Entrevista com Norbert Trenkle
Como reagir diante da conjuntura pós-industrial, conjuntura esta vista como uma fase de ruptura, em um momento em que somente se apresentam soluções presas ao modelo vigente do trabalho assalariado, em que a renda mínima é defendida como principal forma de seguridade social? Em outras palavras, como é possível criticar os mecanismos que desintegram a solidariedade e as relações capitalistas de produção sem ficar-se estagnado na defesa do Estado assistencial e sem assumir o ponto de vista de classes industriais do passado? Estas e outras questões são discutidas nesta entrevista com Norbert Trenkle, do grupo alemão Krisis. O grupo, concentrado na produção teórica, visa criticar a sociedade capitalista em seus aspectos constitutivos, focando-se, por exemplo, no trabalho, no capital e na produção de mercadorias. Também constam como tópicos desta entrevista o sentido atual de “esquerdismo” e algumas questões relativas a métodos de ação.
Antes de mais nada, você poderia fazer uma apresentação das origens, fases, produções e esforços de seu grupo?
Para começar, Krisis se refere a uma publicação sócio-crítica de mesmo nome, que publicamos desde 1986. A publicação originalmente se chamava Marxistische Kritik, o que já diz algo sobre nossa origem “política”. Nós nos originamos do marxismo, mais exatamente do neo-marxismo, à luz do assim chamado “movimento de 1968”, embora a maior parte dos membros do grupo fosse jovem demais para ter participado desse movimento. Nos anos 80, quando os limites do marxismo se tornavam cada vez mais claros, isto é, quando se revelava a sua incapacidade de formular uma crítica social adequada do estado de desenvolvimento capitalista, não vimos razão para nos juntarmos aos defensores da economia de mercado e do Estado. Pelo contrário. Nós vimos e vemos o fracasso do marxismo como conseqüência do fato dele não ser, de forma alguma, uma crítica suficientemente radical da sociedade. No todo, ele permanecia sendo uma teoria da modernização burguesa que, contrariamente ao que afirmava, nunca avançou a uma crítica fundamental da sociedade capitalista. Tal crítica deve começar pelas formas básicas desta sociedade: mercadoria, valor, trabalho e dinheiro. Não é por acaso que Marx, em sua obra principal, O capital, começa exatamente com estas categorias, e que ele as escolha como pontos de partida de sua análise e crítica como um todo. Isto porque são estas categorias que constituem a sociedade capitalista.
Entretanto, com poucas e raras exceções, o marxismo nunca compreendeu isso. Ele sempre se concentrou no nível secundário e derivado da exploração e da dominação de classe. Por causa disso, a dimensão decisiva da teoria de Marx foi abandonada. Nossos primeiros anos, portanto, se caracterizaram por uma análise do marxismo, ou melhor, por uma crítica fundamental do marxismo. Para nós, isto certamente nunca foi uma questão de comparar um “Marx verdadeiro”, interpretado de uma certa maneira, com o marxismo. Marx, naturalmente, também deve ser situado historicamente, ou seja, ele, como qualquer outro teórico, estava sob muitos aspectos limitado pelas perspectivas de seu próprio tempo. Ainda assim, ele estabeleceu as bases para uma crítica social que, na verdade, somente hoje se torna relevante: a crítica do capitalismo como um sistema produtor de mercadorias, ou, em outras palavras, um sistema fetichista da mercadoria. Resumindo, isto significa entender e criticar o capitalismo como uma sociedade na qual as relações sociais se emanciparam dos seres humanos, têm poder sobre eles e os domina como relações entre coisas – ou seja, mercadorias. Nossos esforços foram e são dirigidos ao avanço desta crítica, direcionando-a e sobretudo concretizando-a em relação ao estágio atual do sistema capitalista global. Além disso, não nos limitamos a publicar a Krisis uma ou duas vezes por ano, mas também organizamos seminários, participamos de discussões, publicamos artigos em outros periódicos e jornais, e escrevemos livros – resumindo: intervimos no discurso da crítica social em muitos níveis.
