Sobre o congresso do comunismo em Frankfurt
Ernst Lohoff/Norbert Trenkle
São dois os motivos pelos quais textos com pretensões de crítica social podem merecer atenção: Ou pela sua qualidade analítica, ou como sintoma do estado da crítica social. O dossier tripartido publicado nas vésperas do congresso de Frankfurt sobre o comunismo, na Jungle World 43, pertence à segunda categoria. Se a tese ali defendida de que o comunismo é idêntico à democracia radical tem pertinência ou não, não é assunto com o qual valesse a pena gastar os neurónios. A razão pela qual existe gente de esquerda que, no ano de 2003, tem semelhante identidade como “óbvia”, pelo contrário, não deixa de clamar por uma explicação.
Recorde-se: A tentativa de fazer rimar o socialismo ou o comunismo com a democracia não é assim tão inédita. Os partidos da segunda internacional já mantiveram discussões nesse sentido antes da primeira guerra mundial. E seria fácil forrar as paredes de uma biblioteca com literatura dedicada ao assunto editada nos anos 1960 e 1970. Tanto a crítica das estruturas autoritárias dos países capitalistas de estado que firmavam sob o rótulo do “socialismo real” como a dos mecanismos de repressão e exploração dos países organizados segundo os preceitos da economia de mercado invocaram os princípios democráticos. Lido desde a esquerda, tal significava: Somente a associação da democracia com o socialismo ou o comunismo representaria a realização plena dos referidos princípios.
O cerne historicamente real dessa crítica consistia no facto de, com efeito, tanto no Ocidente como no Oriente, a democracia se ter encontrado implantada apenas de um modo incompleto. No entanto, a sua totalização nada tem em comum com as airosas ilusões dos adoradores da democracia de esquerda. Diga-se o que se disser, segundo o próprio termo a democracia é domínio: o domínio do povo sobre si próprio. E tal não significa outra coisa senão a auto-sujeição autónoma aos imperativos da sociedade da mercadoria, que sempre constituem um surdo pressuposto. Longe de serem opostos irreconciliáveis, o mercado total e a democracia total são logicamente idênticos. É por isso que o avanço incontestado do neoliberalismo não assinala a restrição da democracia mas, sim, a sua realização.
Historicamente poderá ser explicável que isto ainda não tenha sido tão evidente desde a perspectiva dos anos 60 e 70 e que, por isso, os processos de mudança radical que naquela altura estiveram em curso em todo o mundo tenham suscitado ilusões democráticas. Os assim chamados países do socialismo real, após terem levado a cabo a industrialização básica recuperadora, viram-se obrigados a afrouxarem parcialmente os métodos autoritários e centralistas pela introdução de elementos de mercado descentralizados. Esse processo dava azo (sobretudo no contexto da “Primavera de Praga” e do “comunismo de autogestão” jugoslavo) à esperança de que, através de uma participação democrática alargada, também poderia ser aberto o caminho para uma sociedade libertada. Ao mesmo tempo, o Ocidente, com a era das reformas sociais-democratas, também passava por um surto de modernização que, no séquito do movimento de 68, encorajava fantasias similares. Tais como a de que a extensão das práticas democráticas para além do espaço parlamentar (sobretudo à gestão partilhada nas empresas) poderia fazer recuar, ou quiçá, um dia, desaparecer a lógica do lucro.
O desenvolvimento dos últimos trinta anos desmentiu essas esperanças. Mais ainda: quase que fez troça delas. Em vez de impulsionar a emancipação, a participação democrática obrigou os herdeiros dos movimentos de protesto a aceitar incondicionalmente os constrangimentos capitalistas que se encontram à partida pressupostos aos procedimentos democráticos. Chega pensar na história dos Verdes e da sua clientela. Quem colheu os frutos do seu ataque às estruturas hierárquicas foi o neoliberalismo, sob a forma da autogestão e das “hierarquias planas”. Tal constitui tudo menos um acidente histórico, demonstrando apenas o que significa a “democracia radical”: O preciso oposto de uma regulação consciente dos assuntos sociais por indivíduos associados livremente em todo o mundo, sem os “constrangimentos objectivos” de uma forma de fetiche pressuposta.
