Sobre a apropriação capitalista do genoma humano
O facto, porém, de Deus não ter registado nenhuma patente, naqueles dias, ainda lhe sairá caro, uma vez que a sua imagem se encontra em perigo. — Erwin Chargaff
Birgit Niemann
“Em lado algum, na Biologia, encontrei algo que se assemelhasse à dignidade do Homem.” Foi desta forma taxativa que o biomatemático Jens Reich iniciou a sua palestra no simpósio “Medicina reprodutiva na Alemanha” (1), com o qual a ministra verde da altura, Andrea Fischer, em Maio de 2000, trouxe para a praça pública a discussão sobre a protecção de embriões humanos que já há algum tempo decorria entre diversos agrupamentos de interesses. Para que a frase citada adquira validade geral, ela tem de ser precisada. Deste modo passa a rezar: Os processos de vida organizados pelo “genoma” são isentos de categorias morais e éticas como “a dignidade do Homem”. Acrescentemos aqui o que nem Jens Reich, nem outra pessoa qualquer mencionou no fórum referido: Os processos de vida organizados pelo “capital” são igualmente isentos de categorias morais e éticas como “a dignidade do Homem”. Acontece que o capital dos nossos dias organiza quase a totalidade da reprodução individual e social. Entre as poucas coisas que ainda não arrebatou à autodeterminação humana conta-se a reprodução biológica do Homem.
A reunião extracorporal de óvulos e sémen humano tomou forma humana, pela primeira vez, no ano de 1978 em Inglaterra, com o nascimento de Louisa Brown. No séquito desse feito, a aplicação ao Homem da técnica biológica de produção de embriões de mamíferos isolados, desenvolvida nos anos anteriores, tornou-se socialmente aceitável. Com a Lei de Protecção dos Embriões, de 1990, foi proibida na Alemanha sob pena de sanções penais a utilização de embriões humanos para outra coisa senão o seu propósito biológico e social primário, que é a geração de crianças individuais, vinculadas a pais individuais (2). No entanto, a técnica de base cientifico-natural, que avança a um passo cada vez mais estonteante, nos últimos anos teve por consequência que i) tenham sido vencidos novos obstáculos à fusão extracorporal de óvulos com esperma (ICSI), ii) também o genoma extraído de células corporais vulgares se tenha tornado utilizável para a produção de embriões (método Dolly), iii) pareça fazer sentido que as células embrionárias, antes da sua implantação num útero, sejam examinadas com vista à detecção de eventuais defeitos genéticos (PID), iv) se abram novos campos de aplicação para as células não diferenciadas na medicina dos transplantes (clonagem terapêutica e investigação das células estaminais), v) passos genéticos fundamentais do estabelecimento de padrões durante o desenvolvimento dos embriões se tenham tornado compreensíveis e, assim, manipuláveis (genes HOX) e vi) a sequência do plano de construção humano tenha sido decifrada por completo (projecto genoma humano). Em síntese, assistimos à escalada da contradição entre o tecnicamente exequível e o etica, moral e juridicamente permitido, o que empurra a sociedade para a alteração da moral, da ética e das leis.
Consequentemente a sociedade social (*) reflecte de um modo crescente os problemas jurídicos, morais e éticos que resultam da referida contradição. Quase todas as reflexões são do tipo seguinte: “O que pode e deve o Homem fazer consigo próprio e com os seus semelhantes?” e “Quais são as implicações da resposta à primeira questão colocada para o Homem e a sua sociedade?” As concepções e as questões em aberto são articuladas inteiramente no seio da esfera das relações sociais que afinal, no essencial, são reguladas por códigos comportamentais fixados de formas etico-morais, religiosas, políticas e jurídicas. Também as conexões económicas que tocam nestas questões manifestam se predominantemente no contexto de uma regulabilidade ética, política e jurídica.
Quais são as questões escaldantes?
