31.12.2001 

Tudo a postos no Kursk

O terror islamista e o auto-afundamento da Esquerda radical

Ernst Lohoff

Os atentados suicidas de 11 de Setembro não só mandaram pelos ares as Torres Gémeas de Nova Iorque, como também rebentam com o sistema de referências político. Não é que se pudesse imputar à política qualquer acanhamento perante pilhas de cadáveres, mas ela entretém uma relação utilitária com a violência e o assassínio de massas.

Não é tanto o número de vítimas em si que torna os acontecimentos de Nova Iorque especialmente monstruosos, como o rompimento com a lógica do recurso à violência política, a elevação do crime a fim em si. Quem se recorda do terrorismo dos anos setenta, lembra-se de sequestros com o objectivo de obter a libertação de correligionários presos, declarações fastidiosas, exigências concretas e o constante esforço pelo reconhecimento enquanto sujeito politico-militar e interlocutor a ter em conta. Tudo isto é profundamente estranho ao novo terror do morticínio indiscriminado. O meio e o fim, o acto de (auto-)destruição e a mensagem coincidem nele da forma mais imediata.

Desafiado por um adversário que virou costas ao universo político, a política oficial reage da mesma forma como sempre quando se tornam visíveis os seus limites históricos, nomeadamente recorrendo à estratégia da negação. Desbobina o seu programa e tenta responder com medidas politico-militares onde não há lugar a soluções politico-militares. No entanto, é precisamente com isso que a política oficial segue as pegadas do seu inimigo declarado e assim adquire, ela própria, uma relação profundamente irracional com o uso da violência.

A campanha pós-estratégica do Afeganistão inaugura um capítulo inteiramente novo da longa história da guerra: a guerra como acto simbólico. Quanto às operações militares contra os talibãs era, desde o início, ponto assente que elas iriam alcançar o preciso oposto do objectivo declarado. Providenciam um clima em que cresce e viceja exactamente o que se pretende combater, nomeadamente o terrorismo suicida e indiscriminado.

Ao menos do lado dos que estão desprovidos de responsabilidades políticas, os trezentos anos do esclarecimento parecem ter deixado algum rasto de bom senso. A acção punitiva mais falha de sentido desde que Xerxes, por vingança pelo atraso da travessia do seu exército de invasão causado por uma tempestade, mandou chicotear as ondas do Mar Egeu, de modo algum é recebida por um coro unânime de aplausos; no medo da perda da normalidade parece, com efeito, imiscuir-se algo semelhante ao pressentimento da qualidade nova do conflito.

Um pequeno segmento do público, porém, mostra-se imune a qualquer laivo de consciência crítica: falamos da Esquerda radical. Se tomarmos como medida as publicações da Jungle World dedicadas ao nosso tema nas últimas semanas, no final da era política não é só a política e o poder em grande escala a enlouquecer e a fazer enlouquecer; uma política identitária orientada especificamente para o segmento da Esquerda não alinhada tem o mesmo efeito.

Já era de esperar que a ala anti-imperialista dificilmente iria fazer um brilharete teórico perante os acontecimentos de Nova Iorque. Uma crítica do capitalismo que não conhece outra coisa senão o cálculo de interesses cínico e racional das potências capitalistas e os interesses igualmente racionais, mas legítimos dos que se lhes encontram subjugados, simplesmente não dispõe de qualquer categoria para extrair algum sentido ao atentado suicida islamista. Enquanto os seus representantes não questionarem os seus próprios pressupostos, a bem dizer, não dispõem de outra escolha a não ser a de se tornarem autistas e de soterrarem os acontecimentos mais recentes sob as chalaças mais gastas de um anti-capitalismo redutor.

Como isto resulta na prática demonstrou-nos de forma exemplar o Rainer Trampert com o seu artigo “a tragédia enquanto boa ocasião”, publicada no n° 41 da Jungle World. Consiste em não ligar peva ao que aconteceu em Nova Iorque e em Washington e em balbuciar, em vez disso, daquilo de que se balbucia desde sempre, ou seja, da geopolítica. O resultado da salvaguarda da identidade anti-imperialista não passou sem dar azo a vozes discordantes. O que é embaraçoso é que o próprio movimento discordante parte em grande medida de premissas próprias da política de identidade.

O ataque aos aspectos tacanhos dos comunicados anti-imperialistas transforma-se na justificação de uma posição contrária não menos tacanha. Há ano e dia, o espectro anti-alemão mantém-se ocupado a dar lições de moral à Esquerda e a desmascarar os seus enormes défices no que diz respeito ao anti-semitismo. Este empreendimento em princípio meritório parece, em partes da esquerda anti-alemã, ter adquirido uma vida própria sob a forma de uma obsessão provedora de mais-valias identitárias.

Em termos de conteúdo, o debate com o holocausto e com a ideologia alemã assume cada vez mais a função de uma explicação universal do mundo. Com isso, a crítica da psicose antisemita adquire traços de uma manifestação inversa do seu objecto. Em termos políticos de esquerda, tudo isso acaba por levar à instrumentalização do passado nazi. Com a moca do anti-semitismo na mão, a ala ultra-alemã dos anti-alemães ascendeu a honras de uma instância moral, nomeadamente em detrimento do espectro da Esquerda mais dotada de qualidades intelectuais.

