Cláudio R. Duarte e Caio B. Mello*
1. O mundo pré-moderno é o mundo sem sujeito. Com efeito, nem sempre o homem foi sujeito. Nem sempre ele concebeu-se como sujeito. Encravado nas condições objetivas da natureza, diluído na segunda objetividade de sua cultura, ele pouco se diferencia ainda de seu espaço social. Um trovão, o curso dos astros, uma seca ou uma fera eram todos fenômenos mais que naturais, sobrenaturais – manifestações de uma substância oculta, por vezes chamada mana ou força originária, primeiro motor, deus. O homem é a cria de sua própria linguagem, de seus mitos, de seus medos, de sua própria práxis vital, de sua potência impotente.
2. O mundo moderno é o mundo do sujeito. Os principais produtos do mundo moderno, o mundo da produção de mercadorias, foram a cidade capitalista (ou seja, a reunião de riqueza social sob a forma mercantil) e o sujeito burguês. A “menoridade” é a incapacidade de usar a própria razão, é deixar-se governar pelo entendimento de outrem (Kant). Ao contrário, então, a maioridade moral, a autonomia individual, a emancipação humana são meramente um ato de escolha inaugural da liberdade, um imperativo categórico por vir a ser realizado – ou não. O homem se vê como sujeito livre de seu destino no mercado. A doutrina do humanismo, assim, é a doutrina liberal, idênticas elas próprias à doutrina protestante do trabalho, à afirmação do sujeito proprietário, seguro de si, que domina a natureza e se contrapõe à sociedade: “Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, tem todo ser humano, em sua pessoa, uma propriedade, e ninguém tem direito a essa propriedade exceto ele mesmo. Podemos dizer que lhe pertencem o trabalho [labour] de seu corpo e a obra [work] de suas mãos. Então, tudo aquilo que ele arranca do estado em que a natureza forneceu-lhe e legou-lhe, que ele misturou seu trabalho [labour] e juntou algo que é seu, dessa maneira, torna-se sua propriedade”(Locke, Two Treatises of civil government – Second Treatise, seção 26, cap.V). Assim, dizia um economista político: o sistema dividido do trabalho social, com sua “mão invisível” (Smith), atende às necessidades humanas. Assim, diria o talvez último iluminista confiante: “o trabalho forma” (Hegel).
3- O mundo moderno é o mundo da ilusão do sujeito. Em cada gesto de trabalho para um mercado anônimo resta o sonho prático de realização humana. Em cada ato de compra e venda resplandece a ilusão jurídica necessária da igualdade e da soberania da própria vida. Em cada voto cidadão deposita-se a tola crença na representação fiel da sociedade no Estado democrático. A ascensão do movimento operário foi a sua saída da condição sem sujeito da pré-modernidade, a escalada à condição moderna de sujeito mercantil livre e igual, regulado pelos direitos humanos burgueses do “salário justo”, das “boas condições de trabalho” e “representação de classe”. Mas todos – dos portadores do dinheiro aos ocupantes do poder central, do machão patriarcal ao homem branco (seja da pretensa “raça ariana” ou não), autoritário, duro consigo mesmo, sovina e arrivista até a mulher que se “emancipa no trabalho”, como sujeito ativo e masculino, do cliente preferencial do banco ao turista, do jurista ao traficante, e hoje até mesmo o celebrado mendigo “ecológico” catador de papelão de São Paulo, “empresário de sua força de trabalho” – todos alucinam poder decidir sua própria vida nas contingências da vida de mercado e democracia, tal qual Kant em seu passeio dominical em Königsberg.
4- O mundo moderno é o mundo dos objetos. Mas o objeto torna-se sujeito e vice-versa, numa cadeia reflexiva em progresso aparentemente infinito. O materialismo histórico em seu último grau de realização é a primazia coisificada dos sujeitos mônadas mercantis isolados, algo idêntico ao movimento cego da economia e do todo objetificado arrastado por ela. O triunfo desse sujeito é a festa coerciva do que está morto. Porque no fundo o sujeito nada mais é que a subjetividade abstraída e separada do contexto social e dos meios objetivos de vida, cindidos como “capital” de um lado e “força de trabalho” do outro. Assim, emergiria o chamado sujeito burguês: o “trabalhador” – o ser reduzido à capacidade de trabalho – e o “capitalista” – o ser reduzido à função de “administrador” do dinheiro e dos meios objetivos como capital. O sujeito apenas pode “funcionar” como sujeição instrumental de outros sujeitos e da natureza em geral (objetos para ele), embora o sujeito em geral seja sempre sujeitado e viva como abstração social, seja como potência bestial de trabalho ou de acumulação abstrata de dinheiro, em ambos casos algo assim como um nada que existe, um fantasma de seus desejos, i.e, do Outro, sempre contraposto selvagemente aos outros sujeitos como concorrente, sem escapatória. A dominação social em si mesma é, assim, abstrata e sem sujeito. Pois tal “sujeito do trabalho” converte-se, contraditoriamente, no máximo de sua autonomia, no “trabalho do sujeito”, isto é, no movimento coisificado e alienado do dinheiro como capital. A sociedade burguesa, porém, pode aparecer tal como se fosse a Humanidade encarnada, em movimento de ascensão triunfal ao “Saber Absoluto”, como um verdadeiro “sujeito racional” (Hegel). O valor capitalizado, porém, é o “sujeito automático” (Marx), o processo objetivo contraditório, tornado sujeito, que nega a singularidade das subjetividades humanas.
