Da forma de morte da vontade destituída de sentido em Kant
O cerne da vossa liberdade de ora em diante será estardes habilitados a escolherdes as vossas próprias faltas de liberdade. — L. Henning, director do liceu do meu filho no seu discurso aos finalistas
Karl-Heinz Wedel
Sempre de novo a Modernidade – sempre de novo o Iluminismo, sempre de novo a Liberdade e a Igualdade. Muito tempo se trabalhou no edifício da sociedade burguesa, e eis que era inabitável. A razão e a livre vontade não são apenas duas das pedras que compõem esse edifício, constituindo antes as suas próprias fundações. Kant descreveu as singulares qualidades destas categorias centrais burguesas, e por isso o intento deste texto consiste em verter um pouco mais de luz sobre a questão da constituição formal burguesa da vontade e da liberdade com recurso à versão kantiana desses conceitos. Evidentemente o filósofo de Königsberg [hoje Kaliningrado – N.d.Tr.] não tinha a mínima objecção à qualidade paradoxal do sujeito burguês quando, como ninguém antes dele, descreveu de forma “crítica” as dimensões da “livre” vontade. O conceito da crítica em Kant, parecendo à primeira vista delimitar a validade da razão moderna, acaba, no entanto, por ser uma mera expressão dos princípios formais inconscientemente constituídos da produção de mercadorias e das respectivas categorias. Ainda assim, os trabalhos de Kant continuam a ser essenciais a uma análise crítica no sentido de uma emancipação precisamente dos mesmos princípios formais, na medida em que ele, ao mesmo tempo, admite a impossibilidade e o carácter paradoxal desse mesmo indivíduo “livre”, pondo assim a descoberto as condições da sociedade das mercadorias que em última análise acabam por ser fantasticamente loucas. Só “a descida ao inferno do conhecimento de si próprio abre o caminho para a divinização” (MdS, A 104). A constituição racional do indivíduo burguês remete-o a todo o momento para o seu oposto irracional. Este lado da filosofia de Kant foi sempre escamoteado de forma positivista pela história das ideologias burguesa, exercitando-se em um crescendo de banalizações (1). Perante o desenvolvimento de crise das formas de relacionamento burguesas e das destruições a ele associadas parece mais que chegado o momento de nos prestarmos contas críticas sobre os fundamentos dessas formas.
A “livre” vontade certamente é uma das categorias da sociedade burguesa que mais tem que se lhe diga. A razão dessa vontade requer que nos elevemos sobre o mundo sensível, diz Kant. Com isso, porém, já está dito que artifício real fantástico domina a Modernidade: Não sendo deste mundo, determina este mundo. Vácuo e, ainda assim, omnipotente, incondicional e sem condição, não passível de ser objecto da experiência empírica, mas pressuposto de toda a experiência. Uma vontade que [se] abstrai de tudo que seja exterior e apenas se quer a si própria. Algo suposto ter validade neste mundo mas que, para seres finitos e sensíveis, apenas pode manter-se eternamente objectivo e falhanço. De costas viradas para o mundo sensível, a “liberdade” fundamenta-se no nada da forma pura. O motivo da vida é suposto residir no imperativo do desprezo pela vida: “Considera que a afronta extrema consiste em que se prefira a vida à honra e se destrua, em nome da vida, o fundamento da vida”, é assim que Kant cita Juvenal (veja-se KpV, A 283, 284) e quer que façamos essa (masculina) honra à vontade “livre”. No entanto o princípio desta vontade é mortífero. Certamente o “maior filósofo desde Platão e S. Agostinho” (K. Jaspers) não teria procurado as realizações dessa razão nos actos de atiradores tresloucados e de bombistas suicidas. Seja como for, o edifício em vias de derrocada da Modernidade torna agora evidente de forma imediata que a fundamentação dessa vida custa a própria vida. Faz parte da loucura intrínseca da teoria kantiana que ela crie de si própria a ilusão de ser razoável tendo, no entanto, de construir o seu edifício sobre um nada feito da forma pura. No entanto, e contrariamente aos seus epígonos positivistas, Kant ainda tinha honestidade teórica suficiente para formular esta tensão paradoxal.
“Há algo de especial na estima ilimitada pela lei moral pura, despida de toda a vantagem, tal como no-la apresenta para a seguirmos a razão prática, cuja voz faz estremecer mesmo o prevaricador mais audacioso, obrigando-o a esconder-se do seu olhar” (KpV, A 142). Ora, não haveria nada, e nada mesmo, a objectar se os esclarecidos venerassem o seu ídolo da vontade e fossem arranjar as suas provas da existência de Deus a coberto de todo o isolamento necessário. Mas, como sabemos, com o capital impôs-se uma metafísica real que faz o “divino” realmente descer à realidade (2). No entanto, assim acontece apenas ao preço de, juntamente com a tentativa de penetração racional da realidade sempre já se produzir o próprio oposto irracional que, assim sendo, tem de ser controlado (3). Como tal, Kant infelizmente não deixa de ter razão ao conceder à razão burguesa todo o poder face aos seus prevaricadores. Numa sociedade global desenvolvida em totalitarismo da mercadoria, cujo princípio de socialização é constituído pela vontade “livre”, essa razão de facto conseguiu “apresentar-nos” as suas leis para nós as seguirmos. Toda a realidade afigura-se imbuída da forma da sociedade do valor e sujeita ao domínio ilimitado da “livre” vontade. Mas quanto mais total, mas igualmente quanto mais obsoleto parece ser o domínio da forma, mais evidente se torna o seu conteúdo mortal. Uma emancipação desta forma da morte apenas pode significar substituirmos a “estima” pela razão moderna por um desprezo ilimitado. A prevaricação contra o [valor] supremo desta liberdade não é um acto de audácia mas, sim, de necessidade. Mas antes de ingressarmos no verdadeiro império da liberdade e da boa vontade da razão burguesa, temos de lançar primeiro um olhar sobre as putativas condições da experienciabilidade humana (“mundo empírico”).
Empirismo
O sujeito masculino como espeto de assar
A delimitação de Kant da sua liberdade face às realidades empíricas, face à vida sensível dos humanos, pressupõe, já de si, uma determinada concepção desse empirismo. Não se trata simplesmente das paixões e inclinações humanas de que esta parta. A fim de legitimar a sua “livre” vontade em toda a pureza, ele refere-se antes a uma realidade totalmente determinada até ao ínfimo pormenor. Na fase de arranque da sociedade da mercadoria, a ciência natural mecânica deteve um papel central como referência ideológica de um novo entendimento da realidade e de uma relação objectual profundamente dinamizada. A concepção mecanicista da realidade, incluindo a própria vida humana, que se orienta pelo movimento uniforme dos planetas, também se reflecte em Kant. Como todos os acontecimentos ocorrem no tempo e segundo as regras da causalidade, estando, assim, sujeitos às “condições do tempo passado”, “as quais, portanto, na altura em que o sujeito deve actuar, já não se encontram ao seu alcance, e que, portanto, acarretam liberdade psicológica (se quisermos usar esta palavra como referente a um encadeamento meramente interior das concepções da alma) mas, ainda assim, necessidade natural, não deixando sobrar a mínima liberdade transcendental que tem de ser pensada como independência de tudo que seja empírico, e assim da natureza no seu todo… Liberdade essa (neste último significado verdadeiro), que como única é prática a priori, e sem a qual não é possível qualquer lei moral. Precisamente por isso também pode designar-se toda a necessidade das ocorrências no tempo, segundo a lei natural da causalidade, o mecanismo da natureza, se bem que não se entenda por tal que as coisas que se lhe encontrem sujeitas tenham de ser verdadeiras máquinas materiais. Aqui apenas se olha à necessidade da interligação das ocorrências em um encadeamento temporal, tal como se desenvolve segundo a lei natural, quer designemos o sujeito, em que decorrem essas ocorrências, como automaton materiale, uma vez que o ser maquinal [!] é impelido pela matéria, ou com Leibniz, spirituale, visto que é impulsionado por concepções, e, se as liberdades da nossa vontade não forem mais nenhuma que esta última (por exemplo psicológica … não transcendental, isto é, ao mesmo tempo absoluta), ela no fundo não seria melhor que a liberdade de um espeto giratório de assar [!] que, uma vez dada a corda, executa por ele os seus movimentos” (KpV, A 174).
O diagnóstico para o sujeito moderno, desde que este actue no mundo sensível do espaço e do tempo, é tão sincero como é monstruoso: as possibilidades de experiência da subjectividade burguesa estão de uma vez por todas determinadas pelas leis formais das formas apriorísticas. O mundo afoga-se em condicionalismos. O Homem encontra-se agrilhoado pelas correntes de um contexto causal. Para cada estado existe uma causa, e para cada fim, um meio, ou vice-versa. Cada gesto ainda se encontra condicionado por outra coisa qualquer. De um modo geral, toda a actuação encontra-se sujeita a uma condição, e esta condição é, por seu lado, condicionada. O mundo apresenta-se como um único nexo causal. É esta a realidade da experiência dos sujeitos burgueses que é concedida a estes segundo o Iluminismo da “Crítica da Razão Pura”. Neste contexto, a concepção da realidade fundamentada na mecânica tem de ser entendida como cifra para a falta de liberdade das estruturas sociais autonomizadas da forma da mercadoria. No entanto, é precisamente a sujeição à existência de autómato que ainda apenas abre, para Kant, a perspectiva de uma “liberdade transcendental” que pode unicamente ser pensada como independente da natureza (humana) profundamente determinada. A este “truque” do Iluminismo, de transformar a necessidade absoluta em liberdade absoluta, ainda voltarei a referir-me na segunda parte. De uma forma correspondente à natureza autómata da existência sensível também se encontra construído o “aparelho” intelectual de Kant, que constitui a experiência. Introduziam-se no intelecto do Homem estímulos sensíveis indeterminados, e de lá saía uma experiência em forma de causalidade ou de lei. Não é por acaso que aquilo, que a razão burguesa apenas quer reconhecer como fonte da sua experiência, se assemelha a um autómato que fornece dados sensíveis segundo um algoritmo racional. E para a consciência coisificada moderna com o seu auto-entendimento tecnicista, isso até estará certo, já não tendo nada de obsceno. Tiveram de passar séculos da imposição de uma objectividade autonomizada até por exemplo Luhmann já não achar nada de emocionante no facto de, enquanto sujeito, se assemelhar a um espeto giratório de assar “criticamente” descrito por Kant, ou a outra coisa semelhante: “Quem começa, está amarrado.” Para Kant, pelo contrário, a sujeição às leis da natureza ainda era uma situação insustentável. No entanto não no sentido de que a tivesse questionado de forma crítica, mas apenas como ponto de partida inaceitável mas, em última análise, afirmado da sua razão prática. Afinal, da existência de autómato tinha de partir uma escada para as esféricas alturas da liberdade transcendental. O pressuposto, porém, desta perspectiva tão fantástica como monstruosa da liberdade humana sempre continuou a ser a realidade mecanicista da máquina: o mundo, sujeito às formas do tempo, do espaço e da causalidade. Afinal, Kant delimita a sua liberdade, na “Crítica da Razão Prática”, logo de início dos condicionalismos do mundo empírico (1° teorema, KpV, A 38). Ainda antes de qualquer declaração sobre a liberdade expõe-se onde não há liberdade, visto que a liberdade não empírica se torna precisamente necessária pela constatação da falta de liberdade empírica. A descida aos infernos de Kant começa na sujeição aos condicionalismos empíricos para em seguida se aproximar, na esfera do inteligível, ao “divino”.