Uma proposição contra o trabalho assalariado tem um lugar central em sua pauta. Segundo a concepção marxista, isto significaria a defesa do “trabalho vivo” (um trabalho não-alienado e não-mercantilizado). Que possibilidades ou obstáculos – no que diz respeito a esta defesa – você vê surgirem no desenvolvimento de novas formas de trabalho, do assim chamado trabalho imaterial (produção de informação, comunicação e afins)? E mais, qual é a sua crítica geral da idéia de “renda mínima”?
Nossa crítica não se dirige somente contra o “trabalho assalariado”, mas contra o trabalho em si. Por isto, publicamos um panfleto há dois anos, por exemplo, que propositadamente chamamos de Manifesto contra o trabalho. Uma diferença fundamental com relação ao marxismo tradicional se revela aqui. Qual seja, o marxismo sempre criticou o capitalismo do ponto de vista do trabalho. O trabalho era considerado a antítese positiva do capital e, portanto, o objetivo da luta de classes era libertar o “trabalho vivo” do capital. Mas o trabalho é uma categoria inerente à sociedade burguesa; ele é uma forma de atividade muito específica, característica do capitalismo, ou, mais precisamente, ele se constitui no núcleo da sociabilização capitalista. O que isto significa? Antes de mais nada, a especificidade do trabalho se deve ao fato de que, no capitalismo, os laços sociais são produzidos por ele. Os homens participam das relações sociais através do trabalho, ao produzir, comprar e vender produtos do trabalho, isto é, mercadorias, e ao vender a si mesmos como força de trabalho. Portanto, não importa o que é produzido e como é produzido, o que importa é se a mercadoria pode ser vendida. Nestas circunstâncias, ocorre uma abstração tanto das qualidades quanto das condições de produção do produto.
A força motriz deste infinito movimento de produção, cujo único objetivo é a própria produção, é a valorização do capital, isto é, o abstrato fim em si mesmo de transformar dinheiro em mais dinheiro. Entretanto, a forma de atividade deste movimento é o próprio trabalho. O trabalho, assim como o capital, é em princípio indiferente ao processo total. Isto é expresso de forma bastante clara no slogan social-democrata: “trabalho, trabalho, trabalho”. E isto se torna especialmente evidente quando os assalariados lutam por empregos em áreas da produção que são obviamente perigosas ou ecologicamente agressivas, tais como as indústrias nucleares ou automobilísticas. Naturalmente, do modo como são as coisas, não podemos culpá-los, porque eles, como a maioria das pessoas em nossa sociedade, também dependem da venda de sua força de trabalho para viver. Mas esta mesma razão mostra que o trabalho não é o antagonista correspondente do capital, mas apenas o outro pólo dentro do mesmo sistema de referência pressuposto da sociedade da mercadoria.
Obviamente há um conflito de interesses inerente entre trabalho e capital. Pois o interesse dos trabalhadores, em receber salários tão bons quanto possível e condições de trabalho que sejam de certa forma toleráveis e não muito insalubres, é um fator de custo que toda empresa gostaria de reduzir tanto quanto possível. Entretanto, a tendência geral, hoje, é colocar este conflito de interesses diretamente nos próprios indivíduos. Isto se torna claro nos exércitos de subcontratados, pseudo-autônomos e pequenos empresários que representam o capital e o trabalho em uma única pessoa. Mas também os novos conceitos de gerenciamento de “organograma horizontal” (com poucos níveis hierárquicos) e auto-motivação – especialmente nos novos setores da informação, comunicação e empresas prestadoras de serviços – têm o “empreendedor interno” como um ideal. O mesmo, entretanto, também se aplica aos extensos setores de miséria na “economia informal”, onde as pessoas são forçadas a trabalhar como o menor de todos os empresários. Aqui, a identidade fundamental de trabalho e capital como princípios de coerção social, que ainda fazem efeito quando as pessoas não são mais necessárias, do ponto de vista da valorização, se torna perfidamente visível.
