Estes são bons tempos para os charlatães: qualquer auto-denominado especialista que afirme, sem esclarecer o conteúdo da sua afirmação, que a expansão já está à vista pode contar que o seu nome figurará nas primeiras páginas da imprensa alemã. No princípio do Verão de 2003 declarações deste tipo foram nelas agitadas aos montes. As razões da alegre notícia do próximo fim da crise é que ficam mais ou menos envoltas em nevoeiro: os números do desemprego – nisso estão de acordo todos os especialistas – não vão diminuir, os critérios do Pacto de Establilidade da União Europeia continuarão a não ser cumpridos, as caixas dos Estados não voltarão a encher-se, nem os frágeis sistemas de segurança social se tornarão, de repente, de novo financiáveis. Pelo contrário, o seu desmantelamento sucessivo, apresentado como “corte radical para permitir a sua manutenção”, é afirmado como condição incontornável para que a esperada expansão económica venha a verificar-se.
Mas, mesmo assim, a expansão não parece garantida, e por isso tem de ser provocada, pois, em última análise, metade da “economia” – e nisso também os especialistas estão de acordo – é “psicologia”. O jornal “Die Zeit”, mestre de todos os graus na disciplina de substituir a análise pela demonstração de boa vontade e pelos apelos morais, sente-se tão à-vontade no seu elemento que, com vista a concretizar as suas boas intenções, nem recua diante da subversão de todos os valores ao transformar o direito a consumir (de acordo com as capacidades económicas e de recurso ao crédito de cada um, entenda-se) em dever nacional ao serviço do Povo e da Pátria (Marc Brost, Die Zeit de 23.08.03, p. 1): “Neste momento, são sobretudo as pessoas que são responsáveis pela mudança. A sua tarefa é permitir que a economia volte a crescer”. O paradigma é, mais uma vez, “os americanos” que “mesmo durante a crise continuaram a consumir fortemente” (ainda que fosse a crédito), heróis na frente de batalha do consumo, se, para simplificar, não se tiverem em conta os 40 milhões de pessoas já caídas abaixo do limiar da pobreza. Pelo contrário, “os alemães” estão atacados pela doença da “poupança provocada pelo medo”. A missão da Política será curar as pessoas desta doença, ou reforçar a sua capacidade de se curarem a si mesmas e, veja-se bem, já se encontra no bom caminho: “é a gigantesca necessidade de recuperação dos últimos anos que pode funcionar agora como motor de arranque – se, finalmente, a Política também der o seu contributo. As pessoas precisam de ter a certeza de que a baixa das contribuições da previdência e um nível fixo de pensões de reformas no futuro não são apenas promessas, mas serão realidade. E precisam de dinheiro para de novo poderem impulsionar a economia” (referência à anunciada baixa dos impostos).
Portanto, por um lado, os alemães são acusados de ter amealhado um património gigantesco nos anos passados, que agora querem finalmente desbaratar, por outro lado, carecem absolutamente de dinheiro para o consumo. Nisto alguma coisa não bate certo. Também o aviso sobre a “baixa das contribuições para a Previdência e um nível estável das pensões de reforma no futuro” é neste contexto muito mal apresentado. Da elevação do nível entretanto alcançado seria melhor nem falar. Quem não quiser passar por um colapso material aos 65, ou em breve talvez aos 67, tem que prevenir-se desde já em privado, e isto tem custos. Do mesmo modo, o desejo de ter uns dentes completos deve de futuro ser auto-financiado, o que naturalmente não diminui, antes aumenta os encargos pessoais com a previdência.
Quando uma contribuição intelectual de nível tão baixo, argumentada contra os factos e as regras da lógica, pode hoje preencher a primeira página de um “semanário alemão de nomeada” (e não se trata aqui de modo nenhum de um descuido isolado) então podem tirar-se três conclusões: primo, a crise, pelo menos a do dinheiro, já atingiu a consciência pública, ainda que de uma forma enviesada que, secundo, não pode manter, e daí precisar de ser reinterpretada como fenómeno passageiro; e, tertio, já nem esta reinterpretação da crise funciona.