A partir de que altura deve um embrião ser encarado como um ser humano? Um embrião é mesmo um embrião quando o seu genoma é proveniente de uma célula corporal? Podem as células indiferenciadas, que ainda possuem o potencial da realização de um ser humano completo de uma forma por nada restringida, ser utilizadas para a construção de peças sobressalentes biológicas para pessoas velhas e doentes? É lícito recusar a seres humanos a cura com base em métodos que destroem seres humanos em vias de formação? Será que o embrião, na qualidade de armazém de peças sobressalentes humanas, é “transformado em matéria-prima”? Será que um embrião criado por terceiros de forma extracorporal tem outros direitos que um embrião gerado intracorporalmente de forma tradicional, por força do afecto ou da violência? O que distingue o diagnóstico pré-implantacional do diagnóstico pré-natal e a rejeição de embriões extracorporais do aborto? Sobretudo, que direitos pode ter um embrião rejeitado? Será que à procura de desvios genéticos se segue de forma inexorável a selecção biológica do Homem pelo Homem? A quem deverá assistir o poder de decisão sobre o filtro de selecção? Que seres humanos potenciais deverão ser as suas vítimas? Criar-se-á uma pressão social que apenas admita um direito à vida a “seres humanos perfeitos”? Quem ou o quê pode, afinal, ser um “ser humano perfeito”? Tirar-se-á a vida aos potenciais “seres humanos imperfeitos” já na fase embrionária? Como será vivenciada, de futuro, a deficiência “adquirida”? Será aqui tornado aceitável, a nível celular, o que um Josef Mengele, em Auschwitz, já uma vez exerceu de um modo perfeitamente desenfreado em adultos e crianças, tendo, com isso, chocado a Humanidade restante? Será que esse choque já pertence à História? Como se altera a imagem que a nossa sociedade tem do Homem, e quais são as consequências práticas para a forma de se lidar com seres humanos na prática? A evitação prática de seres humanos nascidos com deficiências transformar-se-á de uma decisão livre em um constrangimento objectivo social e económico? Devem as pessoas humanas poder planificar as qualidades dos seus filhos? Estará ao alcance a vida eterna dos indivíduos? Devem as pessoas saber o seu destino provável em termos de saúde já de forma precoce, para os efeitos de uma possível profilaxia? Sobretudo como devem lidar com esse conhecimento profético, e quem faz o quê com tal conhecimento? Será lícito a companhias de seguros e entidades empregadoras a exigência de testes genéticos para, em conformidade com os seus resultados, calcularem preços e alargarem critérios de exclusão? Será se evitar esta última eventualidade se a primeira for admitida? Serão genes e seres vivos invenções humanas passíveis de serem registadas como patentes? Em que medida será lícito ao estado a recolha de impressões digitais genéticas para a identificação de criminosos? Deverão as caixas de saúde reduzir os seus custos com recurso a testes genéticos efectuados em massa? Deverá ser lícito a casais homossexuais que misturem filhos a partir dos seus genomas de sexo igual? O que significa para mulheres e progenitores a disponibilização dos seus filhos embrionários para os efeitos da valorização científica e económica? De onde deverão vir os óvulos para tal necessários? Quem disponibiliza o útero para que tipo de experiências? Por quanto tempo ainda serão necessários ao desenvolvimento embrionário tanto os óvulos como o útero? O que acontecerá quando deixarem de ser necessários?
São estas ou semelhantes as questões que são esboçadas por representantes individuais de diversos grupos de interesses sociais e económicos. Ao invés, nem o genoma tratado cientificamente, nem o capital que em grande medida financia este trabalho, colocam quaisquer limites à valorização do embrião. Apenas uma sociedade social possui de todo, no âmbito dos seus processos de reflexão, a potência de alcançar um acordo sobre regras de comportamento comummente aceites a fim de estabelecer limites que possam ser vertidos na forma de leis ou servir de linha de prumo para a aplicação da riqueza social democraticamente disponível. Mas, como poucos temas alguma vez o fizeram, as questões em torno da valorização do embrião e da sua selecção genética baralham os portadores públicos de padrões políticos de reflexão até à data minimamente transparentes. Andrea Fischer, com a sua limitação total da “fertilização in vitro” à finalidade biológica e social da procriação e com a sua rejeição da selecção por intermédio do diagnóstico pré-implantacional (PID), encontrou-se lado a lado com o papa, a antiga ministra da justiça da RFA, Hertha Däubler-Gmehlin, o CSU (a) e Ilja Seifert, porta-voz dos deficientes do PDS . A ministra da ciência, Buhlmann, e o presidente da DFG (c), Winnacker, mudaram-se, de há um ano a esta parte, também oficialmente para o lado dos valorizadores dos embriões. Conservadores e amigos do progresso, homens de igreja, filósofos, cientistas, juristas, políticos e éticos: todos eles encontram-se de ambos os lados da linha divisória. Mas por onde passa ao certo essa linha divisória e quem a quer abolir por que motivos são questões que por vezes se perdem de vista na confusão das questões de pormenor. Quase nunca, contudo, alguém pergunta pela relevância que todos estes debates têm, sobretudo para a evolução real da sociedade.