Isto não significa que as lutas trabalhistas sejam desnecessárias ou mesmo equivocadas. Entretanto, é necessário que se faça uma mudança de perspectiva. Não se trata de libertar o trabalho, mas de libertar-se do trabalho. Isto significa criar condições sociais nas quais os seres humanos possam decidir livremente sobre como, de que forma e com que objetivos querem agir. Nestas circunstâncias, a renda mínima é uma reivindicação bastante paradoxal. Por um lado, ela quer remover a coerção de ter de trabalhar, liberando os seres humanos da necessidade de ter de ganhar dinheiro a qualquer custo. Mas com o dinheiro (que deve estar disponível para todos), ela acriticamente pressupõe a produção de mercadorias, e portanto o trabalho. Ainda que a reivindicação seja inicialmente positiva, porque questiona o fetichismo do trabalho dominante, a crítica permanece parcial, e é rebatida antes de atingir o problema fundamental. A renda mínima, por falar nisso, tem alguma chance somente nos países centrais do mercado mundial, mas mesmo lá, na melhor das hipóteses, em um nível de pobreza e como substituição a benefícios sociais existentes, exatamente como já foi proposto pelo neoliberal Milton Friedmann nos anos 60.
É possível que o declínio da instituição do trabalho assalariado promova – pelo menos temporariamente – um declínio dos serviços e benefícios sociais básicos (“seguridade”)? E isto abre possibilidades para a cooperação mútua espontânea, ao invés do desaparecimento da coletividade? Estes problemas também estão ligados às questões de como encorajar as pessoas a participar ou tomar a iniciativa, no centro do processo geral de atomização, e de como usar situações de crise social (como criar rupturas, mas ao mesmo tempo evitando confrontações fúteis entre “vanguardas revolucionárias” e o aparato de repressão).
A constante diminuição do trabalho nas áreas centrais da produção é uma expressão da crise fundamental do capitalismo, que começou nos anos 70, com o fim do fordismo. A causa é o enorme aumento de produtividade no curso da assim chamada “revolução microeletrônica”, que possibilitou uma produção cada vez maior de mercadorias com uma força de trabalho cada vez menor. Como tal, este desenvolvimento poderia ser muito positivo, porque cria a oportunidade de riqueza de produção material e de tempo livre disponível para todos. Entretanto, na sociedade capitalista esta oportunidade não pode ser realizada, porque o critério da produção não é a satisfação de necessidades humanas, mas a valorização do capital. A “revolução microeletrônica”, portanto, tem como resultado paradoxal uma crescente pauperização em meio a um enorme potencial de riqueza. Em número cada vez maior, pessoas se tornam supérfluas para a valorização capitalista, não têm chances de vender sua força de trabalho, e são impedidas de acessar a riqueza da sociedade, porque não podem mais ganhar dinheiro “de forma regular”. Ao mesmo tempo, isto significa que a base da valorização capitalista, que consiste na utilização econômica de força de trabalho viva, encolhe cada vez mais. Ou seja: a “crise do trabalho” é também, necessariamente, uma crise do capital. Ela se manifesta através da intensificação na competição global, da crescente centralização do capital (aquisições e fusões de empresas), e da concentração da produção lucrativa global em um número de localizações cada vez menor.
Um dos resultados desta crise é o desmonte dos sistemas sociais que está acontecendo em toda parte. Entretanto, penso que seria por demais otimista dizer que isto abre possibilidades de cooperação espontânea. Pelo contrário. Antes de mais nada, esta competição diária desintegradora é intensificada, e cria-se um clima de dessolidarização. Claro que, ao mesmo tempo, como reação a esta crise e ao desmonte social, diferentes formas de ajuda mútua são criadas, mas como regra geral elas têm o caráter de medidas emergenciais, permanecem fundamentalmente restritas a grupos, e raramente se unem a uma orientação sócio-crítica. Elas são, portanto, facilmente engolidas pela administração neoliberal da crise. Não é fácil responder à questão de como achar uma saída desta complicada situação. De qualquer forma, uma resistência contra as demandas cada vez mais duras e irrazoáveis da administração neoliberal da crise faz-se necessária. Mas esta resistência não pode se limitar a uma mera defesa do assistencial – que seria de qualquer forma uma perspectiva exclusiva dos poucos países do centro capitalista e somente às custas do resto da humanidade – mas deve também desenvolver-se como um movimento que questione radicalmente os fundamentos do capitalismo: mercadoria e dinheiro, Estado e nação, trabalho, e as relações patriarcais entre os sexos.