Ora, a difusão da consciência de crise, por si só, não é a chave para a mudança, nomeadamente enquanto tal consciência tiver a forma ideológica invertida que necessariamente assume enquanto a relação de capital e principalmente de concorrência capitalista for compreendida como relação natural, como a velha e ainda vigente “luta pela vida” e a “survival of the fittest” [sobrevivência do mais forte]. O sujeito da concorrência masculino e branco apenas consegue pensar a crise como derrota ou inferioridade na concorrência e daí responder com a intensificação da luta na concorrência. Num sistema que, no seu todo, entra progressivamente em queda livre, o único critério de êxito dos seus actores é manter uma velocidade de queda menor que a dos concorrentes. O que já passa por subida e até faz sentido, de acordo com os critérios imanentes ao sistema.
Por isso não é por acaso que nas alegadas tentativas de entender os fenómenos de crise se goste de usar como metáfora o desporto de competição. Por fim, chega-se também ao ponto em que não basta simplesmente ser bom, mas é preciso ser melhor que os outros. “Os desportistas de competição estão tão cansados como a sociedade” (Hans-Bruno Kammertöns, ZEIT de 04.09.2003, p. 1), assim era referido o campeonato do mundo de atletismo deste ano, onde a Alemanha apenas obteve o sexto lugar, ou seja, uma posição medíocre.
O que é válido para o indivíduo isolado aplica-se, em primeiro lugar, ao sujeito colectivo, à empresa capitalista, como à “Alemanha, S. A.”. Não é a liquidação do sistema de segurança social que é considerada um escândalo, mas o facto de “nós” já não sermos “campeões do mundo” em nenhuma modalidade. Assim, é preciso aumentar o rendimento, o out-put, a produtividade. “Os alemães têm que voltar a trabalhar mais”. Embora esta exigência – hoje comum a todos os partidos políticos -, tendo em conta o elevado desemprego e a duplicação da produtividade dele decorrente em menos de treze anos, pareça, à primeira vista, absurda, ela é completamente racional do ponto de vista da concorrência local e, nesse sentido, não tem alternativa política. E, na realidade, ela já se implantou amplamente “de modo natural”: na maior parte dos sectores, mesmo a semana das 40 horas ficou no papel. Naturalmente, o ideal era que a produtividade de um país com uma indústria altamente tecnológica pudesse ser conjugada com as relações de trabalho dos países do terceiro mundo. Aí seríamos “nós” de facto imbatíveis.
Infelizmente, a estratégia de desenvolvimento assim desenhada só tem um pequeno defeito: como é sabido, a concorrência não dorme, e premissas iguais conduzem a conclusões iguais, e, no final, estamos todos na mesma, só que em condições mais degradadas para todos (e também para a própria valorização do capital), e o próximo “round” pode começar. Esta estrutura lógica de actores que procuram todos a sua própria vantagem, o que, no quadro das regras do jogo em vigor, se torna em desvantagem para todos – precisamente o contrário da “mão invisível” de Adam Smith – é conhecida nos meios académicos das ciências económicas e sociais como “dilema das n pessoas prisioneiras”. Ele apenas não deve ser aplicado, por amor de Deus, à “bela máquina” do mercado mundial.
A luta contra a crise do sistema produtor de mercadorias consiste hoje essencialmente na luta contra as suas vítimas, os que foram expulsos da reprodução social sob a forma de mercadorias, e que, confundindo de forma mais ou menos consciente as causas com os efeitos, têm de ser marcados como os verdadeiros responsáveis por isso. Quase não passa um dia sem que um jornal sensacionalista não acuse e desmascare publicamente um beneficiário da segurança social do crime de levar uma vida “luxuosa”. Autênticos exércitos de jornalistas parecem assegurar assim o seu posto de trabalho. Entretanto, nos Centros de Emprego vigora como critério de êxito já não o número das pessoas ocupadas (os resultados seriam demasiado decepcionantes), mas as poupanças conseguidas, através de múltiplos truques, na recusa de prestações financeiras da segurança social. Quem não faz da procura de um novo trabalho um emprego a tempo inteiro, demonstrando-o com a correspondente resposta, sem sentido, a anúncios de emprego, recebe menos dinheiro. Um pecado mortal consiste em recusar uma proposta de emprego, por muito que ele seja indesejável. O mesmo se aplica a beneficiários da assistência social, pois é sabido que tratar igualmente os desempregados e os beneficiários de assistência cria um potencial de racionalização.