O conceito da vontade livre que apenas se quer a si própria e da objectividade oposta a tudo isso não tem, como é óbvio, realmente nada a ver com o mundo inteligível para lá do empirismo experienciável. Kant, tal como o idealismo de uma forma geral, limitou-se a transformar a metafísica real do mundo das mercadorias que actua “por detrás das coisas”, o fetiche da forma, em uma esfera do além. Na constituição do fetiche através da mercadoria, os sujeitos têm de se sujeitar a uma realidade social deste modo produzida de leis e estruturas sócio-económicas. Na realidade empírica, à “superfície” observável, a relação social da mediação abstracta afirma-se como objectividade independentizada. Kant, à boa maneira burguesa, naturaliza esta independentização das manifestações sob a forma da mercadoria e interpreta-a como o curso objectivo da natureza autómata. Mesmo o ser humano que age de forma empírica encontra-se, segundo esta concepção, totalmente sujeito à causalidade própria da natureza. Assim, a realidade realmente se cristaliza, para a teoria burguesa e iluminista, numa mega-máquina que, segundo as rigorosas leis da natureza, constitui uma engrenagem em perpétuo movimento. O “destroçador de tudo” aqui parece ter ficado destroçado debaixo da roda mecânica de Newton. É que esta concepção cimenta o Homem firmemente ao seio do conjunto das leis naturais e determina a experiência humana de um modo tal, que a liberdade se transforma em problema. A razão, a liberdade, a teoria, por um lado, e a natureza, a necessidade e a actuação, por outro, aqui se desfazem em duas esferas opostas e mutuamente incompatíveis. A lógica dos “dois mundos” da liberdade e da necessidade, ou seja, do encadeamento no seio do espartilho das estruturas autonomizadas e a forma contraditória de lidar como o mesmo, no entanto, não constitui prioritariamente um problema da teoria. Esta contradição fundamental da sociedade da mercadoria, antes pelo contrário, revelou-se, na imposição das formas modernas, o núcleo repressivo e o brutal contexto da dominação: No próprio Kant, como mais adiante ficará demonstrado, demonstrou ser a esfera da auto-submissão interiorizada. A sua “solução” da relação de submissão opõe à objectividade, sentida como estranha, o pólo subjectivo. Se, do lado objectivo da natureza, o sujeito parecia submetido a uma cunhagem formal pressuposta, do lado subjectivo a submissão e a impotência invertem-se no seu contrário, nomeadamente em actividade e domínio. E Kant associou este papel activo inequivocamente à estirpe humana. A forma (da legalidade) realiza-se pelo acto da cognição no seu objecto e forma este à sua imagem. À semelhança da concepção do acto da concepção, onde é o sémen a conferir a forma à matéria amorfa. Assim, o acto estruturalmente masculino da aquisição do conhecimento revela-se, desde o ponto de vista subjectivo, como sendo a inversão das disposições formais objectivas. Pela synthesis, na submissão às leis naturais é concedida, ao mesmo tempo, a liberdade. A necessidade natural converte-se, pelo acto arbitrário da formação dos objectos, aparentemente no seu oposto. Afinal é o sujeito (masculino) que somente produz a objectividade em um acto espontâneo, virado para a matéria. No entanto já se entrevê um problema no tratamento da razão teórica que, no contexto da razão prática, acaba por conduzir à capitulação de Kant: trata-se da questão de como a forma se apodera do seu objecto. Afinal, na experiência o conceito tem que ver precisamente com as próprias coisas sensíveis, visto que, como o próprio Kant sabe, todos os conceitos destituídos de conteúdo são vãos, e todas as contemplações sem conceitos, cegas. A experiência pode e tem de comprovar-se em um objecto, tem de ser extensiva a algo de sensível. A forma está aqui, desde já remetida para a mediação com o conteúdo. “A espontaneidade do nosso pensamento requer que o múltiplo estabelecido na contemplação seja primeiramente de certo modo recapitulado, assimilado e associado para daí fazer um conhecimento” (KrV, B 102, 103). Ora, Kant circunscreveu, por um lado, as formas da experiência ao interior de categorias puramente formais e abstractas e, por outro, fez com que o mundo sensível se desfizesse em uma confusão de impressões. Agora a dificuldade consiste em voltar a estabelecer uma relação entre essas esferas separadas, em mediá-las. Como deve então o mundo da lei comportar-se para com o caos obscuro, completamente separado dele? Devido à subdivisão, por um lado, na forma do conhecimento, que se encontra em conformidade com a lei, e, por outro, no caos do mundo sensível, isto pode unicamente acontecer por intermédio de um acto de concepção ou de criação espontâneo. “E a Terra estava deserta e vazia, e estava escuro na profundidade; e o espírito pairava sobre a água.” O sujeito masculino abre o caminho para a sua divinização de um modo semelhante ao do próprio Deus. Actua de forma “fecundante para o interior da matéria, por si inanimada, amorfa, desordenada e obscura” (Génesis). Se a realidade ainda agora foi concebida como um baixio sombrio, é necessária uma capacidade quase que divina para se dar forma a esta matéria. No entanto, a esfera pura da abstracção não deixa de ter dificuldades, intrínsecas a ela própria, em se atirar à imundície do conhecimento empírico. É que, a partir do momento em que a razão se alojou noutra esfera que não a realidade sensível, uma mediação com o conhecimento empírico, isto é, o acto da geração, apenas pode ser concebido como uma espécie de fenómeno milagroso de uma qualidade que roça o divino. Como cifra para a dificuldade da abstracção de se referir a algo exterior a ela, Kant estabeleceu o conceito da espontaneidade. Sob o rótulo da espontaneidade, aqui é, portanto, descrita a mediação da forma com o conteúdo sensível. Desde uma perspectiva da forma abstracta, limpa de todo e qualquer conteúdo, a mediação realmente pode ser tão-só formulada como um acto espontâneo.
A fantasia obsessiva da separação sujeito – objecto
O sujeito tem, portanto, de levar a efeito uma synthesis do material caótico segundo as formas do intelecto (categorias como a causalidade). No entanto é apenas para além disso que se constitui a “unidade original da apercepção”, o Eu propriamente dito, que acompanha a synthesis com consciência. A consciência de mim próprio não é, portanto, uma consciência acompanhada por um sentido de individualidade mas, no que diz respeito à consciência pura, ela existe apenas como consciência de uma identidade na execução da synthesis segundo formas abstractas. Não se refere, portanto, a algo que tenha a ver com conteúdos, a uma experiência ou a capacidades pessoais, ou porventura a qualidade corpóreas. É que, neste aspecto, não subsiste dúvida de que os indivíduos diferem uns dos outros. O que, ao invés, unifica esta diferença e pode ser suposto em todos como a mesma qualidade, é essa unidade sintetizadora que, no entanto, se encontra esventrada de um modo totalmente abstracto e é, ela própria, vazia: forma pura, lá está.
A experiência, no horizonte burguês, caracteriza-se, como demonstrámos, pela razão pressuposta. É somente do filtro abstractificante e depurador que se julga resultar, de todo, a possibilidade da experiência. De forma implícita, porém, esta forma de experiência contém em si, desde sempre, o pressuposto da separação entre sujeito e objecto. Neste contexto, a integração do conhecimento dos objectos no sujeito cimenta a separação dos objectos. A relação de Kant para com a realidade significa “que os objectos em si não sejam de todo conhecidos, e aquilo que conhecemos como objectos exteriores não seja mais que uma mera concepção da nossa sensibilidade”. “O sabor agradável de um vinho não faz parte das definições objectivas do vinho … mas da condição específica do sentido no sujeito que o desfruta. As cores não são qualidades dos corpos, a cuja contemplação se encontram associadas, mas igualmente não passam de modificações do sentido da visão que é afectado de uma determinada forma pela luz” (KrV, A 30, 31)
A forma como o sujeito kantiano da experiência se fecha sobre si próprio e a referência exclusiva às formas constituídas sob a forma da mercadoria do espaço, do tempo e da causalidade têm algo de profundamente monstruoso e aterrorizante. O Eu apenas como apercepção transcendental, ou seja, sem ser deste mundo, isolado de todas as outras referências sensíveis. Aqui reproduz-se, em termos teóricos, a relação real entre as mónadas da mercadoria. A terrível consequência deste alheamento absoluto da realidade sensível – uma realidade, para o ser dotado de razão, nem sequer existe, a não ser que seja mediada através da forma geral – não deixou de ser reflectida ao longo da história da Filosofia. Mas não o foi sem conduzir, ela própria, ao irracionalismo, pólo contrário da razão, tentando-se, portanto, expulsar o Kant com o Schopenhauer.
A existência alheada, juntamente com a pretensão de ser senhor das avassaladoras manifestações da natureza, levou Schopenhauer como sob este aspecto fiel aluno de Kant a destronar o “mundo enquanto concepção” de um modo solipsista. Então a realidade não é apenas o nosso produto na experiência? Afinal somos nós próprios quem somente produz o mundo. O objectivo de Schopenhauer era, para além da negação da vontade, a interioridade baseada na contemplação. A sua incipiente contemplação das ideias platónicas visa a elevação face às manifestações de causa e efeito destituídas de alma do mundo profundamente racionalizado. Às insustentáveis condições das repressivas formas modernas – expressas pela “vontade” que tudo submete e a “concepção” profundamente racionalizada – é contraposta uma negação interior da vontade e uma visão essencial de propriedades que se encontram por detrás das manifestações. A oposição de uma realidade exterior, racional e mecanicista, por um lado, e da orientação para forças essenciais interiores e associadoras, por outro, no seguimento histórico da imposição da sociedade da mercadoria sempre de novo demonstrou ser um padrão de tratamento irracional das contradições capitalistas. Os irracionalismos como “o orgânico”, o “existencial” ou o “de sangue”, no entanto, sempre tiveram por base a engrenagem mecânica da natureza e da sociedade, ressentido como esmagador, que também constitui o objecto central da teoria de Kant, no entanto sem que este leve a efeito esta viragem ele próprio. Evidentemente seria errado querermos demonstrar a existência de um caminho rectilíneo, e quiçá necessário, de Kant, passando por Schopenhauer, até ao pensamento nacional-fascista. No entanto, em Kant encontram-se prefiguradas as características estruturais gerais da razão ou da natureza. Neste contexto, o solo comum de estruturas objectivadas e independentizadas como suposta condição natural fundamental não pode passar despercebido.
O que Kant tematiza na sua dicotomia sujeito – objecto é o total alheamento do sujeito burguês face à realidade que o rodeia, incluindo a sua própria corporeidade. Mas lá está, um Eu que tem o seu centro no além transcendental das formas também se encontra a anos-luz de distância das suas realidades sensíveis e empíricas. É, também, neste facto que reside uma causa do carácter potencialmente ameaçador do sensível. O Homem encontra-se numa separação absoluta das coisas. Deixemos falar o “kantiano” Schopenhauer, visto que este recuperou as categorias de Kant pelo seu conteúdo abstracto e problematizou-as tendo em vista a sua vivenciabilidade sensível: “Que ele não conhece nem Sol nem Terra; mas sempre apenas um olho que vê um Sol, uma mão que sente uma terra, que o mundo que o rodeia apenas existe como concepção” (Schopenhauer, 33). Que, embora haja qualquer coisa lá fora, as coisas em si, o sujeito não pode dizer mais sobre elas a não ser que existem de todo, esta é a suposição fundamental da teoria do sujeito epistemológica. A relação completa com o mundo reside, portanto, no intelecto do próprio sujeito. Como se não chegasse não sabermos se a Terra ou o Sol ou outros elementos da realidade existem de todo, o seu conhecimento é integrado desde já completamente no sujeito e o ponto de referência identitário para o indivíduo burguês é, segundo Kant, a unidade transcendental. As consequências para a forma do sujeito não devem ser subestimadas. “Se tudo o que de algum modo faz e pode fazer parte do mundo inegavelmente se caracteriza por este condicionamento pelo sujeito” (ibidem), com isso exprime-se por um lado o infinito isolamento da realidade sensível como, ao mesmo tempo, a maníaca pretensão de omnipotência do sujeito masculinamente conotado. Na minha concepção e através dela, ainda apenas produzo o mundo e, ainda assim, me encontro incondicionalmente separado do mesmo na minha forma do sujeito. É que os objectos apenas o são na minha concepção. O sujeito verdadeiramente activo, somente constituinte da realidade da experiência, tem uma preponderância infinita face às coisas, despromovidas a um mero substrato caótico. Mas o que consegue na sua omnipotente pretensão é o isolamento total na sua existência solipsista.
Esta separação refere-se a todos os elementos da realidade e, assim sendo, também à existência física. O próprio corpo apenas pode ser tido na experiência sensível, naquilo que dele conhecemos, sempre apenas na forma de sujeito – objecto. Por conseguinte, no fundo apenas conhecemos experiências físicas sob esta forma e somos completamente diferenciados do nosso corpo despromovido a mero substrato. Neste processo de experiência, porém, a concepção do mundo criada pelo sujeito omnipotente, activo e isolado, evidentemente não é idêntica com o próprio sujeito.
“Aquilo que tudo reconhece e por nada é reconhecido é o sujeito. Assim sendo, este é o portador do mundo, a condição contínua [!], sempre condição pressuposta de tudo que se manifesta, de todo o objecto: é que esse sujeito é só o que sempre existe. Como este sujeito, cada um encontra-se a si próprio, no entanto, apenas na medida em que é cognoscente, e não se for alvo da cognição. No entanto, objecto já é o seu corpo que, por isso, … designamos por representação. É que o corpo é um objecto entre objectos e encontra-se sujeito às leis dos objectos …” (ibidem, 35).
O sujeito da cognição aqui é, portanto, uma vez mais separado da cognição. Aquilo que consubstancia o sujeito, o que dele faz parte, encontra-se separado da cognição propriamente dita. O objecto da cognição, incluindo o próprio corpo, é algo que é estranho a este Eu, um objecto entre objectos, determinado pelas leis do mundo dos objectos e sujeito à lei da causalidade. O que em Kant parece ser uma condição neutral da possibilidade da razão é acertadamente formulado por Schopenhauer como uma relação sensível de sujeição. A cognição é aqui ao mesmo tempo algo de estranho e, ainda assim, o mais próprio. Estranho porque, na forma do corpo como objecto da experiência me sou tão estranho como o sou aos outros – apenas na qualidade de algo que leva a cabo a cognição sou todo eu, um Eu vazio e contínuo.
Kafka, no seu conto “A Metamorfose”, deixou bem claro que lúgubre e aterradora consequência espreita no interior deste sujeito vazio. Gregor Samsa, uma manhã, devido a uma peculiar metamorfose, encontra o seu corpo transformado em um objecto-insecto. Mas esta experiência monstruosa parece, enquanto cognição puramente exteriorizada de um corpo-objecto, desenrolar-se a uma notável distância do seu verdadeiro interior. O núcleo do sujeito de Samsa está sintomaticamente menos preocupado com as percepções agora infelizmente alteradas do seu corpo do que com o aparecimento do gerente que o acusa de estar a fazer gazeta. No fundo, a percepção do corpo não chega ao íntimo do besouro gigante. Ali, no núcleo de si próprio, ele mantém-se o mesmo, ainda que a experiência do seu próprio corpo se revela bem medonha. Mas para o Eu cognoscente não é este o momento central. É apenas “aquilo que tudo reconhece e por ninguém é reconhecido”. Também a revelação como um ser semelhante a um besouro deixa intacto o sujeito “sempre apenas existente”. Mas a existência formal como Eu puro e vazio é corroborada pela separação dos momentos sensíveis. A retirada para o interior deste Eu puro e contínuo, o isolamento total de toda a experiência sensível, inverte a omnipotência da constituição da experiência na impotência face a esse mundo dos objectos. É que o cariz condicionado de toda a experiência, a produção de qualquer representação como potência omnipotente do sujeito, significa ao mesmo tempo estar submetido à experiência do que é estranho. É que este sujeito vazio não tem qualquer influência no conteúdo da experiência. Lá está, como Eu puramente contínuo bem pode converter-se num corpo de insecto. O regresso da realidade sensível excluída sob a forma da fantasia obsessiva de uma corporeidade totalmente alienada acaba por ser apenas a consequência da problemática separação em sujeito e objecto que chega a excluir totalmente os impulsos sensíveis e físicos da definição do Eu puro. O ser semelhante a um besouro de Kafka é o regresso corpóreo do irracional, é o pesadelo que passa pelo sensivelmente irracional.
