pela sua soberania nacional, as esperanças de muitos milhões de excluídos por um regresso aos mercados de trabalho e outros perderam em larga medida qualquer fundamento. As lutas de “libertação”, por um “comércio justo”, “trabalho para todos” etc. esmorecem ou descambam em guerras de quadrilhas pela pilhagem das ruínas do desenvolvimento interrompido, pelo acesso e o controlo dos últimos oásis de um deserto económico capazes de lançar seja o que for no mercado.
No final de semelhante desenvolvimento, também as lutas mudam de figura, dando lugar a um terror de motivação “moral” sem um estado como fundamento, e sem um objectivo concreto. Os atentados de Washington e Nova Iorque resumem este tipo de terror: já não há estado ou organismo que reivindique a sua autoria, não sendo transportado qualquer reivindicação objectiva para além da aniquilação do abstracto “inimigo mau” nos sítios onde parece materializar-se e personalizar-se como nos EUA, no World Trade Center, no Pentágono e na Casa Branca. Vidas humanas não contam, nem sequer a própria. O suicídio é o último recurso dos combatentes, e adequa-se a eles.
Um “combate” que, com todo o seu niilismo, conta com a simpatia de todos aqueles espectadores que talvez até não aprovem o extremismo do método, mas que em medidas variáveis partilham a opinião de que a miséria deste mundo não provém da lógica de uma ordem totalitária desajustada, mas de “gente má”, da “americanização do mundo”, da avidez do “mando dos capitalistas da alta finança” ou, já agora, uma vez mais do “judaísmo mundial”.
Retaliação
A retaliação com que o “mundo civilizado” ripostou encontra-se ao mesmo nível como o terror, apenas a destrutividade dos seus meios é incomparavelmente mais elevada. O ataque foi “indizivelmente maligno” (segundo o antigo vice-presidente Al Gore), avizinhando-se um “combate monumental contra o mal”, “uma cruzada contra o terrorismo” (segundo o presidente G. W. Bush) a fim de o “erradicar com todas as suas ramificações” (segundo o secretário de estado Powell). O fantasma de “Armageddon”, a batalha decisiva entre o bem e o mal, assola os media. – “Temos de matar” é o resumo conciso de W. Benett, o secretário da educação de Reagan. O clima nos EUA assemelha-se ao que se vivia na Áustria após o atentado de Sarajevo de Junho de 1914.
Nenhum “estado civilizado” pode manter-se à parte. A “normalidade” global, o status quo em desespero de causa, tem de ser defendido. É por isso que a Nato – pela primeira vez desde a sua fundação – invoca a cláusula da “defesa colectiva” e até cá abaixo à Áustria neutral constata-se: “O mal no mundo existe” (chanceler Schüssel) e fazem-se exercícios de solidariedade para com o “combate global contra os inimigos de toda a civilização” (ministro da defesa Scheibner).
Mas seja quem e o que for o alvo momentâneo dos bombardeamentos da global “aliança contra o terror”, quem e o que quer seja ocupado e morto – o terror será aniquilado tanto ou tão pouco como o bombardeamento de cultivadores de coca na Bolívia e a prisão do narco-general panamiano Noriega acabaram com o tráfico de droga.
As máquinas de violência do estado planeiam a guerra, colocam a própria população sob vigilância policial, preparam operações militares e policiais contra um inimigo que teimam em ver entrincheirado em estados e em acampamentos, em casas e associações, e que tem de ser aniquilado com o recurso a prisões e execuções e à violência militar.
Não compreendem que o terror cresce estrumado pelo apodrecimento da mesma ordem social global sobre o qual também medram a sua “cruzada” e os respectivos “matadores”. Enquanto o cadáver não seja enterrado, o terror permanece invencível e a retaliação continua a lei suprema.
É que a “normalidade” defendida também para os seus defensores já deixou de o ser. Os prognósticos variam entre o pouco animador e o negro cerrado. Mesmo sem qualquer atentado, as torres da economia do lucro, as bolsas, já caíram por terra. O que ali desde há anos tem sido especulado e simulado como valor está prestes a embater duramente no chão da realidade. Da reserva federal e do banco mundial para baixo, peritos e políticos afirmam de pés juntos que a recessão que aí vem não virá. Ainda assim, nenhum deles tem a menor ideia ou uma proposta sobre como ela poderia ser evitada.
Nenhuma conquista ou ocupação já constitui uma caça ao tesouro. Deixaram de dar lucro, sendo que mesmo a destruição de um país inteiro já não rende mais que uma alta temporária das acções da indústria de armamentos, meia dúzia de encomendas pagas com o dinheiro dos contribuintes. Onde a industrialização acabou de arder no altar do mercado mundial, já não volta a crescer qualquer nova indústria.