Sua perspectiva parece evitar o “esquerdismo” rígido e antiquado, mais ainda assim é “esquerdista”, nestes tempos em que o esquerdismo social-democrata “evoluiu” a um neoliberalismo disfarçado, chamado “terceira via” (as situações na Finlândia e na Alemanha são muito parecidas atualmente). Que movimentos sociais atuais estão colocando em prática a perspectiva esquerdista de vocês? E mais, uma identidade esquerdista ainda pode ser útil? Quais são as reivindicações mais fundamentais destes movimentos?
Quando falamos em “esquerda” e “direita”, pode ser útil examinar mais atentamente a origem destes conceitos. Elas derivam da distribuição dos assentos na Convenção Nacional na época da Revolução Francesa: os jacobinos radicais sentavam-se à esquerda, os poderes conservadores à direita; neste aspecto, estes conceitos descrevem somente uma polaridade interna da ordem social burguesa. Entretanto, durante os últimos duzentos anos a esquerda entendeu a si mesma como um poder social que queria transcender o capitalismo. Mas, examinando-se atentamente, em retrospectiva, seus programas políticos e suas práticas, pode-se ver muito claramente que ela representou apenas um elemento de desenvolvimento histórico, de cuja ajuda a sociedade da mercadoria soube aproveitar-se. Apenas lembro a atitude quase religiosa em relação ao Estado e ao trabalho. No processo histórico, a esquerda nunca desempenhou o papel de um poder que transcende o sistema. Ao invés disso, ela contribuiu para a generalização do trabalho e da produção de mercadorias como formas sociais.
Portanto, quando Tony Blair e todos os outros representantes da “Nova Social-Democracia” afirmam estar “além da esquerda e da direita”, eles então revelam mais do que sabem: ou seja, a identidade fundamental destes dois pólos, que atualmente está se revelando, porque o seu sistema de referência, a sociedade produtora de mercadorias, atingiu seus limites históricos. Obviamente, Blair e seus associados de forma alguma estão fora deste sistema de referência. O que eles chamam de “realismo” ou pragmatismo não é nada mais do que o gerenciamento do seu processo de crise, em uma época na qual a antítese inerente entre esquerda e direita se torna na realidade cada vez mais obsoleta.
Em comparação, a crítica radical do capitalismo se dirige realmente a um “além” da ordem social vigente, e portanto não pode mais ser chamada de “esquerdista”, em um sentido estrito. Isto não é um jogo de palavras. Trata-se de uma nova orientação anticapitalista que supera e transcende o velho “esquerdismo”, em um sentido emancipatório. Movimentos sociais com tal orientação ainda não existem; isto, inclusive, porque a esquerda tradicional ocupa simbolicamente o lugar da oposição ao sistema, ainda que ela possa cada vez menos corresponder às expectativas de tal oposição.
A principal estratégia dos movimentos anticapitalistas atuais tem sido a organização de dias de ação globais (Seattle, Washington, Praga, etc.), que, entretanto, estão possivelmente chegando ao seu fim, à medida que as formas de ação estão começando a ficar repetitivas, que o interesse da grande mídia diminui, já que o caráter surpreendente se esvai, e que a estrutura de poder neoliberal pratica a repressão mais abertamente (violando os direitos civis dos manifestantes, etc.). Que saídas você vê para este beco sem saída? Talvez a abertura em direção à sociedade civil e a inclusão mais clara de alternativas em nossa vida cotidiana? Por outro lado, a organização de numerosos movimentos está fortemente ligada a esta difícil questão…
Também vejo o perigo de que os protestos antiglobalização possam desgastar-se, ainda que a massiva repressão em Gênova inicialmente tenha contribuído tanto para uma maior divulgação quanto para uma certa solidariedade entre o público em geral. Mas nenhuma forma de ação diferente evitaria este perigo, porque sua razão mais importante está em outro ponto. O perigo está no fato de que os protestos, em sua crítica e orientação, permanecem muito difusos e em grande medida não têm um caráter anticapitalista, mas se dirigem a “reformas” ilusórias do sistema mundial produtor de mercadorias. Isto inicialmente torna possível um amplo movimento, mas, por outro lado, cria apenas uma solidariedade muito fraca e precária, que pode se romper a qualquer momento. E isto acontecerá tão logo o processo de crise socioeconômica se faça sentir mais severamente nos países até então altamente privilegiados do mercado mundial. Mas antes de tudo, as reivindicações e interesses completamente contraditórios que até então puderam coexistir pacificamente no movimento entrarão em conflito uns com os outros. Penso, por exemplo, na contradição entre os interesses por medidas protecionistas, por parte dos sindicatos ocidentais, e as reivindicações pela abertura dos mercados às importações, por parte do Terceiro Mundo. Ou ainda na contradição entre o clamor keynesiano-esquerdista por empregos e as questões ecológicas.