O medo da desintegração
Kant não se ocupou mais do reverso irracional da sua razão e considerou conseguida a formação e a mediação da pluralidade caótica. Em seguida, Kant abandonou a objectividade da experiência da natureza e da necessidade natural em direcção à esfera inteligível a fim de ali procurar a liberdade aqui não concedida. No entanto deixou para trás, de uma forma truculenta, no aparentemente inamovível mundo causal do conhecimento empírico, o problema de em que medida a experiência afirmada, organizada segundo formas abstractas, é de todo possível, assim como a metamorfose da realidade em física social que ao mesmo se encontra associada. A experiência é uma experiência burguesa e iluminista. Amém.
“Sem a actividade da razão seria possível que uma confusão [!] de manifestações preenchesse a nossa alma sem que … alguma vez se consubstanciasse em experiência. Mas, nesse caso, também cairia por terra qualquer referência da cognição a objectos, uma vez que lhe faltaria a concatenação segundo leis gerais e necessárias e, assim sendo, estes, ainda que se tornassem contemplação irreflectida, nunca se converteriam em cognição, ou seja, para nós seriam o mesmo que nada” (KrV, B 526).
À boa maneira exclusionista, tão própria do Iluminismo, Kant elimina aqui na sua totalidade a possibilidade da experiência para além da concatenação segundo leis gerais e necessárias que, ao mesmo tempo, é dotada de características estruturalmente masculinas. Para além da definição como hegemónica desta experiência em conformidade com a lei – outra que não esta passa por “nada” – Kant aqui remete para uma dialéctica da razão, por um lado, e do seu oposto caótico, que pode ser, em termos gerais, identificada como a lei fundamental ideológica estrutural extensiva a todo o Iluminismo. Como o reverso da razão burguesa é construído um estado de desmoronamento, empolado até passar por ameaça, em que as coisas se encontram dispostas de um modo absolutamente destituído de qualquer formação. A razão é, neste cenário, o porto que nos protege da medonha falta de forma e do amorfo. Aquilo de que o sujeito ameaçado tem de se distanciar é o caótico material dos sentidos, no qual de outro modo ameaçava afogar-se e afundar-se. É disso que importa salvarmo-nos, mostrando-nos sobranceiros face ao intransparente exterior. A razão e o caos, contudo, condicionam-se mutuamente. Quanto mais pronunciadamente a razão se retira da realidade sensível para as esferas abstractas da racionalidade, mais ameaçadora se afigura a “confusão” do sensível. O conhecimento de si próprio tem, de viagem para o divino, sempre de atravessar o Inferno autoproduzido. Böhme/Böhme descreveram com recurso a Freud este mecanismo que faz com que a razão sempre produza de passagem o seu oposto irracional, do qual depois tenta proteger-se, de um modo acertado, mas sem desenvolverem a menor intuição de uma ligação com a forma da mercadoria: “A razão moderna coloca ela própria os limites, o seu território vai tão longe como ela pode apropriar-se do seu outro. A formação da razão moderna é, por isso, um processo de demarcação, selecção e reagrupamento. Chamamos-lhe Esclarecimento como se apenas se tratasse de um esclarecimento sobre aquilo que é. Na realidade trata-se da definição da realidade … Com o Esclarecimento, a razão transforma tudo o que não se encaixar nela em irracionalidade. Em um mundo de factos, os significados transformam-se em superstições, os sonhos em fantasias irrelevantes, impulsos corporais em fogareiros. Esse outro que não é abarcado pela razão degenera em um terreno difuso, medonho e ameaçador” (Böhme/Böhme, 14).
E esta esfera, dominada pela razão de um modo aparentemente soberano, nunca deixa de ser uma fonte de medo. O Iluminismo foi frequentemente criticado como a subsunção de um conteúdo sob uma forma autonomizada e estranha. E evidentemente a actividade da razão consiste sobretudo na normalização e na tentativa de transformar o mundo em uma engrenagem. Mas como funcionam os mecanismos desta formação? O que obriga a forma abstracta a sujeitar a si território alheio. Como vimos, a razão de Kant constrói o seu parque de máquinas da experiência na vizinhança directa e ameaçadora da coisa em si. No entanto, para Kant, devido à synthesis da cognição, a “confusão” encontra-se no exterior da sua razão. Mas, tal como Böhme/Böhme expuseram, entre a irracionalidade excluída e a razão existe uma ligação permanente do medo: “O medo real que preenche o Homem pré-racional no seu comportamento face aos poderes da natureza, aos impulsos avassaladores do próprio corpo e a outros indivíduos potencialmente ameaçadores, é substituído por um irracional medo interior do recalcado que aparentemente apenas pode ser anulado ao preço da ruína do Eu” (ibidem, 18).
Assim sendo, seria necessário ampliarmos a perspectiva: o esforço pela realização da forma da lei, a subsunção de um conteúdo específico, é a tentativa da razão de controlar o seu oposto, o medonho caos e a confusão. É que, para lá do controlo mediado através da lei espreita o perigo do desmoronamento. A amestragem do mundo segundo os parâmetros da razão, a objectivação, protege da “ruína do Eu”. Mas se a razão ainda apenas produz de passagem o seu contrário, a razão de Kant, em conformidade com a lei e a erguer-se acima do caos, não constitui apenas a protecção da febre da irracionalidade, mas estupidamente constitui justamente a sua causa.
A elevação sexual
No entanto, em Kant o nível do ameaçador apenas se encontra insinuado. Na contraposição da razão com a irracionalidade apenas se constitui a esfera masculina como um domínio soberano sobre o caos e a decadência. O Eu chama Kant para a boca de cena para escapar a este ameaçador estado de coisas. No acto da cognição, na synthesis operada pelo sujeito, desaparece o perigo, e o sujeito senta-se em todo o seu esplendor frente a frente com a matéria e o objecto que sintetiza em uma cognição. Trata as impressões sensíveis passivas segundo puros conceitos intelectuais e apenas lhes confere uma forma. O princípio da causalidade (para além do espaço e do tempo abstractos) como princípio formal central da vivenciabilidade supostamente humana em Kant lê-se contra o pêlo iluminista como um instrumento sexualmente conotado do controlo da realidade. Neste contexto, o sujeito do Iluminismo, não se encontrando apenas escondido, encontra-se abertamente concebido como a esfera da constituição masculina. Que toda a acção conduza a uma causa que a determine de forma inequívoca, que todo o estado de coisas possa necessaria e geralmente ser determinado a partir do estado que o preceda, que todos os acontecimentos do mundo sejam considerados previsíveis, e assim controláveis, até ao último pormenor, esta provavelmente não será uma fantasia a que o factor do sexo seja completamente indiferente. Mas não é apenas a tentativa da razão estruturalmente masculina de, através do estabelecimento de leis, se afirmar como soberana controladora face à irracionalidade que constitui o seu produto colateral que deixa o sexo à vista de toda a gente.
Aquilo, para o que Kant chama a atenção, nomeadamente que a synthesis activa da razão sempre apenas é capaz de objectivar os objectos em formas abstractas, acaba por degradar qualquer coisa a um mero objecto. Não há sujeito masculino sem objecto. Ao resumir o material sensível passivo, o homem pode desfrutar da sua aparente omnipotência na medida em que só por ele é que é activado o passivo: Ditar à natureza, com um frio distanciamento, as suas leis. O tratamento humilhante como objecto, por um lado, permite em todo o caso um sentimento de elevação, por outro. Da mesma maneira, como Kant imagina a própria legislação da razão prática, ou seja, a sujeição activa à lei moral, como um acto de “elevação” (veja-se KpV, A 143, 144), também imagina a synthesis do material passivo. Na descida ao inferno do conhecimento de si próprio faz-se justiça e, segundo “leis eternas e imutáveis” (KrV, A XI, XII), o Eu (masculino) eleva-se, libertando-se de todos os objectos e experiências, em direcção ao divino. Na sua obra “Sobre o sentimento do belo e do elevado”, Kant expôs, em termos nada equívocos, a sua opinião crivada de estereótipos sexuais que a área do elevado se inscreve em uma esfera masculina, ao passo que o belo distingue a feminina. Elevar-se, com recurso a princípios puros, não condicionados por qualquer experiência, à altitude transcendental ou, conforme a perspectiva, talvez pensar-se até uma elevada profundidade, é uma prerrogativa exclusivamente masculina: “Que todos os outros méritos de uma mulher devam conjugar-se apenas para elevar o carácter do belo … e, ao invés, entre as qualidades masculinas o elevado se destaque claramente como o sinal distintivo do seu género. A isto devem referir-se … todos os juízos sobre estes dois géneros, toda a educação e instrução tem de ter isto perante os olhos … Onde não se quiser apagar a emocionante diferença que a natureza quis estabelecer entre os dois géneros humanos. É que aqui não chega imaginar-se que se tem diante si seres humanos, ao mesmo tempo não se deve perder de vista que essas pessoas não são do mesmo género. A mulher tem uma sensibilidade inata mais forte para o que é belo, decoroso e decorado … O sexo belo tem tanto entendimento como o masculino, trata-se apenas de um entendimento belo, [ao passo que] o nosso deve ser um entendimento profundo, o qual é uma expressão que significa o mesmo com o elevado.” (Observações sobre o sentimento do belo e do elevado, A 48).
Neste lugar, quero poupar o leitor a mais devaneios estereotipados sobre as mulheres e os homens, que podem ser encontradas aos montes nesse texto. O que me parece importante é que o universalismo, que vezes sem conta é imputado a Kant, nomeadamente no que diz respeito ao cariz transcendental do seu capital de razão, não passa de pura ficção (veja-se Bennent, 96). Ao invés, convém mantermos presente que a exclusão sistemática de momentos que não se encaixem na abstracção é constitutiva para a sociedade da mercadoria, e assim também o é para o Iluminismo. Kant deixa claro, de um modo que evita todos os malentendidos, até onde vai a pretensão universalista do Iluminismo: é verdade que temos de encarar as mulheres como seres humanos, mas lá está, de um outro género. Ao mesmo tempo, o elevado, que tem por meta a abstracção, é incomparável. No entanto, a teoria burguesa quer escamotear a subdivisão hierárquica no mundo sensível e na elevação do mesmo, e assim imputa a Kant, contrariamente à verdadeira intenção, um igualitarismo que em caso algum é sustentável. “No entanto, Kant não abre mão do conceito da igualdade de base antropológica” (Lepenies, 94). Lepenies acha ser precisamente o equipamento base antropológico, isto é, natural, do Homem que garante a igualdade em Kant. Mas em boa verdade a diferenciação sexual atravessa todas as esferas no nosso “arrasador de tudo”. Seja como cidadão do estado ou como “personalidade cívica”. “O servente de um comerciante, ou de um artesão; o criado … o menor … toda a mulher, e de um modo geral todos aqueles que se vêem constritos a obter … a sua existência … não por iniciativa própria, mas às ordens de outros, carece de personalidade cívica e a sua existência é, por assim dizer, inerência” (MdS, A 167, 168). Ora, acontece que a existência como personalidade cívica materialmente independente constitui sem dúvida um objectivo possível não só do homem branco, e assim estaríamos na presença de uma promessa universalista implícita na forma. No entanto, a chamada de atenção de Kant para a “inerência”, ou seja, a qualidade das coisas como algo de acidental contrariamente às substâncias, justamente cimenta a subdivisão hierárquica. É que, o que se encontra na base da experiência e das manifestações, a existência verdadeira, é de facto fixado por Kant segundo características tanto sexuais como raciais. “Pois aquele que tem o direito de voto nessa legislação é designado por cidadão (citoyen, isto é, cidadão do estado, e não cidadão urbano, bourgeois). A qualidade necessária para tal é, para além da natural (que não seja uma criança, nem uma mulher [!]), a única: que seja o seu próprio senhor (sui iuris) e, por conseguinte, tenha algum património (como o qual também pode ser considerada qualquer arte, ofício, ou bela-arte, ou ciência) que o alimente” (Über den Gemeinspruch, A 246, 247).
Tal como Kant, já no elevado e no belo, fala de dois géneros humanos, também aqui o pressuposto “natural” encontra-se formulada precisamente de um modo explicitamente hierarquizante em função do sexo, e assim contradiz a afirmação de Lepenies. O fundamento da hierarquização sexual consiste, neste contexto, sempre na divisão do mundo em abstracção e sensibilidade, em razão e necessidade. Se Kant vincula o cidadão como membro de uma sociedade civil ao atributo da liberdade jurídica (Veja-se MdS, A 166), essa esfera da liberdade e da razão – como ainda o comprovaremos mais tarde – está claramente inscrita ao sexo masculino.
Para além da exclusão do “belo sexo” do reino da razão, Kant, como apenas seria “consequente”, também extraterritorializou determinados “caracteres nacionais”: “Os pretos de África não têm inato um sentimento que vá para além do banal. O senhor Hume exorta toda a gente para aduzir um único exemplo de que um preto tivesse demonstrado talentos, e afirma: que entre essas centenas de milhares de pretos, que são levados dos seus países para outros destinos, embora muitíssimos deles também sejam postos em liberdade, mesmo assim nunca foi encontrado nem um único que, ou na arte, ou na ciência, ou em qualquer outra arte louvável, alguma vez tivesse representado algo de grande, embora entre os brancos a toda a hora há quem se eleve desde a populaça mais humilde para adquirir uma reputação no mundo devido a dons excepcionais. Tão essencial é a diferença entre estas duas estirpes humanas, e ela parece ser tão grande no que diz respeito à capacidade do espírito como é pela cor” (Observações sobre o sentimento do belo e do elevado, A 102, 103).