No entanto, o ruído das discussões sobre a novel valorização de embriões produzidos com os meios da biotecnologia degenera num ruído de fundo se tomarmos como verdadeira a seguinte tese de Franz Schandl: “O direito (na forma tanto da legislação como da aplicação da mesma) já não consegue acompanhar esta passada do desenvolvimento da sociedade. Não só é incapaz de qualquer criatividade (o que, em princípio, sempre foi), como, em crescente medida, é incapaz de administrar. Se antes seguia os desenvolvimentos a par e passo, agora vê-se remetido a outras distâncias, sendo literalmente deixado para trás. Por muito que se esforcem os seus protagonistas na política, na burocracia e na ciência, ele nunca mais conseguirá alcançar o pelotão da frente.”(3)
Já durante uma audição preparatória da Lei de Protecção dos Embriões, em Fevereiro de 1990, esse dilema esteve presente nas mentes de vários participantes. “A investigação desenvolve-se a um ritmo tão rápido que já neste momento o projecto de lei não passa de letra morta”(4) foi um dos comentários vindos da assistência. A superficialidade de muita da reflexão contemporânea do dilema como “negligências que agora nos apanham, [conduzindo] já ao fim de dez anos à revisão de uma lei que em tempos se pretendia o primeiro passo para um direito sanitário e que acabou em um puro direito penal”(4) não deixa, por isso, de ter algo de surpreendente no que diz respeito à autodecepção antiquada que lhe é inerente. Desenvolvimentos económicos abertos com meios científicos, que mais depressa dão por resolvidas as questões escaldantes de campos de problemas sociais por eles próprios produzidos, do que a sociedade a que dizem respeito consegue em geral percepcioná-los, compreendê-los e discuti-los, escapam definitivamente a uma condução democrática, para já não falar em controlo. Estamos perante uma simples e facilmente compreensível diferença de velocidade. As negligências, no sentido de factos e concatenações reconhecíveis, mas não reconhecidos, já nem podem existir neste tipo de questões. Se, apesar de tudo, existirem adicionalmente ao dilema esboçado, aceleram o desenvolvimento que de qualquer modo se verifica, o que afecta, no melhor dos casos, a situação concorrencial cientifico-económica desta ou daquela localização nacional. A Lei de Protecção dos Embriões de 1990 nem poderia ter feito mais que proibir pura e simplesmente o abuso imediatamente reconhecível de embriões extracorporais. Também é mais admirável que digno de crítica o facto de se ter conseguido de todo fixar na lei o ponto essencial, de uma forma juridicamente insofismável e isenta de rodeios, como o “regulamento mais restritivo de todo o mundo”. Como ponto essencial, porém, pode unicamente ser identificada a vinculação jurídica sem quaisquer excepções do embrião humano produzido de forma extracorporal à respectiva mãe individual e a ameaça de penalizações para o caso do seu aproveitamento indevido, científico e económico, por terceiros. Actualmente é precisamente a revisão desta vinculação jurídica sem quaisquer excepções do embrião à respectiva mãe, como desvantagem a remover da Alemanha enquanto localização científica e biotecnológica, que é forçada pelo chanceler Schröder. Não foi, por isso, por acaso que os debates culminaram em torno da aceitabilidade social da inspecção genética dos embriões anteriormente à respectiva implantação num útero (selecção pela via do diagnóstico pré-implantacional) e do aproveitamento de embriões supranumerários por parte de terceiros para os fins da medicina dos transplantes (clonagem terapêutica e investigação das células estaminais). É que ambas estas técnicas constituem pressupostos indispensáveis da implantação de um novel mercado da saúde, há muito estabelecido, e da expansão do entendimento científico da evolução embrionária com a finalidade do domínio biotecnológico.