Em segundo lugar, isto também mostrará que as reivindicadas “reformas” do mercado financeiro internacional e o apelo ao Estado pela regulação mais rígida do mercado são completamente ilusórios. E não porque falte vontade política – um movimento certamente poderia auxiliar isso, se fosse forte o suficiente – mas porque os fundamentos econômicos não existem mais. Especialmente a crença ilusória no Estado é um exemplo típico, que mostra que as bugigangas ideológicas da esquerda tradicional ainda estão presentes no movimento antiglobalização, mesmo que estejam obsoletas há muito tempo. Pois o movimento operário, seja ele “reformista” ou “revolucionário”, sempre foi completamente fixado no Estado (isto é verdade para a corrente principal do movimento operário). Mas não há volta possível aos tempos do keynesianismo e do fordismo, que, diga-se de passagem, não foram tão “dourados” quanto os nostálgicos da social-democracia querem nos fazer crer. Também não há avanço possível para um novo sistema de “regulação”, por exemplo, em um nível europeu ou global, porque a crise do Estado e da política é ela própria parte do processo de crise fundamental que abarca todos os aspectos da vida. Portanto, não se deve esperar soluções daí. Apesar disso, nos centros de crise capitalistas o Estado deve permanecer por algum tempo como uma autoridade poderosa; nem que seja pela sua função repressora. Portanto, os movimentos sociais naturalmente terão que continuar a levá-lo em consideração e a confrontá-lo. Mas isto é diferente de cultivar uma crença ilusória no Estado.
No movimento antiglobalização, entretanto, há também a ilusão da “sociedade civil”. Sendo este conceito tão difuso e vago, quase qualquer coisa pode ser projetada nele. Mas ela realmente representa um consenso básico muito difundido, qual seja, a idéia de ser capaz de controlar o capitalismo, de enriquecê-lo com elementos de auto-organização, e de “civilizá-lo”. Os conceitos de “sociedade civil”, portanto, geralmente não são contraditórios à crença ilusória no Estado, mas apenas a suplementam. Ignora-se completamente que a moderna sociedade produtora de mercadorias ainda não seria um sistema benevolente, mesmo que todas as pessoas pudessem permanentemente tomar decisões sobre o que deve acontecer; pois a lógica básica do sistema é assim sempre pressuposta. Portanto, somente as alternativas que são compatíveis com a sua lógica básica podem ser escolhidas. Toda auto-organização imanente às formas existentes será portanto reduzida ao absurdo, porque elas resultam na auto-organização da competição, da “racionalidade econômica” e da redução de custos. Aliás, esta é uma experiência dolorosa que todas as cooperativas e empresas autogestionadas tiveram que experimentar seguidamente.
Particularmente no processo de crise, um controle democrático ou “sócio-civil” reduz-se à autogestão de uma miséria crescente, como pode ser observado em muitas municipalidades onde iniciativas de associações, cidadãos, e assim por diante, podem participar na destinação de orçamentos cada vez menores. Eles próprios podem decidir de quem será o dinheiro que será ou não será cortado, exatamente como nos conceitos de gerenciamento moderno, onde os empregados podem decidir como podem atingir o objetivo geral, sempre predeterminado, de um desempenho de trabalho o melhor possível, e portanto controlar a si mesmos permanentemente. Isto não é apenas especialmente pérfido, mas acima de tudo tem um efeito estabilizador para o sistema, porque os envolvidos identificam-se então ainda mais com os imperativos e coerções predeterminados. Eles, então, parecem ser “autodeterminados”, e torna-se ainda mais difícil questionar tais imperativos e coerções.