O Iluminismo desde sempre se fundamentou em mecanismos de exclusão e, ao fim e ao cabo, apenas o branco masculino se qualifica para a esfera do elevado. Esta exclusão misantrópica parece ser estruturalmente necessária, porque a abstracção operada pela consciência razoável do homem tem sempre de fazer, e quer sempre fazer referência ao seu produto colateral que é o oposto irracional. É também assim que Kant “acrescenta” ao seu entendimento, que pensa de um modo cientificamente abstracto e profundo, o belo entendimento, sensível e de bom coração. O mais tardar aqui se torna evidente que a gloriosa razão de Kant não é sinónimo de algum diálogo que, enfim, também não deixa de ser necessária até certo ponto, entre humanos que querem argumentar de um modo razoável. Antes, a racionalidade iluminista é, na sua estrutura fundamental, tão inconsciente quanto é bárbara, porque associa a sua lógica à raça e ao sexo e a constituição de uma esfera abstracta do elevado sempre vai de mãos dadas com o domínio sobre algo de identificável e rebaixado. A desmedida auto-sobrestimação do masculinamente elevado, no entanto, apenas pode afirmar-se despromovendo outros a natureza. O oposto como produto colateral, que a razão quer agraciar com um tratamento hierárquico, é projectado sobre um grupo socialmente identificável. A razão masculina fica com o reino das formas puras e dos princípios abstractos para si, visto que Kant definitivamente não acredita em que “pretos” ou “o belo sexo seja[m] capazes dos princípios” (ibidem, A 57, 58).
O homem como lobo
Aquilo de que o sujeito masculino procura a segurança é, por isso, vertido na forma controlável de uma lei. Acontece, porém, que o conceito da natureza em Kant é duplo. Trata-se, por um lado, do material sensível passivo e caótico e, por outro, a daí decorrente estrutura dotada de uma forma, controlada e, com isso, hierarquicamente definida. Mas, através da associação causal condicionada de todas as manifestações, ainda se afirma um outro momento da sociedade burguesa que caracteriza a imagem que o liberalismo tem do Homem. Estamos a falar da sobejamente conhecida natureza lupina do Homem. É com base em uma concepção da “independência humana” que estes “independentes” se encontram envolvidos numa contenda permanente. Sendo que a independência, em Kant, se encontra uma vez mais diferenciada com base em critérios sexuais: “toda a mulher carece de personalidade cívica e a sua existência é, por assim dizer, apenas inerência”. O sujeito concorrencial de Kant é, portanto, sexualmente conotado. O lobo é masculino. Ao passo que Kant, na sua fundamentação da metafísica dos costumes e na crítica da razão prática descreve o conhecimento empírico, isto é, o local da prática humana, como o estado de condicionamento completo e determinação total, na obra “Über den Gemeinspruch …” ele põe o enfoque na esfera do sujeito concorrencial burguês, ou seja, o burguês propriamente dito. À concepção mecanicista da natureza do Homem vêm portanto juntar-se as atribuições do proveito próprio do “homem privado e de negócios” (Über den Gemeinspruch, A 207, 208). As alegações sobre a subjectividade concorrencial tornaram-se populares sobretudo pelo escrito “Ideia de uma História geral de intenção cosmopolita”: “O que obriga o Homem, de outro modo tão cioso da liberdade isenta de vínculos, a submeter-se a semelhante estado de coacção é a miséria; e é a maior de todas, nomeadamente a que os humanos infligem uns aos outros, cujas inclinações fazem que em um estado de liberdade selvagem não consigam existir lado a lado por muito tempo” (Ideia, A 395, 396).
O objectivo não consiste, por isso, na cega continuação dos antagonismos que acabam na maior das misérias, mas a contenção dos indivíduos pela introdução de limites: “O Homem é um animal que, ao viver no meio de outros da sua espécie, necessita de um senhor. É que certamente abusará da sua liberdade face a outros seus semelhantes; e embora, na sua qualidade de ser razoável, deseje uma lei que colocasse limites à liberdade de todos: ainda assim o seduz a sua egocêntrica tendência animal a isentar-se da mesma onde tal lhe for lícito. Precisa, portanto, de um senhor que lhe quebre a vontade própria e o constranja a obedecer a uma vontade de validade universal, para que todos pudessem ser livres” (Ideia, A 396).
Kant refere-se aqui à necessidade prefigurada por Hobbes do grande monstro que mantenha em xeque os pequenos. Para além do carácter maquinal que Kant atribui aos objectos da natureza, de passagem, na actuação dos indivíduos independentes, vai-se portanto impondo a luta concorrencial permanente, a guerra de todos contra todos. À semelhança do que acontece com a determinação de todos os processos naturais, também aqui, segundo o padrão já conhecido do Iluminismo, condições sociais são convertidas em condições aparentemente naturais. Assim nasce uma imagem tão grandiosa como sanguinolenta dos processos naturais, dos quais nos devemos salvar pela transição do estado natural para o estado social. A esfera do homo oeconomicus, ou a sociedade burguesa, contrapõe-se à esfera do homo politicus, ou ao estado. E somente devido à quase-natureza da sociedade burguesa com o seu “direito a tudo”, ou seja, ao egoísmo generalizado, é que se torna necessária a formulação de uma esfera da lei moral abstracta, ou vice-versa. O egoísmo, o hedonismo e o interesse individual tornam necessária a generalidade da lei e do estado, ou vice-versa. A esfera política estabelece o seu contrário privativo e egoísta. O pressuposto fundamental de qualquer posição liberal, o carácter porco ou lupino do Homem, obriga-o à substituição da própria vontade egoísta por uma vontade de validade geral.
Em Hobbes, a esfera do geral, o Leviatã, resulta do carácter específico dos interesses particulares. O geral não é absoluto na medida em que justamente acaba por ser produzido pelas condições do específico e nunca deixa de remeter para este último. O estado nasce do cálculo utilitário dos indivíduos, visto que sob as suas condições os interesses egoístas acabam por obviar um maior rendimento. Para Kant (como mais tarde para Hegel), esta perspectiva do geral era perfeitamente inaceitável. É que assim a razão, ou seja, aquilo que consegue elevar o Homem acima do reino da natureza, seria concebido ao mesmo nível qualitativo como o substrato natural, como “a sua egocêntrica tendência animal”. A razão aqui não é “colocada noutra esfera”, sendo antes ela própria ainda um momento da natureza. Kant transforma o problema entre os interesses gerais e particulares, que Hobbes não conseguiu resolver pela sua referência à esfera específica da sociedade civil, em uma teoria, em que a existência da sociedade civil é consequentemente separada da esfera geral das obrigações e da lei geral. Com isso, ele remeteu sem querer, mas ainda assim com acerto para o problema da forma independentizada e que pode ser decifrada como a forma da sociedade da mercadoria. No entanto, na obra de Kant as contradições centrais da constituição do sujeito em uma forma (de sociedade) direccionada para o interesse particular são demonstradas sob um prisma afirmativo. O indivíduo vê-se feito em dois. Por um lado, como um ser determinado pelas formas da legalidade natural que se assemelha ao animal, ou então a um autómato. Por outro lado, porém, como uma “criatura razoável que deseja uma lei” e assim se encontra colocado noutra esfera totalmente distinta: a esfera da razão e da livre vontade.
A vontade sem sentido
Para além do mundo sensível
Ora, se Kant enfiou a realidade passível de ser objecto da experiência sensível – ou seja, a esfera do intelecto teórico – em uma caixa de transmissão automática, ele procura na sua razão prática o produtor desse autómato. A caminho do conhecimento de si próprio, Kant tem de deixar atrás de si a anteriormente construída realidade infernal da natureza maquinal se não quiser manter-se recluso no casulo da necessidade. De facto, o intelecto é automático na constituição das concepções sensíveis, como sujeito que somente no acto da cognição é que sintetiza os objectos. Mas ainda não é puramente automático. E essa é uma grande diferença. Apesar de uma certa perspectiva de “elevação” para o sujeito, a esfera da experiência sensível não é de todo o lugar da verdadeira autonomia (masculina). Antes pelo contrário. É que, ao fim e ao cabo, todo o mundo sensível e, com ele, o sujeito cognoscente, encontra-se sujeito, totalmente determinado por outrem, a uma existência que lhe é pressuposta. Ele próprio não passa de algo derivado, condicionado e acidental. Se contemplarmos o problema aqui referido da constituição do sujeito ao nível dos sujeitos estaduais, torna-se inequivocamente claro por que a solução de Hobbes relativamente à constituição do soberano como o ilimitadamente geral teve de continuar a ser tão pouco satisfatória. Afinal a contradição em Hobbes consiste em que o soberano, que apenas se torna o que é devido ao estabelecimento de um contrato entre os indivíduos, no fundo já pressupõe o estado do direito e a categoria da vontade que ele ainda tenciona estabelecer (veja-se Adam, 53). É que a instância da vontade geral teria assim um pressuposto que a condicionasse por seu lado. O soberano é, portanto, criado pelo acto de uma vontade específica, e não da vontade geral. Assim sendo, a omnipotência estabelecida como soberano perde imediatamente esse estatuto, na medida em que é condicionada por momentos que lhe são alheios. Kant não se atrapalha com esta tentativa de dedução das vontades específica e geral, dividindo ambas as áreas de forma consequente. À impotência e à total determinação por outrem, de um dos lados, é associada uma esfera do poder ilimitado. No entanto, e estupidamente, esta vontade omnipotente reina exclusivamente na sua área separada do mundo sensível. Mal a razão se queira tornar prática, ela encontra-se mais uma vez sujeita à conhecida ordem cimentada das coisas. Para se salvar da sujeição no mundo sensível, é constituída uma área totalmente separada do mesmo. Na “decisão” da sua “Crítica da razão prática”, Kant coloca ambas estas esferas lado a lado de forma paradigmática, tornando evidente o sentimento da total impotência do sujeito desse mundo sensível.
“Duas coisas preenchem o ânimo com uma admiração e um respeito sempre novos e crescentes … O céu estrelado acima de mim, e a lei moral em mim. Não devo procurar e apenas supor a ambos como envoltos na escuridão, ou no excelso, fora do meu horizonte; vejo-os diante mim e associo-os de forma imediata com a consciência da minha existência. O primeiro começa no lugar que ocupo no mundo sensível exterior e amplia o contexto em que me encontro até ao incomensuravelmente grande com mundos sobre mundos e sistemas de sistemas, para além disso nos tempos ilimitados do seu movimento periódico, do seu início e da sua duração … A primeira vista de uma quantidade de mundos sem número aniquila por assim dizer a minha importância enquanto criatura animal que tem de devolver a matéria de que deveio ao planeta (um mero ponto no Universo) depois de ter estado provido, durante um curto espaço de tempo (não se sabe como), com força vital” (KpV, A 289, 290).
Aqui certamente não se trata de uma discussão sobre a finitude sensível humana em geral, antes, na formulação de Kant, se exprime uma abordagem muito específica e típica para a sociedade burguesa da sensibilidade: Para o sujeito, a conexão com outras pessoas ou com a natureza existe apenas em abstracto. Não existem quaisquer relações humanas e naturais directas, visto que qualquer “contexto” com o “mundo sensível exterior” já me pressupõe como um ser solitário e isolado. Como esta criatura “animal”, o sujeito encontra-se à mercê dos mundos grandes a perder de vista e dos sistemas no espaço abstracto ilimitado e na duração perpétua do tempo abstracto. O preço a pagar pela redução da experiência humana a uma razão teórica abstracta é a total impotência face ao mundo dos objectos tornado independente e às suas formas racionais. Se qualquer referência ao mundo sensível se reduzir à pura e abstracta contraposição de sujeito e objecto, o sujeito exclui-se, desde já, a si próprio. Se o intelecto abstracto se aguentar como forma exclusiva, ele forma-se como excluído. E Kant – aí não podemos deixar os seus louros por mãos alheias – é o mestre da exclusão, aquele que formulou a existência burguesa da forma mais consequente até a formas puras, independentes de qualquer agitação sensível. Em resultado dos seus esforços teóricos, o sujeito vê-se “aniquilado” na sua importância. Mas a ajuda já aí vem. Não é que Kant problematize a abstracção progressiva do mundo na engenharia de máquinas da sua razão devida ao excesso de abstracção. Não, a saída está na falta: “A segunda [vista, das “coisas” acima referidas, KW], porém, eleva o meu valor, enquanto uma inteligência, infinita, devido à minha personalidade, na qual a lei moral me revela uma vida independente do mundo animal, e mesmo de todo o mundo sensível, pelo menos pelo que se pode deduzir da definição prática da minha vida por essa lei que não se encontra delimitada às condições e às leis desta vida, prolongando-se antes para o infinito” (ibidem).
Bem podemos dizer que isso é qualquer coisa. O Homem pode escapar aos condicionalismos da sua experiência sensível por lhe ser revelada “uma vida independente de todo o mundo sensível”. Mas neste mundo extra-sensorial da lei moral evidentemente não vigora a plenitude e a efusividade da vida que nos indemnizasse pela vida maquinal no mundo sensível abstractificado de Kant. Nenhum estado de embriaguez que enchesse os sentidos pela árida existência mecânica. Em vez de uma existência sensível que não fosse reduzida às condições determinantes da realidade, Kant preconiza como verdadeira existência no sentido da sua razão prática e da sua doutrina da liberdade uma existência sem sentidos, ou seja, uma existência destituída de sentido. Precisamente a falta de abstracção desta vida dos sentidos, cuja falta caracteriza a sua relação sensível no seu todo, é o que Kant vai invocar. Em vez de simplesmente desligar essa gigantesca entidade maquinal da razão com a sua existência digna de um robot e de um espeto giratório de assar, Kant quer uma existência que já não “se encontra delimitada às condições e às leis desta vida, prolongando-se antes para o infinito.”
Tendo em vista este veredicto, realmente podemos conceder a Kant o duvidoso estatuto de um arrasador de tudo. No entanto, se o seu projecto não passasse de uma mania pessoal, de um mero ataque de loucura de uma ave rara filosófica de Königsberg, alheado da vida e algo excêntrico, bem poderíamos voltar a entregar as suas críticas – enojados ou talvez divertidos – à estante ou ao esquecimento. No entanto, as folias de contornos religiosos e metafísicos da razão esclarecida por ele descrita são uma amarga realidade. Evidentemente não no sentido de que Kant possa ser levado a sério e os seres humanos possam realmente viver uma vida para lá do mundo sensível. Mas com esta lei do além, depurada do mundo sensível, Kant acerta em algo que constitui o assombroso núcleo da sociedade civil. Vivermos em um mundo “real”, que se baseia neste mundo do além, em que Deus é tanto realidade suprema como também aparência (C. Türcke), não é Kant quem no-lo exige mas, sim, a razão generalizada da sociedade da mercadoria. Nesta, os indivíduos encontram-se realmente sujeitos a uma lógica que, tomada por si, constitui uma legalidade destituída de sentido, cega e autonomizada. E o que Kant, assim como todo o Iluminismo e igualmente os indivíduos impõem a si próprios é a orientação para essa “existência pela lei”. No entanto, uma existência sem sentido para lá das necessidades individuais e da vivenciabilidade sensível, tal hybris da razão moderna, segundo Kant não deve encher o ânimo de repugnância e abominação, mas com um gesto elevador de admiração respeitosa. Mas como pode ser sequer pensado esse absurdo da existência legal para além dos sentidos? Como é que Kant imagina a esfera para lá das definições causais e dos condicionalismos determinantes da vida?