A tentativa de Andrea Fischer, tão ingénua como corajosa, de estender juridicamente o vínculo pessoal entre o embrião extracorporal e a respectiva mãe a novas células e técnicas tornadas aproveitáveis pela ciência, e de proibir a selecção por intermédio da PID, foi sem dúvida tão respeitável como impossível de vingar. A sua repentina queda como ministra, justificada de forma risível pela loucura das vacas devida a causas económicas, com a sua força simbólica irradiou sobre o Rubicão há muito transposto (**) de um novo tipo de valorização do hardware biológico do Homem. É que, se não se verificar a legalização socialmente sancionada da investigação gastadora de embriões na Alemanha, de dia para dia deverá tornar-se mais visível a realidade generalizada por Franz Schandl: “A normalidade e a legalidade afastam-se cada vez mais uma da outra, sendo cada vez mais difícil estabelecer pontos de congruência entre ambas. A realidade não só diverge, tal como o ser do dever, como tende para se totalizar para além deles.”(3)
Na declaração de princípios da DFG (5) do ano de 2001, fresca como o mês de Maio, o respectivo presidente Winnacker também emprestou inequívoca e publicamente a sua voz a este desenvolvimento. A dissecação de embriões na Alemanha pode ainda ser adiada porque, para já, as culturas de células podem ser adquiridas legalmente no estrangeiro. Ao fim de cinco anos, porém, o parlamento federal alemão deveria adoptar nova deliberação sobre a Lei de Protecção dos Embriões, baseando-se no futuro estado da ciência. Ao mesmo tempo que Ulrike Riedel, no Verão de 2000, anteriormente ao seu súbito despedimento do seu posto de directora de secção no ministério federal da saúde, ainda reclamava, no jornal dos médicos, a abertura de uma ampla discussão no seio da sociedade alemã (6), a comissão de inquérito do parlamento federal alemão “Direito e ética na medicina” falhava a resolução de graves contradições éticas e a proclamação de Iserlohn em prol de uma ética de futuro instava a sociedade a passar à autodefesa (7), o chanceler fundava o seu conselho nacional de ética, e a caravana da ciência desbravadora de mercados prosseguia impávida a sua marcha, secundada pelo requerimento de importação de células estaminais apresentado pelo neurobiólogo Oliver Brüstle e pelo anúncio do êxito da produção de clones de embriões humanos a partir de núcleos de células dérmicas e foliculares por parte da empresa americana Advanced Cell Technology, de Novembro de 2001. No entretanto, a Lei de Protecção dos Embriões convertia-se numa farsa, e a Lei de Importação de Células Estaminais, de Abril de 2002, com um olhar de soslaio para Bruxelas, na própria hora da nascença promete expirar em breve o seu espírito já antiquado antes da respectiva redacção. Assim também se revela a realidade social da 13ª tese schandliana: “Caminhamos para a sociedade sem direito. As nossas habilidades empurram-nos nesse sentido. Os pilares da sociedade vão escapando ás suas leis.” (3)
Deixemos, pois, de parte os discursos sobre a sociedade que se defende a si própria e enfrentemos a questão: Para onde tende esta sociedade fundamentada no cumprimento económico dos fins-em-si de capitais individuais concorrentes, se a realidade experimental da valorização de embriões tende a suplantar a legalidade social no seu todo e esses pilares da sociedade vão escapando às leis?
Sobre as origens da valorização do Homem biológico
O aproveitamento mais velho e directo do hardware humano consiste, sem dúvida, no canibalismo. Vestígios do uso de raspadores em ossos humanos pré-históricos (8), proteínas musculares humanas nos tachos e excrementos dos Anasazis (9), a doença Kuru-Kuru dos Fore da Nova Guiné, a história da Ilha da Páscoa e, igualmente, as guerras das flores dos Aztecas (10) seguidas do festim sacrificial comprovam a sua existência. Não pode ser excluído que a carne humana tenha também vindo parar ao mercado, em uma ocasião ou outra, mas em lado algum tal atitude vingou como prática corrente. O canibalismo directo permaneceu circunscrito a situações excepcionais individuais e sociais. Nos lugares onde ocorria com alguma frequência, esteve sujeito aos severos regulamentos de uma acção de culto.
A única parte material do Homem que, já na Antiguidade, era comercializada por causa das suas qualidades intrínsecas é o leite humano. No mercado das hortaliças romano encontrava-se um lugar chamado “lactaria”, onde mães neófitas ofereciam para venda o seu leite, incluindo a actividade do aleitamento, na sua embalagem natural. Com base em textos de contratos conservados, as notícias desta prática remontam até ao Egipto helénico (11). Até ao momento em que gigantes industriais como a Nestlé ou a Milupa se apoderaram deste mercado com produtos substitutos do leite materno, este tipo de comércio prolongou-se até à Modernidade (sob a forma da instituição das amas).