Não quero dizer com isso que a idéia de auto-organização social seja equivocada. Pelo contrário. Uma emancipação do sistema da sociedade mercantil só pode significar que a interligação da sociedade global não pode mais ser feita sem o consentimento das pessoas, através dos canais repressivos do Estado e do mercado, mas conscientemente, através de estruturas descentralizadas, diferenciadas e não-hierárquicas de auto-organização social. Mas isto é exatamente o que “sociedade civil” não significa. Este conceito promove a ilusão de que o capitalismo pode ser “domesticado” e “civilizado”. O elogio da “sociedade civil” de certa forma me lembra da mistificação do “proletariado” e do “povo”. A sociedade civil surge como a corporificação do “bem” contra o “mal” do capitalismo e do Estado, ainda que, de qualquer forma, ela não seja mais do que uma parte integral do próprio sistema. Isto não exclui a possibilidade de que um movimento anticapitalista possa surgir deste setor da sociedade que é comumente chamado de “sociedade civil”. Mas isto baseia-se no pré-requisito da destruição da ilusão da “sociedade civil”. Em certo sentido, o processo de crise também tem sua parte nisso. Pois fica cada vez mais claro que as promessas por meio de melhoras inerentes ao sistema nunca poderão ser cumpridas (basta pensar na proteção climática e na pauperização mundial), mas pelo contrário, os padrões estão se tornando cada vez mais baixos em toda parte. É decisivo, porém, a forma como estas experiências são assimiladas. Os desapontamentos podem se transformar em resignação ou podem ser assimilados regressivamente, como motivos racistas, anti-semitas e de darwinismo social.
Portanto, é muito importante desenvolver um discurso e sustentá-lo no movimento antiglobalização. Este discurso deve insistir que só pode haver uma saída da espiral mundial de miséria, violência e destruição das bases sociais e ecológicas da vida se os fundamentos do sistema mundial produtor de mercadorias forem questionados. Se for possível mostrar isto claramente, esta pode ser a faísca detonadora, que faça o movimento – ou parte dele – evoluir a um movimento radical anticapitalista. O potencial para isto certamente existe, porque o mal-estar com a crescente insustentabilidade da crise global capitalista está muito difundido, mesmo se até agora ele tenha se manifestado em formas difusas ou inerentes ao sistema.
A discussão a respeito d’ “O Livro Negro do Comunismo” tem sido vigorosa de um país a outro (por exemplo, na Finlândia, onde sua tradução foi publicada no outono de 2000); um de vocês, Robert Kurz, escreveu “O Livro Negro do Capitalismo”, claramente como uma reação a tudo isso. O que temos a aprender destas discussões e qual você pensa que tenha sido a sua principal função? A legitimação do “fim da história” (como propôs Francis Fukuyama) ou pura consternação com os genocídios?
O Livro Negro do Capitalismo, de Robert Kurz, não é uma reação a O Livro Negro do Comunismo, ainda que seu título inicialmente sugira isto, e de forma natural e polêmica o insinue. Ele tem um caráter completamente diferente. Ele apresenta a história sangrenta, cruel e repressiva da moderna sociedade da mercadoria e se detém particularmente na interconexão entre processos históricos e reflexões ideológicas. Por exemplo, ele mostra que papel teve o Iluminismo na condução e internalização das coerções capitalistas, tais como a coerção de ter de trabalhar.