A obrigatoriedade do querer sensível
Na crítica da razão prática, Kant formula a esfera da razão pura como dominada por uma vontade que não se deixa determinar por “condições patológicas”, isto é, por acasos sensíveis e, como tal, subjectivos (veja-se §1 KpV, A 35, 36). Ora, se esta vontade ou o “desejo” actuam segundo critérios que têm um determinado objecto para a satisfação dessa vontade, não se trata de critérios da razão pura. É que esses objectos do desejo são sempre apenas empíricos. No entanto, isso acaba por querer dizer que a vontade poderia ser determinada por um objecto especial e sensível. Assim sendo, no entanto, deixava de ser o omnipotente, ficando antes, ele próprio, sujeito a conteúdos fortuitos e, como tal, impotente. Pois é assim, no mundo dual da ética de Kant existem apenas dois estados: “1” para omnipotência e “0” para impotência. Tudo o que o sujeito masculino não deve a si próprio que cria a partir do seu interior tem para ele um carácter ameaçador e avassalador. Assim sendo, contrariamente a Hobbes, devido à separação consequente entre os sujeitos transcendental e empírico, ou a forma pura e o conteúdo empírico da vontade, Kant não fica apanhado no paradoxal círculo de justificações da soberania.
Para além da determinação “patológica” do sujeito, desde que este seja empírico, a esfera do sensível amplia-se, porém, devido a uma estranha dinâmica. Na razão teórica de Kant, na percepção contemplativa do mundo, o sujeito trata o caos sensível com instrumentos da mala de ferramentas do seu intelecto para o converter em uma realidade feita de condicionalismos mecânicos. Ao nível da vontade prática, o sistema empírico dos mundos dinamiza-se em uma esfera do desejo permanente. Já não se trata da soberana conjugação das peças soltas do “múltiplo” em um objecto; é antes ao querer ininterrupto desse objecto que a actuação dos humanos se encontra sujeito. Kant descreve a esfera do mundo sensível como instintivamente dominada pelo “princípio do amor próprio, ou da felicidade própria” (KpV, A 39, 40), pelo “prazer com a realidade de um objecto” (ibidem).
“Se a determinação da vontade se fundamentar na sensação do agrado ou desagrado que espera de alguma causa, é-lhe perfeitamente indiferente por que tipo de concepção foi afectado. Só lhe importa quão forte, quão prolongado, quão facilmente adquirido e quantas vezes repetido é esse agrado, é só disso que depende no seu caso a decisão de escolher. Da mesma maneira como àquele que precisa de ouro para gastar é perfeitamente indiferente se a matéria do mesmo, o ouro, foi desenterrada na serra ou lavada da areia, desde que seja aceite em todo o lado pelo mesmo valor, ninguém quer saber, se apenas estiver interessado em levar uma vida agradável, se lhe proporcionam concepções intelectuais ou sensíveis, mas apenas quanto e quão grande divertimento lhe proporcionam pelo tempo mais prolongado” (KpV, A 42, 43).
Independentemente de se tratar de prazeres baixos e ligados aos sentidos (“concepções sensíveis”) ou de formas mais cultas da fruição (“concepções intelectuais”), toda a actuação sensível em Kant parece impelida pelo desejo do maior divertimento, pela satisfação mais prolongada, pela concupiscência permanente (4). A sua doutrina da razão prática é uma doutrina do desejo. E não é por mero acaso que a dimensão puramente quantitativa da pretendida satisfação deste desejo (durante o máximo de tempo o máximo divertimento) constitui a associação à cegueira em termos de conteúdos da moderna forma da mercadoria (ouro e valor). Ela remete para uma estrutura lógica do Iluminismo que conduz em linha recta para a tesão masculina destrutiva de um de Sade. No entanto este, na hybris dos seus excessos sexuais, em termos estruturais de modo algum ultrapassa Kant. É que Sade se limitou a tornar explícita a violência desta lógica. Mas no fundo já Kant formula, com a sua realidade despromovida a mera matéria da concupiscência dos sentidos, o tremendo potencial de violência da subjectividade moderna masculina que nisso se encontra contida. Acontece que o potencial destrutivo não consiste meramente na cegueira e indiferença quanto ao conteúdo. É que a construção de Kant da matéria da realidade sensível afinal tem por base a vontade desejosa que permanentemente procura a sua satisfação. A capacidade de desejar procura satisfazer o seu desejo com os objectos despromovidos. Uma crítica fundamental do Iluminismo, para além da violenta ignorância de conteúdos da razão moderna, tem de debruçar-se igualmente sobre as suas suposições antropológicas pressupostas. Entre estas conta-se, como momento constitutivo fundamental da subjectividade burguesa (masculina), a impulsividade mais tarde demonstrada por Freud dos indivíduos burgueses. No entanto, Kant não é de Sade. É que, como sabemos, ele não entrou para a História como um teórico dos afectos sensíveis. E assim não se deteve com a “baixa capacidade de desejo” do prazer carnal, mas acabou por encontrar o objectivo dos seus labores teóricos no reino superior da razão destituída de sentido, pura. Por isso também problematizou, ao contrário de Sade, de forma radical a esfera da realidade sensível, descrevendo-a segundo o padrão já conhecido como uma relação de submissão. Tal como o sujeito masculino, no acto da cognição, pode unicamente vivenciar a realidade como um sistema de condicionalismos determinantes, assim também no seu querer sensível acaba por encontrar-se à mercê do mesmo.
“A satisfação com toda a sua existência, longe de ser um património de origem, … constitui um problema que lhe (ao saber finito) é imposto pela sua própria natureza finita, porque se encontra necessitado, e esta necessidade refere-se à matéria da sua capacidade de desejo, ou seja, a algo que se refere a um sentimento subjectivamente subjacente de desejo ou falta do mesmo, pelo que é aferido o que é necessário ao contentamento com o seu estado” (KPV, A 46).
Já é quase digno de uma menção honrosa a forma cândida como Kant por vezes pronuncia a lógica catastrófica do Iluminismo e da sociedade da mercadoria.Temos de perguntar porque é que a necessidade sensível do Homem se torna um problema da nossa existência? Não está qualquer um dependente e necessitado disto e daquilo? Do modo como Kant formula esta dependência, como sujeição ao mundo sensível que, por seu lado, é apenas o objecto da cobiça permanente, a “satisfação com toda a sua existência” realmente se apresenta como um “problema imposto”. É que o facto de o Homem, para estar contente, precisar de certas coisas, apenas se torna problemático quando a actuação se apresenta como uma permanente obrigatoriedade do querer sensível, e quando essa capacidade de cobiça reduz tudo à matéria da concupiscência. Pressupondo semelhante diagnóstico antropológico, Kant deixa caracterizar esse estado, de um modo bastante coerente do ponto de vista do conteúdo e da lógica, como algo que submete os sujeitos. Aqui, o que há que ser transcendido não é o carácter compulsivo na relação humana para com o mundo objectual funcionalizado. Para Kant, o desaforo inaceitável consiste no facto de a vontade ainda precisar sequer de um objecto. Na sua pretensão da abolição de limites, qualquer forma de ser remetido para algo de finito não só se afigura importuno ou desagradável, mas inverte a relação de omnipotência no seu contrário. Já agora, este medo da impotência também acompanha de Sade a par e passo na sua campanha de destruição sexual. Em vez de criticar a forma da capacidade de desejo, torna-se o alvo da crítica o objecto, reduzido a objecto da concupiscência. Ao ser limitado e singular, é ao mesmo tempo algo que incomoda fortemente a vontade incondicional que para ele se encontra remetida. Tal como na situação de uma violação, em que se pretende que a vítima, e não o violador seja o culpado. Esta vontade tende, de facto, para o infinito. Mais concretamente, para a destruição infinita.
Engrenagem sem mundo
Ora, o que Kant procura é um princípio que, longe das limitações de conteúdo, seja adequado à vontade. É, por isso, aqui que penetramos na verdadeira esfera da razão prática, no reino da liberdade. Perante o conteúdo estapafúrdio desta razão, a vontade que dá é precisamente “escondermo-nos do seu olhar”. Se Kant começou por conceber a vontade empírica como “baixa capacidade de desejo”, como fome de objectos que eternamente aperta, estando sujeita à lei natural da causalidade, agora retira-lhe qualquer conteúdo. É que, se a vontade tivesse um objecto, “a regra da vontade estaria sujeita a uma condição empírica (à relação da concepção determinante relativamente ao sentimento do desejo e da falta do mesmo) e, por conseguinte, não seria uma lei prática. Ora, de uma lei, se separamos dela toda a matéria, ou seja, qualquer objecto da vontade (como fundamento da definição), nada resta, a não ser a mera forma de uma legislação geral” (KpV, A 48 s.). E: “Assim, uma vontade livre, independentemente da matéria da lei, tem, ainda assim, de encontrar nessa mesma lei um fundamento da definição. No entanto, para além da matéria da lei, nada mais se encontra contido na mesma, a não ser a forma legisladora. Assim sendo, a forma legisladora, na medida em que se encontra contida na máxima, é a única coisa que pode constituir um fundamento da definição da vontade” (ibidem, A 52).
Portanto, o que Kant leva para o seu reino da liberdade é a sua mala das ferramentas da razão. O único conteúdo desta é a forma da legalidade. Se, no seio da realidade empírica, ainda se via a braços com a “confusão” do caos sensível, a ver se lhe conferia a forma de uma lei, agora, no reino da razão pura, o que vigora é o sossego e a segurança. E se o desejo sensível constituía uma necessidade impossível de satisfazer num quadro de impotência, aqui pontifica a liberdade de tudo isso. Aqui, a única coisa que existe é a forma da pura legalidade, independente da matéria.
“Age de tal forma que a máxima da tua vontade possa, a qualquer hora, vigorar simultaneamente como princípio de uma legislação geral” (ibidem, A 54).
Ora, é isto o que o Iluminismo tem de mais sagrado: “uma vida independente de todo o mundo sensível” segundo o princípio de uma legalidade geral. É essa a recompensa de Kant por ter levado à letra a realidade burguesa da concorrência mútua. Pela viragem utilitarista da Filosofia (Bentham), toda a acção já estava reduzida a um mero meio. O mundo da experiência de Kant com os seus condicionamentos causais sempre se limitou a remeter para dependências antepostas, de forma que qualquer prática podia apenas revestir-se de um carácter relativo. Na sua procura pelo incondicional e absoluto, Kant acabou por encontrar o critério da forma legislativa como fundamento da definição da vontade. A uma vontade que parte da redução da experiência humana à submissão mecanicista e à relacionalidade, e que mesmo assim, ou por isso mesmo, anda em busca de terra firme debaixo dos seus pés, realmente apenas resta a opção de alojar o dito fundamento em uma esfera transcendental e extra-sensorial da mera forma. Se deduzirmos da pressuposta engrenagem do mundo o próprio mundo, o que resta é apenas a engrenagem. Se nos abstrairmos completamente do domínio do sensível, o que resta para determinar a vontade já é apenas o princípio de uma legislação geral. Se Kant concebe a realidade burguesa como uma prática que se movimenta de acordo com leis, a actuação ainda tem um conteúdo. Mas quanto ao conhecimento empírico determinado pela lei coloca-se a questão: o que é o constituens, o conteúdo ou a forma? A resposta de Kant é clara. A “matéria da lei” é sempre apenas o constitutum de uma esfera superior como princípio de uma legislação geral. O que Kant formulou como constituição ontológica fundamental dos sujeitos razoáveis como uma esfera metafísica, remete evidentemente para o conteúdo social real da mediação social na forma da mercadoria, na qual o constituens não é a actuação orientada por um conteúdo, mas apenas a forma geral e abstracta do dinheiro ou do estado. “Poder, riqueza, honra, até saúde e todo o bem-estar e contentamento com o seu estado, a dar pelo nome da felicidade” (GMS, BA 1,2) por si são perfeitamente inadequados como medida da razão prática. Uma actuação que vise algo de específico é sempre apenas o constitutum de um contexto formal superior.
Marx demonstrou para a produção de mercadorias a relação formal do valor autonomizado. Pelo esforço no sentido da utilização de trabalho vivo por outro morto e pelo aumento da quantidade deste trabalho passado inverte-se a relação entre o geral e o específico. A esfera superior ao específico é o constituens. Na formulação da “boa vontade” por Kant encontramos a mesma lógica de inversão. No seu quadro de referência, a actuação com vista a um conteúdo específico é nula, desprezível, finita e condicionada. O próprio Kant achou “o assunto assaz intrigante” (KpV, A 55, 56), e assim ele, volta não volta, voltou a “contaminar” o seu imperativo categórico com exemplos empíricos. É que, se no reino da liberdade já não devem vigorar quaisquer definições quanto a conteúdos, Kant acaba por colher o que semeou com os seus exemplos empíricos. Como é do conhecimento geral, Hegel chamou a atenção para a inconsequência de Kant com o exemplo do depósito no qual, para além da forma legal, se encontra associada a aceitação em termos de conteúdo da manutenção da propriedade privada. Segundo Kant, o argumento contra a sonegação desse depósito consiste no facto de assim a própria propriedade privada ficar anulada e, assim, em contradição ao seu próprio pressuposto. No entanto, o que se supõe excluído à partida do “princípio de uma forma legal geral” como única máxima que orienta o comportamento é qualquer interesse pelo conteúdo. Assim sendo, não me é minimamente lícito formular uma suposição, como por exemplo a de que deveria existir a propriedade privada, visto que essa, afinal, seria um objecto do querer. Ao fim e ao cabo poderia partir igualmente da suposição de que não deveria existir propriedade privada; neste caso, o comportamento iria no sentido da sonegação do depósito. Com relação à forma pura, nenhum conteúdo deve constituir um princípio geral, antes há que se abstrair de qualquer conteúdo. Seria uma simplificação grosseira querermos encarar o imperativo categórico como uma regra moral para a generalização de um determinado comportamento. Porque lá está, aqui a vontade não é pensada como vontade inteiramente “pura, determinada pela mera forma da lei, nem este fundamento da definição é encarado como a condição suprema de todas as máximas” (ibidem). Quando Kant se desloca para o nível dos exemplos, ele pressupõe invariavelmente suposições de conteúdo implícitas: “Digamos que alguém afirma da sua tendência para a volúpia que esta lhe seria absolutamente irresistível, se se lhe proporcionassem o objecto amado e a respectiva oportunidade: será que, se estivesse erguida à porta da casa, onde ele encontre essa oportunidade, uma forca para aí o enforcar imediatamente após a satisfação da sua volúpia, ele não iria superar essa tendência? Não é difícil de adivinhar qual seria a sua resposta” (ibidem, A 54).