Nenhum mercado, nenhuma fonte de matérias-primas tem de ser aberto para os “investidores” com recurso à violência, tal como aconteceu, há 150 anos, na China, na Índia e em África. Antes pelo contrário: o mundo encontra-se aberto, mas é como uma ostra sem pérola – o capital considera um país após o outro inadequado à sua multiplicação ulterior.
As leis da multiplicação do dinheiro e do crescimento infinito não só não conhecem qualquer respeito pelo Homem como não olham à natureza. “A protecção do clima prejudica a economia” é por exemplo um princípio fundamental, segundo o qual todos agem, desde o presidente de uma multinacional até ao “libertador nacional” (“o petróleo aos árabes!”), mesmo que tivesse permanecido reservado a um colosso intelectual da envergadura de um presidente Bush dizê-lo abertamente. Todos participam, mesmo que já se veja, oiça, cheire e saboreie que, com isso, não é apenas posta em causa a sobrevivência da economia de mercado, como igualmente a de toda a Humanidade.
Quando todas as saídas deixam de parecer viáveis, aqui como ali, a “moral” prepara-se para desferir o golpe libertador, e eles “continuarão marchando, mesmo que tudo fique feito em cacos” e provavelmente continuariam a alimentar até ao fim inglório alucinações de conquista do mundo e vitória final.
São horas de sair do navio que está a afundar-se!
Ao mesmo tempo, esta agudização do desenvolvimento torna mais claro do que foi o caso até à data o que hoje é decisivo:
É preciso sair do navio que está a afundar-se, cortando com a lógica anti-humana da mercadoria e do capital que, em termos históricos, chegou aos extremos últimos do seu desenvolvimento: o crescimento está a chegar aos seus limites, a crise do lucro e da multiplicação do dinheiro conduzem ao empobrecimento e ao desespero, a concorrência descamba numa espiral de terror e cruzada.
As forças necessárias para a defesa das “conquistas” em vias de desaparecimento desfalecem com estas. Quando, senão agora, poderemos construir a saída que resulta da própria crise: o Homem (cada um) como objectivo em vez do lucro, a cooperação livre em vez de uma concorrência forçada como método para estruturarmos a nossa vida e o nosso convívio.
- A recusa em alinhar na “retaliação” (na Áustria, como de costume, ao arrepio da neutralidade e no séquito da Nato e da UE e – tal como em todo o lado – na brutal ilusão de que talvez ainda fosse possível alcançar a invulnerabilidade passando por cima de um número suficiente de cadáveres e de ruínas),
- a recusa em tomar partido na “luta de libertação nacional” (o estado nacional não passa de uma fata morgana de uma saída, a luta contra o imperialismo transforma-se num tratamento de sintomas com recurso ao terror, votado ao fracasso, senão num anti-semitismo subreptício),
- a tomada de partido em prol das vítimas da dupla paranóia,
- uma cooperação flexível e elástica entre todos os que estejam dispostos a sair contra os abusos em nome lei e da ordem
- todas estas propostas constituem medidas de recurso que têm de ser desenvolvidas para que qualquer “normalidade” anterior possa manter-se viva no interior da crise.
Uma “política melhor” no seio da velha ordem, com a decadência, deixa praticamente de encontrar portadores. A “luta contra o terror” deita ainda mais por terra as diferenças entre os partidos. Além do mais fica cara, “todos nós temos de fazer sacrifícios”: na Alemanha, já para começar, pagam mais impostos, na Áustria, novos caças.
Uma saída colectiva e a luta por recursos em vez de uma descida individual para uma pobreza solitária pode constituir uma crítica prática e quotidiana do sistema do trabalho e do lucro pelo desenvolvimento da cooperação contra a concorrência em todas as áreas da vida quotidiana: da cultura, passando pela (anti-)política até aos modos de comer e habitar, das mais pequenas soluções parcelares até aos projectos abrangentes, da ajuda mútua local até aos contactos internacionais, nada é “secundário”. Todas as seitas estão profundamente desacreditadas, todas as propostas merecem um exame cuidadoso, todas as tentativas de aliviar o cerco do mercado e do estado pela cooperação podem levar-nos mais longe.
Devemos publicar, estudar, discutir com os nossos meios as experiências recolhidas com projectos, encorajar propostas e críticas, transpor para a realidade e apoiar o que possa parecer útil. Não sabemos até onde iremos com isso – mas será isso o que podemos fazer – por nós, pelo Homem, e não pelo lucro.
Tradução: Lumir Nahodil