Soube impor as seguintes premissas: a realidade capitalista e globalizadora tem de ser contemplada sempre e em todo o lado sob o aspecto condutor da busca do conhecimento que é o da continuidade da ideologia alemã e do anti-semitismo eliminatório. Quem perde a oportunidade de, a pretexto de qualquer acontecimento, colocar o potencial anti-semita e as maldades específicas da ideologia alemã no centro das próprias reflexões, no mínimo incorre no crime de os minimizar. O que nem mesmo os especialistas calibrados para os padrões de percepção anti-alemães conseguirem enfiar em semelhante esquema é, no máximo, de uma relevância secundária. Os atentados suicidas islamistas marcam o ponto em que esta tendência, activa de forma subrepticiamente já desde há bastante tempo, degenera em loucura sectária nua e crua. As duas declarações de comando da redacção da Bahamas relativamente ao 11 de Setembro documentam a transição de uma postura anti-alemã para um ponto de vista ultra-alemão.

Embora a excentricidade do passanço puro e simples da facção hardcore, rendida ao putativo sex-appeal das bombas, provavelmente não tivesse passado despercebida a ninguém, tal ainda não significa, de longe, o fim do estranho cativeiro mental. A redacção da Jungle World, pelo menos, ao definir o seu posicionamento relativamente ao conflito entre “a civilização ocidental” e “o terror islamista”, segue as directrizes supracitadas e está prestes a repetir o atentado mental suicida dos carcereiros da Esquerda não alinhada. A substância, no que diz respeito ao teor e à argumentação, não é propriamente impressionante. Os anti-alemães do estilo da redacção da Jungle World levam a dianteira aos anti-imperialistas por, bastante exactamente, duas constatações. Sabem do cariz de fim-em-si irracional dos atentados suicidas. Para além disso, perceberam que esta característica também foi apanágio do holocausto, fazendo-o sobressair relativamente aos horrores colaterais habituais da história da imposição da sociedade das mercadorias.

Mas por que motivo deverão estas duas constatações obrigar a Esquerda a meter na gaveta a crítica do capitalismo a fim de prosseguir a sua existência como uma Esquerda à Huntington? Muito simplesmente porque sabem, à semelhança do exemplo da Bahamas, somar um mais um de forma a dar três. Os anti-antisemitas partem da suposição de que o irracional encontrou no antisemitismo eliminatório, conhecido da história alemã, a sua expressão única e essencial, de onde é um pulo a saberem tudo acerca do terror islamista e, como é natural, também acerca da melhor forma de o combater. A civilização ocidental tem de fazer frente à cultura germano-islamista e mostrar-lhe quem é que manda em casa com os mesmos meios como outrora os assassinos nacional-socialistas. A Esquerda supostamente não pode negar-se a tal necessidade.

Segundo os cânones oficiais da redacção da Jungle World, a acção kamikaze contra o World Trade Center constitui, sem a menor dúvida, “um atentado antisemita”. É deveras espantoso como, pela falta de uma pequena conjunção, uma constatação verdadeira se converte em balelas. Evidentemente o ódio ao estado de Israel tem um papel importante no conjunto da situação ideológica que perfaz o islamismo, assim como o têm, até certo ponto, motivações antisemitas. O argumento, porém, segundo o qual teriam sido decisivos para a escolha do World Trade Center e do Pentágono como alvos a abater e, com o atentado suicida, “os judeus em Israel deviam ser, finalmente, corridos para o Mar” (Jungle World 40), é perfeitamente estapafúrdio.

Os belicistas adoptam um tom alarmista. Em termos objectivos, porém, a sua posição redunda numa dupla banalização. Elevar o terror islamista ao mesmo nível com a aniquilação dos judeus europeus significa relativizar o holocausto. Pela ordem inversa, a equiparação também reduz de uma forma grotesca a dimensão do processo de desmoronamento bárbaro e irracional a que hoje se encontra sujeita a sociedade mundial das mercadorias. O irracional alimenta-se hoje de fontes múltiplas que não são todas antisemitas. O mesmo aplica-se evidentemente também ao terror islamista.

Não é necessário sermos peritos de estudos islâmicos para descortinarmos diferenças perfeitamente elementares entre o programa de aniquilação nacional-socialista e o terror suicida islamista. No caso do holocausto, tratou-se do reverso sombrio de uma formação, e estatização total, etnocêntrica e nacionalista. O carácter burocrático do aniquilamento era a sua característica essencial, não constituindo nenhum pormenor de superfície. O islamismo, pelo contrário, é todo ele produto e consequência de uma frustrada modernização laicista e de estado nacional, sendo que a carreira de Al-Qaeda & Cª Ldª no seio da corrente islamista se iniciou justamente com o fracasso do islamismo enquanto movimento político. No início dos anos noventa, este parecia estar a um passo de tomar o poder em vários países islâmicos (lembremo-nos só da Argélia).