Kant afirma um conteúdo, nomeadamente que a concretização de uma “tendência para a volúpia” é algo de imoral. No entanto, com o mesmo direito poderia eu afirmar o contrário, que isso não é imoral, que afinal toda a gente tem um direito aos seus pequenos prazeres. Também este enunciado poderia ser generalizado. A regra prática aqui não tem um carácter incondicional. Antes encontra-se determinada por uma adicional aversão à volúpia. E há outra coisa que se torna nítida com este exemplo. Embora Kant, aqui como em numerosos outros lugares, proceda de um modo inconsequente a nível teórico à luz do seu imperativo fundamentado de um modo não empírico, para os seres empíricos, a lei não deixa de ter consequências práticas: O “princípio de uma legislação geral”, postulado como não empírico, assume para as pessoas sensíveis a forma muito empírica da forca. Na prática da sociedade burguesa, o conteúdo sensível da caixa de ferramentas da razão evidentemente não era a forma metafísica da legalidade, mas muitas vezes a instrumentaria concretamente empírica do torturador. E Kant sempre voltou, mesmo infringindo com o seu próprio postulado, a desenvolver programas pedagógicos e jurídico-penais para dar uma pequena ajuda sensível à imposição da “boa vontade” (veja-se Guttandin). Em todos os projectos empíricos, Kant acaba por se desviar da sua formulação da forma pura. Logo que venha juntar-se um determinado conteúdo, a vontade já não é incondicional, mas dependente desse objecto do desejo. É que o sujeito, ao fim e ao cabo, levou para o reino da liberdade apenas a forma da legalidade. E Kant insiste em que a vontade pura apenas deve referir-se a essa forma. Logo que ele tenta aplicar a ferramenta esterilizada da legalidade a um determinado objecto, a tentativa acaba com a “contaminação” ou com a “conspurcação” do instrumento.
“Ora, é de facto inegável que todo o querer também tem de ter um objecto e, assim sendo, uma matéria; mas não é por isso que esta constitui o fundamento da definição e a condição da máxima; é que, caso o seja, ela não pode ser representada em uma forma geralmente legisladora, porque a expectativa da existência do objecto seria, nesse caso, a causa determinante da arbitrariedade, e a dependência da capacidade de desejar da existência de uma coisa qualquer teria de ser considerada subjacente ao querer, tendo de ser sempre procurada apenas em condições empíricas, não podendo, por isso, nunca constituir o fundamento de uma regra necessária e geral” (KpV, A 60, 61).
Ora, uma acto levado a cabo por obrigação deve separar por completo a influência da inclinação, e com ela todo o objecto do querer, de forma que à vontade nada resta que a pudesse definir, como objectiva, a lei, e subjectiva, o puro respeito por essa lei prática, e daí a máxima de obedecer a uma tal lei, mesmo implicando o prejuízo de todas as minhas inclinações” (GMS, BA 15, 16).
Temos de ter presente que a realidade empírica, para o sujeito, sempre pode ser apenas a “dependência da capacidade de desejar”. Perante a permanente concupiscência e a falta de autonomia que ela implica, e que caracteriza o mundo sensível, a vontade pura procura-se uma existência independente de tudo isso. Em relação ao imperativo categórico, a apologética burguesa sempre remeteu para o suposto facto de apenas se tratar de um princípio moral unitário. E certamente isso não deixa de ser verdade no terreno da realidade empírica amestrada que, com a forma pura da legalidade, esteja encontrada uma definição universal da vontade segundo uma “regra necessária e geral”. Os objectos do conhecimento empírico, reduzidos a momentos aleatórios, não podem legitimar uma vontade que procede com base em princípios gerais. Mas uma consciência crítica que não queira passar por cima da constituição extremamente precária dos sujeitos com o recurso enganoso à mera constatação da legitimação universal da razão prática tem de assinalar a construção da vontade pura de Kant como um momento da lógica mortífera. O “princípio da legislação geral” como máxima subjectiva, conforme demonstrámos, não significa outra coisa senão, no estado de uma interioridade da forma pura e referida a si própria, destituída de sentido e afastada do mundo, querermos escapar à sujeição à obrigatoriedade do querer sensível. Por outras palavras, o ser maquinal impelido pelas inclinações e pelos desejos sensíveis deve alcançar o reino da liberdade no respeito interior pela forma legal.
O masoquismo da vontade
No fundo deveria ser invertida a argumentação de Kant, que deriva as condições da forma pura da legalidade da dependência da natureza que caracteriza o conhecimento empírico. É que só a “boa vontade” ou a “capacidade superior de desejar” (KpV, A 42, 43), como Kant também lhe chama, faz com que os objectos [Gegenstände] se transformem em objectos [Objekte] perfeitamente inadequados. Se a vontade se encontra estabelecida como um desejo infindável, que apenas adquire realidade para lá de toda a sensibilidade, os objectos da concupiscência nunca podem cumprir o que deles realmente é exigido. Cada objecto afigura-se, por isso, um substituto ilegítimo de algo que a vontade realmente almeja. Tanto mais insignificantes e indiferentes à vontade se tornam eles devido ao seu carácter limitado de sucedâneos. No entanto, o conteúdo concreto não só é totalmente indiferente à forma como até é o conteúdo que deve compensar-nos pela inatingível satisfação da “capacidade superior de desejar”. E tal não acontece segundo o método de um de Sade, que implica vivermos de forma desenfreada o desejo no fundo destituído de sentido, mas pela supressão completa de toda a sensualidade e sensibilidade em geral. Por intermédio desta negação do sensível, Kant julga poder demonstrar o método de imposição da sua vontade não empírica. Na terceira parte principal da “Crítica da razão prática”, Kant esclarece-nos sobre a forma como a vontade pura se torna prática. Sob o título “Sobre as molas impulsionadoras da pura razão prática”, ele desenvolve a dinâmica sadomasoquista da sua vontade em relação à realidade sensível. Aqui não é obra do acaso a por demais evidente afinidade com a ética protestante do trabalho. A mola impulsionadora que deve fazer valer o imperativo destituído de sentido, consiste no repugnante prazer extraído da humilhação e repressão das suas próprias necessidades sensíveis.
“O essencial de toda a determinação da vontade pela lei moral é: que ela seja determinada como vontade livre, ou seja, não só sem o concurso de impulsos sensíveis, mas até com a rejeição de todos eles, e com prejuízo para todas as inclinações, desde que haja possibilidade de serem contrárias a essa lei, em suma, apenas pela lei” (KpV, A 128, 129).
“E assim o respeito pela lei é … considerado como mola impulsionadora em termos subjectivos, na medida em que a pura razão prática, pelo facto de negar todas as pretensões ao amor próprio, contrariamente à sua atitude para com ela, impõe o respeito pela lei, que agora é a única a ter influência” (KpV, A 136).
Os efeitos da vontade formal são, portanto, negativos. Que nenhum objecto deva determinar a minha vontade é algo dificilmente possível a seres sensíveis. Por isso, a razão prática tenta impor a sua lógica precisamente pela “negação” e pela “rejeição” de todos os impulsos sensíveis. Esta negação geral da sensibilidade e da sensualidade resulta da estrutura puramente formal da vontade. A vontade, que apenas quer a forma pura da legalidade, apenas se pode exprimir como a repressão masoquista dos desejos sensíveis. No entanto, da mesma forma como a referência do “desejar superior” se unifica como rejeição e humilhação, também o “desejar inferior” se assimila no que respeita à sua forma.
“Todas inclinações juntas (que também podem bem ser organizadas num sistema suportável, e cuja satisfação então é designado por felicidade própria) perfazem o egoísmo (solipsismo). Este é ou o do amor próprio, de uma benevolência em relação a si próprio que se sobrepõe a tudo o mais, ou o do gosto por si próprio” (KpV, A 128, 129).
Esta psico-estrutura da opressão pelo “interesse liberto dos sentidos da mera razão prática” (ibidem, A 142) anda acompanhada do seu oposto sob a forma do desejo impossível de satisfazer do egoísmo. A exclusão de qualquer referência sensível do “desejar superior” corresponde-se com a transformação e redução de todas as referências sensíveis dos humanos à capacidade superior de desejar. Na sensibilidade e sensualidade, é precisamente pela repressão do desejo sensível que se produz o seu oposto. Para Kant, a vontade encontra-se determinada por apenas duas qualidades de desejar. O “superior” para a lei moral e o “inferior” para qualquer referência sensível. De resto, o desejar permanente é apenas o reverso da razão formal. Tal como o controlo da razão teórica apenas veio criar como produto colateral a confusão do mundo sensível, a vontade puramente formal tem o seu reverso na estrutura uniforme do desejo permanentemente necessitado. A interacção deste desejar com o vazio semelhante à morte da vontade pura remete para a pulsão de morte de Freud. Certamente não podemos esperar que, na teoria de Freud, os problemas da teoria de Kant se reflictam de forma idêntica. Para tal, entre outras coisas, os pressupostos históricos foram demasiado distintos. O que para um ainda era apenas era um programa, o outro pôde estudá-lo nos seus desvarios tornados realidade. No carácter conservador do impulso, ou da pulsão, em Freud, expressa-se um momento no processo da vida que tenta fazer as manifestações regressar novamente ao seu estado inorgânico, ou seja, de certo modo a um estado insensível.
“Seria contrário à natureza conservadora dos impulsos que o objectivo da vida fosse um estado nunca antes alcançado. Tem de se tratar antes de um estado velho, de partida, que o ser vivo uma vez abandonou e ao qual procura regressar por todos os meandros da evolução. Se podemos adoptar como experiência sem excepção que tudo o que está vivo morre por motivos internos, regressa ao domínio do inorgânico, apenas podemos dizer: O objectivo da vida é a morte, e voltando mais para trás: O inanimado existiu antes do vivo” (Freud, 223).
Se deixarmos de parte o curto-circuito naturalista de Freud, segundo o qual as categorias dos impulsos têm fundamentos biológicos, estas não deixam de apontar numa direcção que deverá ser explorada em termos de crítica social. Precisamente o conteúdo da pulsão de morte com o seu “carácter conservador” remete para a constituição formal em Kant, que vai dar a um princípio fundamental da prática humana cuja máxima suprema consiste na liberdade de toda a vida sensível. Mas se a existência humana deve estar direccionada para uma “vida independente de todo o mundo sensível”, em que é que a máxima iluminista ainda se distingue do objectivo da vida na pulsão de morte freudiana? Se a máxima ou respeito de Kant pela forma destituída de sentido “antecede” uma “postura fundamental” face à vida sensível (veja-se Kaulbach), isso corresponde à teoria de Freud do inanimado que foi anterior ao vivo.
No seu texto “Omnipotência e impotência”, Robert Bösch apontou a relação cruzada entre o “narcisismo” e a “pulsão de morte”como característica da subjectividade constituída sob a forma da mercadoria. A “necessidade compulsiva” (Bösch, 106) resulta, nesse contexto, de um estado sempre desejado, mas impossível de alguma vez ser alcançado, do narcisismo primário. A “vivência primária de satisfação” a que o indivíduo aspira remete para um objectivo correspondente em Kant, na sua formulação de um desejável “contentamento consigo próprio que … a qualquer altura apenas indica um prazer negativo com a sua existência, estado em que uma pessoa não tem consciência de ter necessidade de seja o que for” (KpV, A 212, 213). Mas este contentamento, lá está, não se inscreve em uma esfera sensível como regresso a um estado de satisfação total, como é associada em Freud, mas consiste justamente na elevação sobre tudo que seja sensível.
Esta ideia da personalidade, que desperta respeito, que nos faz ver … o carácter elevado da nossa natureza, fazendo-nos ao mesmo tempo notar, perante a mesma, a falta de adequação do nosso comportamento, reprimindo assim a presunção … Ela [uma acalmia interior, KW] é o efeito de um respeito por algo completamente diferente da vida, comparada e contraposta ao qual a vida antes, por muito agradável que possa ser, não tem qualquer valor. Já apenas vive por dever, e não porque tivesse o mínimo gosto pela vida. É essa a verdadeira mola impulsionadora da pura razão prática; não é outra que a própria lei moral pura, na medida em que a elevação da nossa própria existência supra-sensorial no-la deixa sentir” (KpV, A 157, 158).
O respeito pela forma pura da lei é um respeito por algo que está para além da vida. Ou: o dever do imperativo categórico é um dever mortal. E se Freud designa o desejar sensível sob a forma dos impulsos sexuais por “satélite da morte”, torna-se evidente sobre que astro escuro se arqueia o “céu estrelado” de Kant.