A mão-de-obra humana, na mercadoria antiga constituída pelo escravo, ainda se encontrava firmemente colada ao respectivo hardware biológico individual. Por isso, os mercados de escravos constituem, em termos históricos, os primeiros mercados de mão-de-obra, onde o Homem biológico completo, como anexo e fundamento indissociável do seu potencial de realização psicossocial, foi levado ao mercado como uma propriedade privada que serve de suporte à sociedade. O escravo comercializado no mercado interior, porém, já representa uma fase tardia e altamente desenvolvida da diferenciação social das sociedades da Antiguidade clássica que, todas sem excepção, se notabilizaram por uma violação progressiva do princípio da reciprocidade (paridade relativa das obrigações de realização de indivíduos que se reproduzem em situação de dependência mútua) que os membros de sociedades primordiais observaram entre si de forma espontânea.
Significativamente não se encontrou, na História humana, nem uma única sociedade diferenciada que, pela ideia de uma categoria ética geral como a “dignidade do Homem”, se tivesse impedido a si própria de uma forma ético-jurídica de proceder à expropriação parcialmente colectiva ou privativa da realização humana acrescentada. Ao menos não o fez enquanto a capacidade de realização humana não era passível de ser valorizada de um modo separado do Homem no seu todo e determinado por outrem. Apenas em sociedades cuja coesão social interna se viu seriamente ameaçada pela dinâmica própria da disseminação da escravatura privada por dívidas, como por exemplo na Atenas de Sólon, cerca de 594 antes da nossa era, a sociedade salvou-se pela proibição jurídica da escravização mútua de membros da sociedade historicamente provenientes das mesmas tribos com base em um endividamento excessivo.(12) Assim sendo, a necessária angariação de mão-de-obra de tais sociedades esclavagistas era concentrada na espoliação bélica de sociedades alheias que, com as guerras do príncipe grego dos macedónios, Alexandre, e da Roma antiga, ascendeu a dimensões imperiais.(13) O sobre-trabalho produtivo expropriado dos escravos assim caçados, por seu lado, não tardou a transformar-se, nas cabeças dos seus beneficiários gregos primordiais, em um espírito dado à reflexão(14), o qual de imediato se dissociou, sob a forma do logos, do pensamento humano que até à data tinha sido integral. Esta racionalidade fria e abstractamente lógica dispôs-se, nos milénios subsequentes, a dominar igualmente qualquer outro espírito. Ao fazê-lo, por muito tempo perdeu de vista o Homem biológico; porém, até hoje não a conseguiu apagar a sua origem em actos de expropriação.
A generalização da “dignidade do Homem”
Mil anos após a derrocada do último império da Antiguidade, de Roma que desenvolvera a forma da reprodução social por intermédio da expropriação de trabalho escravo até alcançar os seus limites absolutos, essa forma tinha ficado superada. As sociedades europeias, crescidas sobre os escombros românicos, no século XVI transitaram para a reprodução social através da produção de mercadorias com recurso ao trabalho abstracto. Para esse fim, a força de trabalho valorizável já não tinha de ser extraída, à força, de outras sociedades, sob a forma de despojos de guerra humanos escravizados, passando a ser oferecida no mercado por membros da sociedade libertos de meios de subsistência e dependências pessoais forçadas e vendida sob contrato como mercadoria aos proprietários dos meios de produção dessa mesma sociedade. O sobre-trabalho dos vendedores de força de trabalho, ora canalizado no seio do processo da produção de mercadorias, foi parar de forma automática, e miraculosamente sem ferir a paridade social dos livres parceiros contratuais, às mãos de quem aproveita a força do trabalho (visto ser comprador) que, no mercado, não tardou a transformá-la em capital(15). O emprego do capital para o fim da transformação de mais trabalho abstracto através da produção de mercadorias em ainda mais capital constitui o ciclo de reacoplamento que, sob a forma da valorização do valor, realizada por capitais individuais concorrentes, revolucionou nos séculos subsequentes por várias vezes a produção e a sociedade(15,16).
A guerra, já altamente cultivada pelas sociedades da Antiguidade como estratégia de recrutamento de escravos e de expansão socio-económica, assim perdeu em grande medida a sua função específica do arrebanhamento de mão-de-obra, mas foi sem demora integrada pelo capital, com a sua racionalidade e dinâmica típica, nas suas próprias estratégias de apropriação de recursos e de concorrência. Como resultado, em apenas quinhentos anos, desapareceram em todo o globo terrestre quase todas as formas anteriores de comunidades de reprodução humanas(17), sobre cujos cadáveres e recursos acabou por medrar o Commonwealth britânico e o seu produto de dissociação chamado EUA. Entre os concorrentes deixados para trás, na região de proveniência do capital, na Europa, porém, as guerras de espoliação avolumaram-se em guerras mundiais.