No entretanto, o islamismo já há muito que degenerou na ideologia de cobertura de senhores da guerra e num programa de autodefesa para possuidores desorientados de autorizações de residência. O antisemitismo dos nazis dirigia-se contra um “elemento estranho ao povo” “anacional” e antagónico relativamente à formação constituída pela comunidade nacional. Com esta perspectiva, ele teve oportunidade de retomar uma tradição profundamente enraizada na história ocidental das ideologias e mentalidades, ao passo que no espaço islâmico não existe semelhante precedente. As ideias antisemitas aqui só aparecem no decurso do século XX e, para além disso, tiveram desde o início outro carácter. Onde a declaração de inimizade ao “judaísmo” se refere a um estado nacional judaico, ela não pode adoptar sem mais nem menos as ideias do antisemitismo europeu que via nos judeus justamente uma ameaça anacional e antagónica à formação da identidade de qualquer estado nacional, imaginando essa ameaça, por isso, como algo de omnipresente.

A equiparação da declaração de inimizade contra o estado de Israel ao antisemitismo dos nazis constitui uma concretização projectiva dos deuses anti-alemães. Não falta uma certa ironia ao facto de logo aqueles que desde sempre (e com toda a razão) andaram a insistir na singularidade do holocausto, perante as imagens dos escombros de Manhattan, descartem explicitamente (Bahamas) e implicitamente (Jungle World) esse mesmo ponto de vista. Semelhante auto-desmentido apenas se torna possível devido ao facto dos defensores anti-alemães da civilização, pelo sim, pelo não, nem sequer embarcarem na aventura de uma justificação objectiva. Preferem criar uma impressão de plausibilidade recorrendo a mudanças de assunto.

Em vez de começar a analisar os atentados ou o desenvolvimento da corrente islamista enquanto tais, um artigo da Jungle World após o outro vai cascando, ora com razão, ora sem ela, nas reacções duvidosas e por vezes realmente compatíveis com sentimentos antisemitas da Esquerda local. No melhor dos casos, olham um pouco para além das paredes mais imediatas da respectiva divisão esquerdista e sujeitam as correntes cépticas relativamente à guerra, no seu todo, à busca sistemática e obrigatória por insinuações antisemitas e nacionalistas alemãs. (Estranhamente, a distância em relação à política dos EUA, existente em todos os estados europeus, figura invariavelmente como um fenómeno especificamente alemão.)

Depois deste tipo de crítica ideológica ter conseguido reduzir a situação motivacional bastante variada entre os cépticos da guerra alemães ao ressentimento antisemita alemão, as juras anti-alemãs de fidelidade à civilização ocidental, pelo raciocínio inverso, entendem-se por si. Com as suas ambições críticas da realidade, a abordagem crítica do valor constitui, para este tipo de crítica ideológica, um aborrecimento permanente. Mas esta última tem os seus métodos de lidar com este transviado. Se não considerarmos o truque da denúncia pura e simples (método Runge), a via mais fácil consiste em bater desalmadamente numa crítica do capitalismo redutora e personalizante e fazer de conta que a crítica do valor ficou logo despachada com esta (G. Scheit, Jungle World 40).

Mas ainda há métodos ligeiramente mais rebuscados (método Landgraf / Scheit, igualmente Jungle World 40). O facto da análise ter de se colocar forçosamente num ponto de vista fictício, exterior ao objecto da análise, é tido por uma atitude de sobranceria. Com isto, a tomada de partido por todas as vítimas de uma violência irracional que se desvie do pró-americanismo próprio pode ser transformada numa declaração de neutralidade que, na situação presente, seria imoral.

Já uma vez, uma histerização anti-antisemita deu origem a uma grande leva de distanciações que conduziu antigos opositores do capitalismo de volta à comunhão de valores democrática e ocidental. Onze anos volvidos sobre a segunda guerra do Golfo, uma nova geração volta a enveredar por esta via específica dos alemães de Esquerda para se fazer as pazes com a normalidade capitalista. Ao passo que os trânsfugas, naquela altura, pelo menos sabiam o que faziam, hoje não se poderá necessariamente dizer o mesmo. Por detrás da exigência de Anton Landgraf de que a Esquerda deveria começar por tomar partido pelo capitalismo e contra os seus inimigos deverá encontrar-se, de facto, a suposição de estarmos, neste momento, perante uma situação de excepção. Mas por muitas voltas que ele e outros possam dar, tudo indica que, na era de crise que se avizinha, deverá ser o confronto entre a normalidade da globalização em vias de desmoronamento e os produtos bárbaros da sua desintegração a ditar a ordem do dia. Quem pensa ter a obrigação de tomar, em caso de dúvida, partido pelo Ocidente, dificilmente voltará a ter a possibilidade de se dar ao luxo de tomar partido por qualquer outra coisa.

Tradução: Lumir Nahodil

Ernst Lohoff é ensaísta, co-editor da revista Krisis e autor de várias obras na Alemanha.

Publicado em www.krisis.org em 13/11/2001.

(Este artigo estava originalmente previsto para ser publicado na Jungle World mas, ao fim de alguns atritos internos, foi recusado)