Respeito e sexo
Este “respeito por algo completamente diferente” encontra-se, na opinião de Kant, associado a um “carácter elevado da nossa natureza”. E aquele que o iluminista mais radical possível viu capaz de ser elevado, como já referimos, não é precisamente um assunto sexualmente neutro. Todo o complexo da elevação, da actuação por dever, do reconhecimento e da personalidade encontra-se formulado, em Kant, como uma relação entre sexos hierarquizada. No mundo da experiência, o sujeito masculino tentava demonstrar-se elevado face ao caos e à confusão levando a cabo o acto sintético da experiência e tentando perfilar-se como o elemento activo face à passiva matéria. Mas, com isso, estava efectuada uma hierarquização sexual e racial que esta “elevação” associou ao homem branco. Apesar da relação hierarquicamente ordenada no seio da estrutura empírica, o sujeito masculino achou-se sujeito ao mundo sensível. É que a pretensão em Kant é o domínio ilimitado e incondicional da vontade. E assim qualquer grão de areia sensivelmente aguçado pode fazer vazar a omnipotência da “pessoa masculina”, tão enfunada que está prestes a rebentar. Para se proteger dessa impotência, Kant tenta agora “elevar” o sujeito a uma “esfera totalmente distinta”. Ali a vontade já não se encontra cerceada por qualquer limitação sensível, podendo estender-se até ao infinito. Na “esfera inteligível”, Kant encontra o lugar adequado para o seu sujeito masculino da vontade. Coloca o sujeito masculino no reino da liberdade que, no entanto, apenas existe em uma interioridade absoluta. Aqui, a impotência das condições exteriores converte-se na omnipotência interior. O sujeito não é só automático por ordenar as coisas como é puramente automático sobretudo por produzir as coisas ordenadas. É tão incondicional como é isento de condição e quer-se apenas a si próprio. Mas também quer outros. Na teoria de Kant está sem dúvida contido o reconhecimento de uma outra pessoa. No entanto, lá está, apenas como elevada, como personalidade, desde que deixe atrás de si as terras baixas da natureza. O malentendido corrente quanto a um possível teor emancipatório, em relação ao imperativo categórico, não deverá ser maior em qualquer outra formulação que no reconhecimento de um outro como um fim em si mesmo. (Também em Böhme/Böhme se encontra esta simplificação abusiva, veja-se na p. 350.)
“Age de tal forma que sempre utilizes a Humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca apenas como meio” (GMS, BA 67).
Mas o que Kant quer designar com este “fim em si mesmo” é apenas o “sujeito da lei moral” (ibidem). Apenas aquele que possua uma capacidade de fazer a sua vontade tomar as suas decisões segundo esta lei é um ser razoável e pode, assim, ser reconhecido como fim em si. Neste contexto, a personalidade, o fim em si mesmo e a liberdade de toda a natureza são idênticos. Mas com isso também actua o conhecido mecanismo de exclusão do Iluminismo. Só aquele que reconhece o respeito pela lei como a sua máxima faz parte dessa esfera. As relações directas e concretas entre pessoas nem sequer existem, antes sempre se intercala entre elas a forma dos princípios puramente formais. Qualquer relacionamento com outros é ensombrado pelos princípios da legislação geral.
“Todo o respeito por outra pessoa é, a bem dizer, respeito pela lei” (GMS, BA 17).
“Não pode ser nada de inferior o que eleva o Homem acima de si mesmo (como uma parte do mundo sensível), o que o associa a uma ordem das coisas que apenas pode ser pensada pelo intelecto e que, ao mesmo tempo, tem debaixo de si todo o mundo sensível e, com ele, a existência empiricamente determinável do Homem no tempo, assim como a totalidade de todos os fins (que é o único adequado a semelhantes leis práticas incondicionais como a moral). Não é outra coisa que a personalidade, isto é, a liberdade e independência do mecanismo de toda a natureza” (KpV, A 154, 155).
A hybris da fantasia (masculina) da omnipotência dificilmente poderia ser maior visto que, tal como o Omnipotente, o sujeito da vontade, por assim dizer, produziu “todo o mundo sensível” como sua criação própria. Foi então neste mundo do intelecto, independente do sensível, que Kant encontrou o criador do seu mundo maquinal e automático. A liberdade, no entanto, aqui é concebida de um modo puramente negativo, como independência da natureza. O único conteúdo positivo que a liberdade ainda acarreta é o único conteúdo da mala de ferramentas, é, no entanto, a forma da legalidade. Mas em que relação com o princípio dessa lei é que se encontra o sujeito?
A dignidade como sujeição
Para Kant, o diagnóstico das suas possibilidades de experiência apresenta-se como a sujeição a um mundo de aparelhos estritamente organizado pela lei. A esfera destituída de sentido, que ele eleva sobre este, não se encontra determinada por um mundo objectual automático. Mas também aqui o sujeito encontra-se sujeito a uma legalidade (rigorosa). Kant, na “Fundamentação da metafísica dos costumes”, debruça-se precisamente sobre o problema da sujeição reiterada à forma pura. Depois da fuga da natureza pressuposta como caótica para a legalidade do mundo dos autómatos, Kant defronta-se novamente ao problema do sujeito encontrar-se sujeito a uma condição que não é seu produto próprio. A vontade elevada parece estar ameaçada no próprio reino da forma pura. “É que nada tem … de elevado enquanto se encontra sujeita à lei moral” (GMS, BA 87). O sujeito não pode substituir a sua sujeição às leis naturais pela sujeição à mera forma. Se o sujeito se encontrasse simplesmente subsumido a esta legalidade, o passeio realmente não teria valido a pena, porque aquilo que se procurou foi afinal algo para além da sujeição e do condicionamento: “A vontade é pensada como uma capacidade de, em consonância com a concepção de determinadas leis, determinar-se a si próprio para a actuação. E uma semelhante capacidade apenas pode ser encontrada em seres razoáveis. Ora, aquilo que serve à vontade de fundamento objectivo da sua autodeterminação é o fim, e este, se for determinado pela mera razão, tem de aplicar-se a todos os seres razoáveis por igual” (GMS, BA 64).
Para escapar à situação pouco risonha e confirmar o reino da liberdade como tal, Kant deita mão ao interruptor da ilusão esclarecida, e eis que o edifício da sociedade burguesa resplandece numa luz completamente nova. Se até à data foi um lugar da mais profunda impotência e limitação, todas as coisas parecem como transformadas na luz esplendorosa da autonomia. “A descida ao inferno do conhecimento de si próprio abre o caminho para a divinização”. Na qualidade de autónoma, agora a vontade masculinamente livre alcançou o seu ponto culminante. Como instância de autodeterminação, ela é o fundamento da lei moral, assim como instância omnipotente do mundo sensível. Ao transferir a questão se a lei moral também se aplica necessariamente a seres humanos (veja-se GMS, BA 62, 63) para o interior da estrutura da constituição do sujeito, Kant remete acertadamente para a instância mediadora central entre o geral e o particular como sujeito. Autonomia significa para os sujeitos “estar sujeito apenas à sua própria legislação que, ainda assim, não deixa de ser geral”. Se fossem determinados simplesmente pela legislação geral, não seria à condição por eles próprios criada que teriam de se sujeitar. Na autodeterminação como auto-sujeição apenas se exprime que é às próprias condições das pessoas que estas têm de se sujeitar. As condições absurdas da sociedade burguesa reflectem-se, portanto, na forma da subjectividade burguesa. O pano de fundo desta relação intricada entre o particular e o geral é a socialização inconscientemente estabelecida no seio da produção de mercadorias. Lá está, não é a vontade caracterizada por interesses específicos de um soberano autocrático que confronta os sujeitados com determinadas exigências, mas a relação específica de sujeição a uma forma produzida de modo inconsciente pelos próprios indivíduos. Na condição interior da escravatura, por exemplo, a sujeição era uma estrutura fácil de entender. Na forma da mercadoria, pelo contrário, tem de ser levada a cabo uma mediação entre uma generalidade impessoal (forma) e os particulares que a compõem. No entanto, esta generalidade é de um cariz autonomizado e abstracto. Esta generalidade estabelece, na realidade, o fim tão desassossegado como absurdo de toda a sociedade burguesa. Não são as acções individuais dos particulares no seu respectivo ser empírico que constituem o fim da sociedade da mercadoria, mas um constrangimento formal criado de modo inconsciente. Este fim, ou melhor, ‘fim em si’, é consequentemente, segundo Kant, aquilo “que serve à vontade de fundamento objectivo da sua autodeterminação” (GMS, BA 64). Os indivíduos seguem este ‘fim em si’ de tal modo, que se tomam erroneamente por uma instância de autodeterminação masculinamente conotada que segue esses fins superiores por iniciativa própria. Nenhum mero autómato ou espeto giratório de assar define, assim, os seres burgueses. Antes, o Eu entende-se erroneamente como centro constituinte que determina por si a sua actuação segundo a forma da legalidade, e assim como fundamento primordial de toda a acção. Este estado quase divino da omnipotência, em que o sujeito masculino se coloca, encontra-se, no entanto, permanentemente remetido para o inferno da impotência e, ao fim e ao cabo, não pode ser alcançado sem esta sujeição.
Só a referência a este Eu estabelecido como núcleo ao mesmo tempo destituído de qualquer conteúdo estabelece a identidade com as leis. “A vontade, por isso, não é apenas sujeitada à lei, mas é sujeitada de tal modo, que também tem de ser considerado autónomo, e por isso, antes de mais nada, sujeito à lei (da qual ele próprio pode considerar-se autor)” (GMS, BA 71). A mediação entre o particular e o abstractamente geral assim não vai, de modo algum, parar à definição dos agentes como meras marionetas. A mediação constitui, antes, a ficção de quem sempre apenas actua por iniciativa própria. No entanto, ao pensar ser o fundamento absoluto da sua autodeterminação, o indivíduo limita-se a dar cumprimento às leis da generalidade. Na mediação específica entre a generalidade e o indivíduo na sociedade burguesa, a forma total apenas se pode impor por intermédio da constituição de um Eu aparentemente omnipotente que tem de se tomar erroneamente pelo “autor” do todo. Os sujeitos sempre se encontram remetidos para “este princípio da Humanidade … como fim em si”, que “nada deve à experiência” (GMS, BA 70). Por isso, o que os indivíduos vão arranjar na sua mediação específica com a generalidade inconscientemente dominante, que apenas estabelece os fins puramente formais, é a condição da incondicionalidade. Ao acharem que constituem esta legislação geral em um acto autónomo e por sua iniciativa, estabelecem-se a si próprios como um Eu vazio que dá cumprimento a esta legislação geral. Este Eu, por seu lado, tem de ser absolutamente incondicional e orientar a sua actuação enquanto tal das influências sensíveis para o fim em si. O sujeito, portanto, por um lado não é condicionado pela experiência empírica, “senão teria de ser imaginado como apenas sujeito à lei natural das suas necessidade[s]” (GMS, BA 85). Por outro lado, iliba-se do condicionamento da generalidade abstracta pela auto-legislação autónoma. A incondicionalidade absoluta resulta da forma inconsciente, através da qual os indivíduos se medeiam no seio da sociedade da mercadoria. Na situação social da existência burguesa, o Homem encontra-se sujeito unicamente “à sua própria legislação que, ainda assim, não deixa de ser geral” (GMS, BA 73). Apenas a presunção da legislação própria de um Eu, constituída desde o seu próprio interior, permite disfarçar a sujeição. A figura recorrente na teoria burguesa de uma razão que tem de se pressupor a si própria e no final de contas não sabe explicar-se a si própria tem aqui a sua origem.
Apenas em casos excepcionais o sujeito burguês esclarecido é um cínico, como é o caso do venerável senhor Henning, que definiu muito acertadamente a liberdade como capacidade de escolher as faltas da mesma. Mas em regra o sujeito (masculino) acredita necessariamente na autonomia interior da sua autodeterminação. Em termos mais gerais, é precisamente a promessa ilusória da vontade autónoma que constitui o atractivo do Iluminismo. É que somente a autodeterminação fictícia parece tornar a sujeição suportável. A objectividade autonomizada da sociedade da mercadoria passa a vida a tapar as brechas do edifício psicótico da sociedade da mercadoria. Assim sendo, o indivíduo pode ser entendido como instância omnipotente de auto-legislação que se entende mal a si própria e que, contrariamente ao seu auto-entendimento se encontra justamente sujeito de forma impotente à sua generalidade inconscientemente produzida. À prática dos sujeitos burgueses vem juntar-se deste modo não só a constante referência à forma geral da lei como uma espécie de “agir fundamental”, mais que isso, os indivíduos também se consideram invariavelmente autónomos no acto. A sua sujeição e a sua suposta omnipotência processam-se, portanto, em termos idealmente típicos, em um único acto. A vontade do “ser razoável” tem, portanto, de ser constituído do seguinte modo: “não levar a cabo nenhum acto segundo outra máxima que a de que também poderia persistir com ela, que ela fosse uma lei geral e, assim, que a vontade, através da sua máxima, possa considerar-se simultaneamente como legisladora geral” (GMS, BA 76).
A “dignidade de um ser razoável” (ibidem), o valor supremo do auto- e malentendimento burguês consiste precisamente nesta autodeterminação abstracta em que o indivíduo se encontra submetido a uma forma legal produzida inconscientemente e se convence de ser ele próprio quem constitui o reconhecimento desta condição de sua livre vontade. A necessidade total produz assim, de um modo logicamente consistente, o seu contrário: a liberdade abstracta. Não se trata de uma forma de generalidade que ocupe os indivíduos como um poder exterior, obrigando-os, em uma submissão total, a uma adaptação fatalista, mas de uma coacção no sentido de uma independência específica. Aqui está denominado o teor central e, ao mesmo tempo, também a contradição central do Iluminismo e da individualidade burguesa: esta pode unicamente pensar-se a si própria como uma ficção da autoconstituição e da omnipotência e existir como tal, ainda assim não existindo. A exigência de ter de fazer de uma forma inconscientemente produzida que determina os indivíduos invariavelmente o contrário é precária, qualquer que seja a situação histórica, mas numa situação de independentização rasante face às leis sociais torna-se definitivamente um postulado impossível de cumprir. A recusa de se livrar desta constituição tão perversa como delirante pode provavelmente expressar-se unicamente através de formas agudizadas de loucuras e perversões. A duvidosa grandeza de Kant como iluminista consiste justamente em ter colocado em destaque, na forma mais pura, a pretensão tão ilusória, e até louca, como necessária e, por isso mesmo, irrealizável dos sujeitos:
“Que, embora sob o termo dever pensemos uma atitude submissa em relação à lei, imaginemos, não obstante, uma determinada elevação e dignidade dessa pessoa que cumpre todos os seus deveres. É que, sendo verdade que ela nada tem de dignidade na medida em que se encontra sujeita à lei moral, acaba por possui-la na medida em que, nos termos dessa mesma, ao mesmo tempo é legisladora e, por isso, sujeita apenas a ela” (GMS, BA 87).