Em comparação, O Livro Negro do Comunismo é uma obra muito repulsiva, cujo único objetivo é legitimar as condições em vigor e disseminar a mensagem de que não há alternativa ao capitalismo. Empiricamente, o livro não traz quase nenhum conhecimento novo, e obviamente se abstém de uma reflexão teórica fundamental. E, naturalmente, seus autores não poderiam suportar a idéia de que os crimes cometidos por Stalin e associados não foram de nenhuma maneira os resultados de uma tentativa, de alguma forma fracassada, de transcender o capitalismo, mas devem ser entendidos como uma genuína expressão da lógica capitalista. Pois o “socialismo real” não foi um sistema alternativo ao capitalismo, mas uma forma histórica específica de modernização capitalista recuperadora. Foi a forma pela qual o sistema produtor de mercadorias foi implementado nos estados periféricos (isto é, os estados retardatários do mercado mundial). A brutalidade com que isto aconteceu é de certa forma uma repetição acelerada do que aconteceu com os homens na Europa Ocidental e suas colônias nos últimos quatro séculos. Não se trata, de forma alguma, de uma relativização, mas estes fatos não testemunham a favor do capitalismo, mas claramente contra ele. Isto é parte integral da história do capitalismo, mesmo que os autores d’O Livro Negro do Comunismo e a maior parte de seus leitores naturalmente não queiram enxergar esta conseqüência. Entretanto, o seu horror na verdade não é hipócrita, mas tem um caráter de projeção. Nos crimes do assim chamado comunismo eles inconscientemente reconhecem a imagem especular de sua própria história de trevas. E isto, naturalmente, deve ser veementemente reprimido.
Seu trabalho tem sido “apenas” teórico. Que tipo de função, exatamente, você vê para os teóricos e para a teoria nos movimentos sociais? Como se pode evitar uma liderança não-oficial dos intelectuais e de suas posições representativas?
A teoria é uma forma específica de reflexão, que é tão particular ao capitalismo quanto o é o trabalho, a política, o Estado-nação e coisas afins. É uma forma de reflexão separada do cotidiano. Isto é necessário porque as relações sociais são produzidas de forma quase-automática, sem o consentimento dos membros da sociedade, e então devem ser arduamente decifradas, em retrospectiva. Isto se aplica também e especificamente a uma teoria sócio-crítica. Ela é necessária porque a lógica social contra a qual se dirige não se mostra diretamente. Mas a teoria sócio-crítica, assim, se encontra em uma contradição fundamental: ela se move dentro dos limites daquilo que ela critica. Mas esta é uma contradição, diga-se de passagem, da qual nem mesmo um movimento anticapitalista de cunho prático pode escapar, pois ninguém fica fora da ordem social existente, mesmo que lute contra ela.
Certamente não há saída fácil para esta contradição. Ainda que a teoria sócio-crítica, de acordo com sua própria pretensão, se esforce por tornar-se prática, esta pretensão não pode ser prontamente realizada. De qualquer forma, a “unidade entre teoria e prática”, freqüentemente cantada como um mantra pela esquerda, é equivocada. Pois isto sempre quer dizer que a teoria comanda a prática, ou vice-versa, a teoria se subjuga a demandas táticas de uma prática não mais reflexiva. Ao final, ambos os lados perecem, como pode ser visto ao estudar-se a história do movimento operário. A relação entre teoria e prática só pode ser de troca mútua. Ambos os lados devem respeitar um ao outro como independentes, devem reconhecer um ao outro, e devem referir-se um ao outro sob esta condição.
O que nós, teóricos, podemos fazer inicialmente neste processo é desnudar a lógica fetichista destrutiva desta sociedade, e desta forma, fazer a sua crítica. Ao fazê-lo e ao tentar concretizar a crítica de diversos fenômenos, inclusive em diversos níveis da sociedade, surge algo como um ponto de orientação negativo, para uma possível prática anticapitalista. Negativo no sentido de que torna-se claro o que deve ser combatido e transcendido. Mas a teoria sócio-crítica também deve ser consciente de seus próprios limites. Ela não pode e não deve dar instruções para tal prática, nem criar nenhum plano futuro que deva ser “realizado”. Acima de tudo, ela não deve tentar postular nenhum princípio para uma sociedade pós-capitalista. Pois, se alguma coisa pode ser dita sobre a sociedade pós-capitalista, é que ela não estará subjugada a um princípio abstrato-universal central, válido em todos os lugares, como no caso da sociedade vigente, que deve, por bem ou por mal, obedecer ao ditado da valorização. Ainda que a partir desta crítica possam ser feitos esboços sobre o que significaria a transcendência da sociedade da mercadoria, eles devem permanecer em um nível muito abstrato, e ao final só podem ser concretizados por um movimento social. Pode ser dito, por exemplo, que em uma sociedade pós-capitalista as pessoas não formarão mais as suas relações sociais indireta e inconscientemente, através das formas fetichistas do dinheiro, do trabalho, e do Estado. Anteriormente descrevi isto através da expressão “estruturas de auto-organização social”.