A luta contra os expulsos do mercado mundial e excluídos da sociedade burguesa assume formas cada vez mais violentas, não apenas na periferia, nas guerras civis, de saque e da ordem mundial, mas também nos centros do Capitalismo, embora aí ainda maioritariamente encoberta nas zonas menos acessíveis à opinião pública democrática, como é o caso das “zonas extraterritoriais” criadas para os “ilegais”. (Vd. Forma do Direito e “Vida nua” neste número da Revista). Evidentemente, não se fala de “vida sem valor”, no entanto ocasionalmente já tratada como tal, mas a expressão “escumalha humana” passou entretanto a fazer parte da linguagem admitida. Foi certamente por acaso que nas cadeias de Hamburgo foram entretanto retiradas por acto administrativo as máquinas automáticas onde os toxicodependentes podiam trocar as seringas, com o argumento de que o Estado não deve fomentar o consumo ilegal de drogas. Naturalmente, todos sabem agora que com tal medida não diminui o consumo de droga, mas sem dúvida vai aumentar a utilização partilhada de seringas, com a consequente propagação acelerada de doenças como a SIDA e a hepatite. Pode-se especular sobre se com esta medida a correlativa redução da esperança de vida dos presos toxicodependentes é apenas uma consequência dada de barato ou se não é o seu verdadeiro objectivo.
Já não é preciso fazer tabú sobre onde se vai poupar, como até o presidente da União da Juventude sabe, ao não querer compreender porque é que uma pessoa de 85 anos há-de colocar uma prótese de anca artificial, pois afinal as pessoas, dantes, com muletas também andavam. O grito de espanto perante esta expressão não nos deve impedir de ver que aflora aqui um discurso instalado, cuja previsível evolução, quando a percentagem de idosos cresce cada vez mais e a sua situação marginal, em termos financeiros, não para de se degradar, será: não se ficar pelos idosos de 85 anos – afinal o mesmíssimo argumento é também aplicável aos septuagenários – nem se ficar pelas próteses de anca. Já hoje muitas urgências hospitalares estão tão mal equipadas que os médicos nada mais podem fazer que “estabelecer prioridades” e naturalmente ficariam gratos se para isso houvesse critérios socialmente sancionados.
Afinal, teremos todos que ser sacrificados pela saúde da “nossa” economia nacional. De futuro, um cidadão honesto trabalhará até aos 67 anos e com sorte morrerá aos 68. Bela perspectiva.
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Perante a crise da sociedade do trabalho, a lógica económica cai numa lógica de selecção e tratamento de lixo. Como já foi esclarecido, seria muito simplista atribuir esta evolução apenas ao facto de a racionalidade empresarial ter sido elevada a único critério em todos os subsistemas sociais. Pelo contrário, a eliminação e o aniquilamento fazem parte do fundamento sobre a qual se ergueu a orgulhosa construção global do direito, da razão ocidental e da subjectividade da mercadoria.
No seu artigo A Ordem da Força e a Lógica de Aniquilamento Ernst Lohoff analisa o papel da violência e da guerra na formação e desenvolvimento da moderna forma de sujeito. A partir duma exemplar discussão na história do pensamento com Hobbes, Hegel e Freud, apresenta a tese de que a subjectividade do valor se constituiu em torno de um núcleo de violência. A ascensão sangrenta dos grandes Estados como sujeitos colectivos, cuja lógica militarista Lohoff esclarece mais detalhadamente, e a imposição a ela ligada do monopólio estatal da força, implantou e limitou este núcleo de violência. O seu desencadeamento é uma ameaça concomitante, em muitas regiões do mundo, com a dissolução dos Estados regulares e o desaparecimento do ethos da sociedade civil. Neste processo, é o próprio Leviathan que desempenha o papel decisivo. Com este pano de fundo, parte do artigo trata da luta fatal entre o polícia mundial e os novos protagonistas da violência post-estatal como a Al Kaeda.
A partir do núcleo de violência da constituição do político, o artigo de Karl-Heins Wedel, nacktes Leben [vida nua], visa tornar útil o conceito de “Homo sacer” de Giorgio Agamben para uma perspectiva de crítica do valor. Este núcleo, encoberto nas formas jurídicas nas situações de normalidade, torna-se crescentemente visível na crise como estado de excepção e é executado contra os “sem papéis”. O seu paradigma é o campo de concentração, a redução do indivíduo a vida aniquilável.