É, portanto, da submissão como acto de autonomia que resulta a dignidade do ser razoável.
Kant e o sujeito(zinho) moderno
Na sociedade burguesa, a libertação dos tradicionais laços religiosos e de consanguinidade processou-se, portanto, de tal maneira, que as pessoas têm obrigação de se sujeitar a uma forma abstracta, em que têm de se imaginar como autodeterminadas e autónomas. Se, na fase de ascensão da sociedade da mercadoria, a fantasia da omnipotência ainda tinha um certo conteúdo empírico sob a forma dos grandes sujeitos dos estados nacionais, na paulatina identificação de crise entre o capital e o trabalho no empresário de si próprio da “Eu, S.A.” ela degenera em uma mera farsa. Na China, por exemplo, Mao empolava os trabalhadores como a instância do senhor sobre o Céu e a Terra: “Se ordenamos à montanha que vergue a cabeça, ela assim tem de fazer.” As devastações da natureza que foram causadas por esta hybris da omnipotência já há bastante tempo que podem ser observadas sob a forma dos danos ecológicos, e a toda a hora aparecem novas notícias catastróficas. Neste momento, por exemplo, setecentos milhões de chineses já não têm acesso a água potável segura (veja-se no Süddeutsche Zeitung de 29.7.2002). O sujeito(zinho) do Eu pós-moderno, instalado em um dos ilhéus restantes da valorização do valor, anda longe de semelhantes grandes actos de sujeitos grandes. Todo ele o fim em si interior, concentra-se nas suas fantasias de autodeterminação individuais e solitárias. E, com uma segurança cega, como se estivessem a actuar em um teatro surreal e segundo o guião de Kant e da sua razão prática, associam à sua liberdade como que automaticamente à forma da legalidade. No âmbito das minhas relações familiares, vi-me constrangido a deparar com o seguinte (o texto constitui um protocolo de uma acção de formação de uma empresa regional de serviços, publicado no jornal dos empregados): “Com os/as nossos/as chefes de cantinas e com todos os colaboradores da central, um total de quase quarenta pessoas, debatemos, discutimos e votámos ‘leis’. Leis que nos impusemos para o nosso serviço aos clientes. …
Projecto de lei
Resumir as nossas boas acções [!] em regras de validade geral [!] que expressem a nossa filosofia do ‘serviço como cultura’. A síntese do nosso encontro é a votação de oito leis:
§1) ‘Praticamos o Bem e falamos sobre isso’. Com recurso a medidas com impacto publicitário alcançamos uma muito boa ligação aos clientes.
§2) Agimos em vez de reagirmos
[etc., KW]
A infracção contra a lei como autodenúncia ou ‘chamada de atenção entre colegas’
É elevada a exigência da observação das leis – por isso, é igualmente alta a exigência do apuramento de qualquer infracção! Mais uma vez a comparação com o Código de Estrada: Passagem de um sinal vermelho – prova válida: fotografia frontal.
Cada um de nós aceita, por isso, o elevado desafio de reconhecer por ele próprio o seu erro ou a sua infracção. Se não for esse o caso de imediato, cada um será grato por que um ou uma colega lhe chame a atenção dentro de um espírito de camaradagem.”
No fundo isto dispensa quaisquer comentários. Os sujeitos ainda integrados na valorização parecem querer impedir a derrocada do caduco edifício da sociedade da mercadoria e do trabalho pelo brioso cumprimento das suas obrigações por excesso, da mesmo forma como alunos alinhados em formatura salvam o edifício da escola que está a ser consumido pelas chamas. Kant, em todo o caso, teria uma grande alegria com tanta consciência de dever e legalidade. “Dever! Nome elevado e magnífico!” (KpV, A 154). No caso ideal da autonomia, a “realização da existência abstracta” como política ou estado entranha-se nos próprios sujeitos. A partir da divisão em citoyen e bourgeois, a identidade de ambos é constituída através da autonomia. Nesse caso não existiria, porém, uma área separada da esfera estatal, de uma esfera que tem por conteúdo querer apenas o geral. Não admira, portanto, que em tempos de uma ofensiva neoliberal e da crítica a ela associada da regulação pelo estado, em proveito da auto-regulação do mercado tenham estado em alta, e ainda estejam, concepções como a “Eu, S.A.” e a autogestão. É que, no caso ideal, qualquer empresário individual não seria apenas trabalhador e capitalista na mesma pessoa, como seria ainda legislador e instância penal. Só a crise da sociedade da mercadoria com a sua exclusão em massa de “material” já não valorizável parece poder levar as pessoas para a beira do precipício que Kant assinalou como o que há de mais elevado. De facto, o movimento operário clássico, em termos categoriais, era um momento imanente do movimento do valor. Pela exteriorização e fixação dos momentos do geral no estado e no capital, no entanto, ele também permaneceu sujeito a esta lógica em uma relação exterior. Mesmo que o específico dos indivíduos apenas existisse por contraposição ao geral realizado no estado, ainda era reconhecível por uma unha negra como algo específico subordinado ao geral. A submissão ainda tinha um momento exterior. No ideal e abismo da autonomia geral, este momento exterior encontra-se apagado, cada um é o seu próprio capitalista, tal como é o seu juiz e, se for necessário, também o seu carrasco. Apenas o medo da exclusão total e, assim, a crise da valorização do valor, deve ter sido capaz de levar os sujeitos ao ponto de tornarem aproximadamente realidade a liberdade da auto-sujeição de Kant.
Legalidade e liberdade
A convenção dos e das chefes de cantinas, no entanto, ainda torna evidente outra coisa, nomeadamente, de que modo é acertada a concepção de Kant da identidade e da legalidade na forma pura. É que a liberdade só por si seria “remetida para o cego mais ou menos” (KpV, A 171). É que “a liberdade (independência) das leis da natureza, embora constitua uma libertação da coacção, também o é do fio condutor de todas as regras” (KrV, B 475). Para ser, de todo, operacional, a livre vontade sempre pode manifestar-se apenas na forma da autonomia. A liberdade, em Kant, encontra-se sempre necessariamente associada à legalidade. “A liberdade é uma falta de lei subjectiva … assim sendo, faz confusão … Toda a natureza é baralhada por ela. Pelo que, sem lei moral, o Homem se torna desprezível mesmo abaixo do animal, e mais odioso que este último” (Obra póstuma, citada segundo Böhme/Böhme, 314). A liberdade só por si, sem referência à legalidade, seria uma espécie de estado de excepção, a partir do qual a legalidade se constitui. A filosofia jurídica de um Hobbes ou mesmo de um Carl Schmitt remete para o facto de a constituição de um estado apenas se encontrar garantida pelo estado de excepção, em que o soberano está investido de todas as liberdades (punitivas). Somente uma situação que se encontra fora do estado de direito constitui esse mesmo. Em Kant poderíamos falar de um estado de excepção permanente em que se encontra o sujeito da livre autonomia. Mas só por si, a situação de excepção não deve verificar-se. É que, sem a forma da legalidade, ela seria “dissolução da coacção natural, sonho, desregramento, um interminável jogo de mudanças, confusões: O que está em questão não é se uma semelhante liberdade seria possível ou se faria sentido; mas que a fantasia de uma vida semelhante se encontra secretamente na base dos projectos de ordenamento de Kant …” (Böhme/Böhme, 341).
A legalidade tornou necessária a esfera da liberdade. Mas do mesmo modo a liberdade requer legalidade, porque sem a legalidade seria total a “confusão” e o caos. A agitada liberdade burguesa pode, por isso, apenas existir em conjunção com a pura forma da legislação. Sem a forma da legalidade, a livre vontade nem sequer seria capaz de suportar a falta de forma.
Só como esta instância que se outorga a lei a si própria o sujeito é realmente livre. Isso constitui, por assim dizer, o truque da constituição do sujeito: apenas pela condição da liberdade, as determinações heterónomas da legalidade convertem-se em autonomia. Apenas estando em crer que produzem ou querem eles próprios as leis ou a sua actuação no seio da forma, os sujeitos alcançam o estatuto de seres autónomos. Mas, também inversamente, a liberdade pode traduzir-se unicamente na referência à legalidade, visto que de outro modo existe a ameaça da “confusão” e do caos. É, portanto, destes dois momentos opostos que é constituída a estrutura tão autónoma como arbitrária da livre vontade.
Seria certamente errado se quiséssemos homenagear Kant como um puro teórico que, de um modo cientificamente neutro, pôs a descoberto o problema da forma pura. Uma interpretação semelhante menospreza o papel de Kant como ideólogo de imposição radical e a função da Ciência e da Filosofia em geral como base da autolegitimação da sociedade burguesa. A imunização da teoria científica alegadamente pura desenrola-se, no entanto, também a um outro nível que ainda deverá ser mais problemático. Nesse caso, as formas loucas da razão descritas por Kant são decisivamente desvalorizadas como ideias e manias puramente subjectivas. O “arrasador de tudo”, não atamancou um edifício da alucinação teórica, mas formulou a rígida jaula da forma real do sujeito. Não só Böhme/Böhme se deixam por vezes levar por essa opinião, mas também Adorno, que nesse aspecto lhes serve de referência permanente. De facto, Adorno constata acertadamente a identidade entre a legalidade e a liberdade em Kant. Mas quando se trata do conteúdo anti-emancipatório destas categorias, ele quer imputá-lo à construção puramente pessoal como representante da classe burguesa, ao fim e ao cabo para poder manter-se fiel ao Iluminismo.
“O conteúdo da sua própria liberdade – da identidade que anexa tudo que não seja idêntico – é idêntico com o dever, a lei, o domínio absoluto. É isso que inflama o pathos de Kant. Até a liberdade ele constrói como caso especial da causalidade. … A sua repulsa burguesmente acanhada pela anarquia não é menor que a sua aversão burguesmente altiva à tutela” (ND, 246).
O conteúdo da liberdade de Kant não é “construído” por ele, mas exprime a real relação de opressão no seio da sociedade da mercadoria. Mesmo que Kant designe a categoria da auto-sujeição voluntária por liberdade, tem de ficar bem assente a sua definição exclusivamente negativa. Quem tomar Kant à letra e acreditar nas suas ontologizações, segundo as quais fora da razão espreitam o caos e a anarquia esquece-se daquilo que é decisivo. O medo do desmoronamento das manifestações é sempre o produto da forma de morte autonomizada da razão. A generalidade, que Kant estabelece como ontológica, é, no entanto, historicamente específica. E o cerne do problema dessa generalidade não consiste tanto na subordinação de algo que é específico em termos de conteúdo a uma forma abstracta, mas na lógica destrutiva de uma forma de morte auto-referente. Uma crítica que se limite a invocar o conteúdo específico contra o carácter opressor da prática formal sem reflectir o problema da forma pura apenas inverte de forma negativa a tentativa de mediação de Hegel como uma relação de sujeição sem poder indicar uma perspectiva fundamental de transcendência. Para uma verdadeira emancipação – e não há dúvida que Adorno se tenha esforçado por ela – o que estaria em causa não seria querer sempre apenas impedir o pior na mediação entre a anarquia e a lei, a liberdade e a necessidade. É que isso redunda sempre numa vinculação às formas constituídas. Uma pretensão emancipatória de autonomia teria justamente de afirmar a existência de algo além da autodeterminação absoluta e da sujeição em conformidade com a lei. Em todo o caso, Kant tornou evidente, com uma abertura irresponsável o princípio destituído de sentido e mortal da constituição burguesa da subjectividade na livre vontade. Quem quiser superar estas formas, apenas pode fazer tábua rasa delas.
NOTAS
(1) A problemática descrita por Kant, expressa na separação entre a actuação empírica e a vontade determinada pela forma, deve ser absolutamente incompreensível para a ciência positivista. O senhor professor Friedrich Kambartel faculta-nos, no seu ensaio “A autonomia, contemplada com Kant”, um exemplo especialmente infeliz disso mesmo. Ali vemo-nos obrigados a ler: “O discurso da ‘vontade’ não pode evidentemente remeter para uma causa nos bastidores das ‘manifestações’ de actuação. Infelizmente também o modo de expressão de Kant indica isso com demasiada frequência” (Kambartel, 125). O modo de expressão de Kambartel indica de um modo insofismável que realmente nada se encontra nos bastidores das manifestações científicas, em todo o caso nada que ainda se assemelhe a uma réstia de compreensão da teoria de Kant.
(2) “Este Deus é as duas coisas – tanto realidade suprema como aparência. É por isso que o seu domínio é tão difícil de quebrar. Não nos livramos dele denunciando a fé respectiva – também seria necessário quebrarmos o contrato de trabalho em que se baseia o seu poder.” (Türcke, 112).
(3) Roswitha Scholz, no teorema da dissociação, pôs em destaque este aspecto central da sociedade da mercadoria. As atribuições do “feminino” constituem uma área necessária e dissociada da abstracção da forma do valor, e ainda o pressuposto silencioso da sociedade burguesa. Em Kant, esta condição “muda” da razão pode ser comprovada de um modo paradigmático para o Iluminismo.
(4) As lides académicas, a esta altura do campeonato, parecem ter-se convertido definitivamente em uma competição de imbecilidades. Não chega que o problema da forma pura seja inteiramente subestimado na sua importância, até ainda distinções tão simples como a entre a “capacidade de desejar inferior” e “superior” parecem francamente impossíveis de se conseguir (veja-se Ralf Ludwig, Kant para principiantes).
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Original alemão Die Höllenfahrt des Selbst. Von Kants Todesform des sinn-losen Willens em Revista KRISIS, nº 26, Janeiro de 2003.
Tradução de Lumir Nahodil