Mas, ao mesmo tempo, desta compreensão teórica segue que um movimento anticapitalista não deve ser orientado à conquista do Estado (o que estaria de acordo com os modelos revolucionários tradicionais). Como perspectiva de ação, antes pode ser dito: começar um processo de apropriação direta dos laços sociais (desde os meios de produção, existência e comunicação, passando pelos meios de expressão cultural, até as relações da vida cotidiana) no decorrer do qual novas formas de consensos e entendimentos sociais devem ser desenvolvidos. O que isto significa exatamente não pode ser antecipado, mas deve ser “descoberto” em um longo processo, através de muitas experiências e tentativas. Neste processo, a relação entre teoria e prática irá naturalmente mudar, em última instância, até o ponto em que a reflexão for assumida como parte essencial nas manifestações sociais práticas.
Mas ainda não atingimos este ponto, de forma alguma, e nem mesmo é certo que algum dia o alcancemos. Hoje, a questão que se põe é a de como a teoria sócio-crítica pode contribuir para que surja um movimento anticapitalista dos protestos e da resistência contra as condições vigentes. Não existe uma “estratégia” para isso. Mas, através da intervenção da crítica social no nível do discurso, ao tocar a melodia das próprias condições vigentes de volta contra elas, como muito bem expresso por Marx, talvez a crítica social possa funcionar como catalisador para a formação de tal movimento.
A teoria pós-moderna é um ponto controverso em sua obra. Os intelectuais pós-modernos tiveram alguma influência útil para os novos movimentos sociais? Deve-se enfatizar que a pós-modernidade não “acontece” somente nas obras dos intelectuais pós-modernos: muitos dos fenômenos sociais atuais – como as redes de comunicação rizomáticas, o rápido fluxo de capitais, a tendência sócio-cultural à ironia e à auto-reflexão, a ridicularização das ideologias, a fragmentação da cultura popular, etc. – são parte de nossa vida cotidiana. Portanto, é razoável questionar se os pós-modernistas estão, de certa forma, lutando contra um inimigo conhecido, já que o Império (a atual soberania global, como definido por Negri e Hardt) é capaz de adotar os próprios fenômenos pós-modernos, ou ao menos “recuperá-los”?
De fato, temos uma relação muito crítica com a teoria pós-moderna e, de qualquer forma, com quase todas as teorias que podem ser incluídas sob este rótulo. Entretanto, penso que algumas delas produziram importantes contribuições sócio-culturais. Isto é especialmente verdadeiro no caso da crítica da lógica da identidade e da política da identidade, com seus mecanismos repressivos de exclusão e inclusão, que é, com isso, relacionada com a análise e crítica do racismo, do sexismo, do nacionalismo, e todas essas estruturas correlatas. Infelizmente, a conseqüência tem sido principalmente um pluralismo e um relativismo acríticos, que como tais, são certamente compatíveis com a lógica capitalista. Além disso, o pluralismo e o relativismo acríticos de certa forma correspondem à atual fase de desenvolvimento social, na qual a atomização social progride constantemente, na qual exige-se cada vez mais flexibilidade e mobilidade, e na qual o capitalismo enfraquece as instituições e a identidade (por exemplo, a política e as relações heterossexuais) das quais ele próprio é dependente, mas sem ser capaz de colocar nada de novo no lugar. As sempre mencionadas virtudes da ironia e da ambivalência caem como uma luva nesta situação. Eles são extremamente críticos até o ponto em que as formas básicas da sociedade teriam que ser questionadas (e normalmente nem chegam tão longe). Eles representam a continuação de condições sociais cujas fronteiras absolutas são visíveis há muito tempo; isto é suspeitado, mas não encontra expressão consciente. Assim, pode-se dizer que a crise fundamental do capitalismo de certa forma se reflete nas teorias pós-modernas, mas sem que elas sejam capazes de pensar sobre isto, porque no nível da totalidade, elas baniram o pensamento.
Traduzido do original em inglês por Daniel Cunha. Título original: “Crisis theory in a crisis society” www.krisis.org .