Sem dúvida a esquerda, depois da mudança de era de 1989, defrontava-se com a tarefa de salvar a ideia da emancipação da respectiva extinção. Mas fê-lo agarrando-se à forma histórica específica que essa ideia tinha adquirido nos séculos XIX e XX. Esta forma, porém, é a do movimento de modernização capitalista, no qual o movimento operário e a esquerda desempenharam um papel essencial. Como tal, não só não merece ser salva, como não tem salvação. A ideia da emancipação apenas pode ser renovada consumando-se a ruptura com essa defunta figura. Mas isso não apenas pressupõe a despedida de uma glorificação ideológica da democracia que, pelo menos de forma implícita, afirma e legitima à partida a lógica vigente. Há também que atirar borda fora as categorias, indissociáveis desta última, do trabalho e do sujeito, que por alguma razão são outras tantas vacas sagradas da sociedade burguesa em geral, e da esquerda em especial. A emancipação não equivale ao triunfo do adorado princípio do trabalho, mas à sua abolição. E esta não deve ser pensada como o vir-a-si de algum sujeito histórico mas, pelo contrário, tem por conteúdo, tanto no plano individual como no plano colectivo, justamente a ruptura com os constrangimentos de que a identidade e o sujeito são objecto.
No entanto é precisamente destas consequências que a esmagadora maioria da esquerda foge a sete pés. A sua história após 1989 é, no seu essencial, uma história de recordações. Aquilo que ela foi no passado determina fortemente a sua consciência. Como castigo, a esquerda teve de deixar a iniciativa por conta das abordagens pós-modernas, às quais somente pouco teve a opor. É que estas empreenderam, ao menos, o passo de porem em causa as categorias da identidade e do sujeito. No entanto essa crítica permaneceu ambivalente na medida em que, por seu lado, rejeitava qualquer reflexão sobre a determinação da forma por parte do capitalismo. Embora sempre se tivesse debruçado sobre os metafísicos sujeitos de imposição da Modernidade, como a nação e a classe operária, nunca chegou a enxergar a metafísica real da sociedade da mercadoria plenamente desenvolvida. Como era cega ao problema da identidade da forma, a crítica pós-moderna da identidade confundiu, para além do mais, o estádio final da subjectividade própria da sociedade da mercadoria, o indivíduo descentrado da era pós-moderna, com a sua resolução. Isso, no entanto, não deve constituir motivo para rejeitarmos a crítica do sujeito enquanto tal. Antes, o pensamento de crítica social é chamado a fazê-la evoluir para além destas limitações.
Acontece que, no decurso dos anos noventa, muitos dos ideólogos do pós-estruturalismo e do desconstrutivismo enveredaram precisamente pelo caminho oposto. É sintomático deste facto o entusiasmo pela democracia, tal como Derrida o manifesta já desde há anos a esta parte. As construções metafísicas do povo (demos), da vontade comum etc., que ainda nos anos oitenta tinham sido oficialmente remetidos para a lixeira da História, reaparecem por toda a parte como referências positivas. Consequentemente a crítica pós-moderna da categoria do sujeito vai parar, nas estrelas da fauna respectiva, à celebração do objecto antes preferido da sua crítica. “Não culpado! para o sujeito cartesiano”, como por exemplo Slavoj Zizek preconiza já em “A traição do sujeito” (2001).
Assim explica-se que os pós-modernos e a esquerda acabem por voltar a encontrar-se. Mas assim não acontece, porventura, na comum radicalização da crítica social mas como reunificação no terreno do que foi pressuposto à partida: a sociedade da mercadoria e a democracia. E em vez de repensarem a ideia da emancipação social, agora ainda por cima reencenam nesse mesmo terreno as velhas disputas entre democratas radicais e lutadores de classes, supostamente mais radicais (e que, por seu lado, nunca renunciaram à ilusão democrática), como uma farsa à terceira potência. Oliver Marchart, no seu artigo, demonstra de um modo bastante eficaz como funciona esta grotesca encenação. Primeiro declara ultrapassados – e, como é evidente, com toda a razão – o “economismo, classismo, revolucionismo etc.”; mas não o faz a fim de deitar fora o osso roído do pensamento emancipatório de outrora, mas para apresentar o seu pouco apelativo fim alternativo como o último grito.
Se isto, por si só, não for suficiente para estragar o apetite a qualquer um, o contexto social real encarrega-se do resto. Numa cooperação meia amistosa, meia inamistosa com a oposição, o governo de Berlim apronta nestes dias o maior camartelo imaginável contra o estado-providência. Ao fazê-lo demonstra de uma forma impressionante que a democracia não só significa a integração repressiva na ordem capitalista, como também organiza e legitima a exclusão e a miserabilização no plano ideal. Ao mesmo tempo há quem se apreste a discutir, em Frankfurt, em um “Congresso sobre o comunismo”, sobre o tema “comunismo e democracia radical”; mas não se trata de saber o que comunistas poderiam responder a democratas radicais da laia de Schröder mas, sim, dos potenciais emancipatórios ingenuamente atribuídos à democracia radical. O que se pode chamar a tudo isto? Alienado? Frívolo? Em todo o caso, assombroso.
Divulgado na Internet em fins de Outubro de 2003
Publicado na Revista Streifzüge, Viena, 3 de Dezembro 2003
Tradução de Lumir Nahodil, 22.12.2003