Também no decurso da história de imposição interna da dinâmica de valorização capitalista face a formas sociais de vida e dominação acelerou-se a velocidade da expropriação dos seres humanos dos seus meios de subsistência15. Sob a forma das exigências no sentido da abolição da falta de liberdade pessoal, este processo também se reflectiu no plano teórico, no Iluminismo burguês e liberal. Os seus protagonistas revoltaram-se, com o sangue dos estados sociais desapossados e proletários, em prol do estabelecimento de direitos iguais para todos e inscreveram o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” nos seus estandartes políticos. Foi, portanto, apenas a acumulação de capital através da produção de mercadorias, à qual era indispensável a força de trabalho do Homem como mercadoria, que tornou a sociedade social madura para a proclamação de direitos humanos universais, sob o mote de uma “dignidade do Homem” geral.
Tal como Robert Kurz reconstitui em termos históricos, no “Livro Negro do Capitalismo”, os potenciais de rendimento humanos não foram transformados em trabalho abstracto de uma vez, mas de forma particularizada e gradual. Tudo começou com o trabalho manual produtivo (manufactura) e prolongou-se sob a forma do trabalho intelectual logístico (organização do trabalho, transporte e administração). Nos tempos modernos e pós-modernos, porém, para além dos bens materiais, foram e são produzidos sob a forma da mercadoria, como serviços, todos os resultados da actividade humana. Mesmo a força criadora criativa e artística é canalizada para a publicidade, onde intensifica o combate concorrencial dos capitais individuais pelo recurso central destes, que são os compradores. Com a formação das indústrias do turismo, do desporto, dos tempos livres, da moda, do entretenimento, dos media, das artes e da instrução, entretanto também todas as necessidades humanas do foro psico-social estranhas à produção e que em tempos reproduziam o mundo social fora da esfera do capital e da economia tornaram-se passíveis de serem servidas sob a forma da mercadoria e um solo fértil para a valorização. Tal como Kurz o formula acertadamente no seu Livro Negro, deste modo encontram-se “perpassadas pelo capital” todas as actividades vitais humanas do foro psico-social, e levas de acumulação devidas à ocupação de novas áreas psico-sociais de actividade humana já não são de esperar. Como última “terra incognita” restou ao capital unicamente a redescoberta moderna do Homem biológico, cuja integralidade física viva até à data se tinha oposto à sua desmontagem em peças soltas passíveis de uma valorização parcial no tempo e no espaço.
O necessário entendimento pelo mundo acessível à capacidade de realização humana, porém, foi fornecido ao capital, desde o início, pela ratio abstracta que, pela virtualização sistemática do mundo real, havia muito que se tinha elevado a ciência. Pela recondução do saber recombinado no plano ideal em inventos técnicos e materiais, esta deu origem a ramos de produção inteiramente novos e também elabora para o capital o cada vez mais indispensável saber referente à respectiva racionalização. Tal como o prova, no passado mais recente, o nascimento da indústria química e, na actualidade, a sua fusão com a produção farmacêutica e alimentar na moderna life science industry pela mão de inúmeras empresas recentes fundadas por cientistas, a ciência, em todo o lado onde extravasa os seus limites académicos, transforma-se de um modo tudo menos velado em capital.
A valorização moderna do hardware biológico do Homem
A dissolução do Homem biológico organizada pelo capital ocupou-se, para já, dos componentes materiais que ainda se destinavam à respectiva interiorização por parte do Homem. Tudo começou há cerca de cento e cinquenta anos, quando partes da indústria química se especializaram para constituir uma indústria farmacêutica que, com a produção de substâncias e misturas de substâncias farmacologicamente activas, varreu do mercado os fornecedores individuais de produtos medicinais (farmacêuticos, ervanárias, medicastros e outros curandeiros). No primeiro terço do século XX, o gigante farmacêutico Hoffmann la Roche iniciou, com a produção de vitaminas isoladas, a dissolução sistemática também da alimentação(18), com o que se abriu um mercado novo e passível de expansão.