5- O mundo moderno é o mundo que, em seu máximo desenvolvimento, põe-se a eliminar os sujeitos e a necessidade da forma-sujeito. Uma produção em grande parte automatizada deixa de ser um processo de trabalho vivo, ou seja, o gasto sem sentido de energia para criar mais valor, mais dinheiro. A penúria e a humilhação social caem por sobre aqueles que não mais precisariam trabalhar, mas trabalham realmente mais do que nunca, totalmente mobilizados e flexibilizados pelo setor cancerígeno das ocupações subprodutivas e sub-remuneradas, porque estão presos à condição de sujeitos que não podem se apropriar de qualquer migalha a mais e sem mais, isto é, num mundo fetichista que continua pondo a todos na condição de sujeitos iguais, que precisam despender trabalho social igual para receber sua quota-parte correspondente. É todo o cálculo burguês da equivalência, idealmente ainda vigente na fase intermédia do socialismo, que se tornou virtualmente obsoleto e irracional. Ao contrário, a privação e a insegurança absolutas, no movimento veloz de acumulação hiper-monopolista, flexível e fictícia do capital, vão minando a própria idéia de sujeito do trabalho e de direito. Contudo, após a tripulação de sujeitos, virtualmente desnecessária, também o suposto maquinista político é expelido e o comboio avança, movido a crédito, para o crash global da modernização.
6- O mundo moderno é o mundo da destruição da própria subjetividade. A crise do trabalho é a explosão da própria base da sociabilidade moderna. O papel do trabalho na transformação do homem em macaco é a história a ser contada doravante. Na perda da capacidade de sentir, perceber, conceber ou criar uma vida emancipada, configura-se a tendência à própria barbárie. Os sujeitos monetarizados – e hoje cada vez mais sem dinheiro –, permanecem formalmente sujeitos que precisam lutar pela sobrevivência e se adaptar ao curso do mundo, mas sob pena do franco esgotamento do que um dia insinuou-se como subjetividade e experiência da individualidade humana. O limite da alienação é a construção de um sujeito sem subjetividade, com necessidades fabricadas exteriormente, absurdas e insensíveis – o máximo de formação pelo trabalho como deformação máxima. Então a forma-sujeito colonizadora, emancipada de toda “matéria” subjetiva, não tem mais o que colonizar. Por isso, o narcisismo é a neurose de nosso tempo. Nela o sujeito impotente e subjetivamente vazio tenta se defender de si próprio como sujeito superpotente. Ou, no limite inverso, o peso do cotidiano burguês sobre a subjetividade agonizante torna-se a tentativa desesperada, semiconsciente e muitas vezes regressiva de fugir do cárcere privado do sujeito: através da diluição do ego em álcool e drogas, da fome orgiástica de ruptura explosiva da vida normal, dos atos de revolta impensada, no riso infernal do preconceito e do orgulho racista, na violência gratuita, ou simplesmente dos sonhos aos surtos psicóticos, em todo o “retorno do reprimido” (Freud)… Por outro lado, uma certa subjetividade contra-sujeito deve resistir como o não-idêntico na arte, no pensamento crítico, nos movimentos sociais de contestação radical e produção de uma outra vida, ou simplesmente na compaixão, na amizade, no amor. Com efeito, quem ama não é sujeito.
7- O fim do trabalho será o fim do sujeito. A emancipação para além do trabalho é a emancipação para além da forma-sujeito. A superação do materialismo histórico e dialético é a superação da metafísica idealista do capital, que é real, isto é, que é tal materialismo vulgar invulgar, sensível supra-sensível, em ato. É a conquista da vida subjetiva singular como conquista da vida objetiva plenamente sensível e social, espacial e corporal. Isto tem como condição de possibilidade a supressão prática do fundamento abissal da modernidade: a produção de mercadorias, a produção de sujeitos.
* Antigos participantes do grupo de Estudos Krisis do Laboratório de Geografia Urbana (Labur) do Dep.Geog. da Universidade de São Paulo. Este texto fez parte da reunião “Krisis em Lisboa” de 2 a 9 de junho de 2001, em particular do debate: “Fim do trabalho: da teoria à práxis”, na “Biblioteca dos Operários” de Lisboa.