São as formas horrendas de manifestação dos valores ocidentais, agora novamente apregoados, o ideal do Iluminismo, e não a sua negação, que agora culminam na crise. O tema dos últimos dois números da Krisis foi precisamente a demonstração desta relação. Com os seus dois artigos, Razão sangrenta (n.º 25) e Ontologia Negativa (nº 26), Robert Kurz desbravou terra virgem teórica e, como não podia deixar de ser, desencadeou controvérsias internas. Especialmente a sua referência a “todo o lixo intelectual do Ocidente” (n.º 25, p. 66), em muitos debates retirada do seu contexto, não ficou sem resposta (cfr. Anselm Jappe, Uma questão de ponto de vista, n.º 26). No seu artigo Tabula rasa, Robert Kurz retoma esta discussão e – mantendo a metáfora – elabora critérios para a “triagem do lixo”, ao distinguir entre o objecto (a eliminar) da crítica negativa e os artefactos históricos que podem subsistir para além da sociedade das mercadorias, tal como a arte do fabrico da cerveja não desapareceu com a sociedade mesoptâmica em que surgiu. O texto foi elaborado de forma a poder ser lido mesmo sem a leitura do artigo anterior de que é desenvolvimento.
A parte de comentários começa com o pequeno texto Estado e passadores de fronteiras de Franz Schandler, que analisa as condições da actividade de apoio aos migrantes e analisa à lupa criticamente as razões do geral repúdio dessa actividade.
Igualmente Franz Schandler, no artigo Continuidade e singularidade, faz a recensão do livro de Enzo Traverso, aparecido em língua alemã, Modernidade e violência
– uma genealogia europeia do terror Nazi, que caracteriza Auschwitz como um autêntico produto da civilização ocidental, baseando a sua tese em material histórico.
A difusão dos textos da Krisis, em especial do Manifesto contra o Trabalho, traduzido em oito línguas, mas também diversas antologias traduzidas para outras línguas, conduziram felizmente a debates controversos também nesses países. Documentamos aqui exemplificativamente quatro críticas ao Manifesto contra o Trabalho, que são representativas de argumentos e acusações recorrentes: “Observações sobre o Manifesto contra o Trabalho” de Jaime Semprun (Paris); “A montanha pariu um rato” de Charles Reeve (Paris); “Observações sobre o Manifesto contra o Trabalho” de Luca Santini (Roma), bem como o pósfacio à edição franco-canadiana do Manifesto contra o Trabalho, Éditions Rouge et Noir (Québec). Está prevista para o próximo número uma réplica da nossa parte.
Não podemos omitir aqui a referência a novas publicações do nosso quadrante. Em primeiro lugar, a brochura Scharfe Schafe – Geschorenes zum antideutschen Bellizismus, cuja publicação consideramos necessária em virtude da difusão intolerável da ideologia sectária “anti-alemã” nos meios e na imprensa de esquerda. O livro inclui contributos de Norbert Trenkle, Micha Böhme, Martin Dornis, Kenneth Plasa, Robert Kurz, Franz Schandl, Ernst Lohoff e outros e documenta ainda a polémica contra o congresso “Jogos sem Fronteiras” de Maio de 2003. As modalidades de encomenda encontram-se referenciadas no anúncio da última página da revista.
Uma discussão aprofundada dos fundamentos e pressupostos teóricos da ideologia anti-alemã, que já não coube na brochura, foi desenvolvida por Robert Kurz no livro A Ideologia anti-alemã, editado pela editora Unrast (Münster), publicado em Outubro (326 páginas, 16 euros).
Por fim, foi finalmente publicado neste Outono a versão alemã do livro de Moishe Postone, Time , labor and social domination (Tempo, trabalho e dominação social), em cuja tradução a Krisis colaborou intensivamente nos últimos três anos (Petra Haarmann, Wolfgang Kukulies, Norbert Trenkle e Hanns von Boose). O livro foi editado pela editora ça ira de Freiburg, tem 600 páginas e custa 34 euros. Nos próximos números debateremos largamente esta importante obra de fundamentação teórica.
Claus Peter Ortlieb (pela redacção)
Setembro de 2003 www.krisis.org.
Tradução de José Paulo Vaz / Boaventura Antunes