Hoje em dia, praticamente qualquer substância conhecida e tecnicamente reproduzível do metabolismo humano e qualquer componente alimentar isolável é vendida como concentrado, extracto ou pó e sob a forma de pílulas, tinturas, cápsulas e comprimidos, dando pelo nome de “complementos alimentares”. Mas como o gosto humano só raramente se deixa enlevar pelo charme sensual de uma pastilha, todas estas mercadorias necessitam de uma “espiritualização enobrecedora” como produtos de saúde ou complementos desportivos, sobretudo para serem comercializáveis. Presentemente, as substâncias mitologizadas como “favoráveis ao bem-estar físico” também tomam conta da totalidade dos alimentos industriais sob a forma de produtos acabados enriquecidos ou “funcionais” e, através da terceira geração das alterações genéticas, também são integradas directamente nos géneros alimentícios(19). As bases jurídicas para tal encontram-se criadas na Europa com a legislação sobre a tecnologia genética e o regulamento sobre novos alimentos(20) e são presentemente complementadas, no âmbito da reorganização do direito alimentar, por directrizes de enriquecimento e pelo afrouxamento da proibição da publicidade para alimentos com referência a doenças (health claims). A alimentação, em tempos ponto de intersecção material do Homem com o “resto” do mundo biológico, integra-o hoje completamente no “metabolismo” dos capitais da life science. A composição molecular das mercadorias comestíveis mitificadas, porém, altera-se, em conformidade com as necessidades concorrenciais das multinacionais alimentares, muito mais depressa do que o metabolismo humano consegue adaptar-se. Como este último dispõe de capacidades reguladoras consideráveis, a destruição progressiva da sua integridade bioquímica desenrola-se, antes de mais, devagar. Ela é percepcionada quase exclusivamente pela medicina que, sob o modelo interpretativo do “aumento das doenças civilizacionais”, também a regista para os efeitos da política de saúde pública. Este tipo de reflexão favorece, por seu lado, as condições de acumulação dos capitais da life science que, entretanto, eles próprios enchem os alimentos de fármacos(21), vendendo-os como “alimentos funcionais” cientificamente optimizados para uma “alimentação (preventivamente) saudável”. Os reais êxitos de acumulação dos capitais activos neste segmento do mercado reflectem-se presentemente em um crescimento de dois dígitos(22) dos volumes de negócios.
No entanto não é tão facilmente como a sua alimentação que o próprio Homem biológico se deixa particularizar. É que, ao passo que a “força de trabalho virtual” do indivíduo duplamente livre ainda podia ser “vendida voluntariamente e aos bocados”(23), mesmo após quinhentos anos de domínio do capital somente em países como a Índia se tornou habitual que cerca de 100.000 seres humanos por ano vendam “voluntariamente” um rim(24). Na Alemanha, pelo contrário, partes do “hardware humano” apenas são disponíveis sob a forma da assim chamada “doação de cadáver”, visto a compra de órgãos ser proibida e verdadeiros dadores vivos serem antes de mais raros. Que as “doações de cadáveres” também tenham procura internacional vê-se pelo facto de, por exemplo a China, no ano de 2001, ter intentado vender para os EUA os órgãos de cerca de 5.000 presos executados, que tinham sido condenados à morte no âmbito de um “programa nacional de luta contra o crime”(25). A rede global do tráfico criminoso com órgãos humanos é, por isso, tudo menos transparente(26). Um mercado mundial legal existe tão-só para o regenerável sangue e os produtos daí derivados. Mas também aqui a aquisição de matéria-prima com recurso a práticas semi-legais nos países do terceiro mundo se complementa de um modo fantástico com as doações voluntárias de altruístas voluntários recolhidas nos países industrializados. Graças ao progresso biotecnológico no plano das técnicas de cultivo de células e de tecidos ainda vem juntar-se uma moderna oferta de pedaços de pele, fragmentos de cartilagem e células estaminais sanguíneas que é sobretudo produzida por empresas recentes.
Esta oferta limitada e parcialmente criminosa contrasta com uma procura de órgãos substitutos a aumentar em flecha. Desde o momento em que os “preconceitos materiais” perante tecidos estranhos, que qualquer corpo biológico individual que entre em contacto com estes não deixa de manifestar sob a forma de violentos sinais de rejeição imunológica, podem ser suprimidos, no século passado, pelo crescimento sistemático do saber sobre o sistema imunológico, pelo fabrico de antibióticos e pelo desenvolvimento da medicina dos cuidados intensivos, o número de candidatos à morte cuja esperança de sobrevivência volta a acender-se face à perspectiva de um órgão “novo” aumenta em paralelo com o progresso biomédico. Segundo Eurotransplant(27), em 1998 só na Alemanha o número dos que se encontravam esperançados e à espera era de 10.294 e estabilizou, no ano de 2000, em 10.945, embora nesses três anos tivesse sido transplantado um total de 10.118 órgãos (todos eles “doações de cadáver”). Para além do prato forte dos transplantes, o rim, também foram transplantados fígados, corações, pulmões e pâncreas. Acrescem os transplantes de peles diversas, medula óssea, cartilagens, ossos, intestinos, testículos, úteros e diversas culturas celulares, tudo aquilo de que necessita em medidas crescentes a população das sociedades industrializadas, a ficar progressivamente velha e caquéctica e já quase exclusivamente ameaçada por acidentes, doenças dos foros geriátrico e “civilizacional” como o diabetes, o cancro, enfartes, Creutzfeld-Jacob (a BSE humana), alergias e demências.
A estratégia seguida hoje em dia, que consiste na obtenção de órgãos pelo desmanche de corpos humanos, não deixa de apresentar analogias com a estratégia da Antiguidade, baseada na obtenção de força de trabalho com base na espoliação de sociedades humanas, mesmo que as qualidades específicas da “matéria-prima” humana saqueada sejam distintas e a respectiva obtenção se desenrole a níveis organizacionais diversos do Homem. Mas enquanto as sociedades da Antiguidade, ao transformarem o Homem enquanto “ferramenta dotada de voz” em matéria na sua totalidade, escusavam de se debater com qualquer espécie de dignidade, o capital da medicina vampírica, ao tornar matéria-prima o hardware biológico do Homem, vê-se a braços, ironia do destino, precisamente com a dignidade deste, dignidade essa que, afinal, esse mesmo capital lhe tinha adquirido.
Precisamente nas sociedades industrializadas, onde o mercado dos órgãos, devido à solvência das caixas de saúde, seguradoras e doentes particulares, poderia tender mais a expandir, também a “dignidade do Homem” tem as bases mais sólidas nos planos ético, jurídico e político. Estas sociedades dão-se ao luxo de agrilhoar socialmente o mercado dos transplantes através de proibições de compra de órgãos, e de vincular as “doações de cadáver” ao acordo pessoal dos potenciais doadores (d) que, ao menos nesta questão (e contrariamente a muitos indianos) ainda por cima se encontram livres de constrangimentos de valorização de ordem económica. Daí resulta uma “falta” absoluta de órgãos que não pode ser suprida nem mesmo pela respectiva aquisição junto dos miseráveis “recursos humanos” do terceiro mundo. A invenção nascida desta penúria, vertida em vocabulário jurídico, também na Alemanha, na lei dos transplantes de 1997(28), da “morte cerebral”, que conduziu ao aumento do número dos “cadáveres dadores”, despojou doentes terminais de uma morte minimamente natural e transformou os médicos, enfermeiros e enfermeiras envolvidos em magarefes e respectivos ajudantes(29), não provou ser uma solução libertadora. É que a valorização de “órgãos colhidos” de “dadores cadáveres” quase mortos, à semelhança da valorização de órgãos comercializados de “vendedores por necessidade” perfeitamente vivos, traz agarrado o perigoso odor de um canibalismo capital que a sociedade tem de agrilhoar por motivos de pura autoconservação. No entanto não há, na História da Humanidade, conhecimento de um capital capaz de se expandir que não tivesse sabido rebentar as grilhetas sociais existentes.
Tal como, segundo Marx, há quinhentos anos “o nosso dono de capital tinha de encontrar no mercado uma mercadoria que possuía a insólita qualidade de produzir valor”15 a fim de substituir o trabalho escravo e servil, tornado ineficaz, hoje o “nosso dono de capital das empresas recentes de life science” tem de encontrar no mercado uma mercadoria que “possui a insólita qualidade” de produzir órgãos humanos a fim de tomar o lugar do desmanche socialmente agrilhoado e ineficiente de corpos humanos já existentes. E eis que, tal como naquela altura a força de trabalho virtual humana lhe caiu nos braços “de forma voluntária”, hoje ele arrasta para o mercado o embrião humano material para o alienar do seu fim-em-si de se desenvolver em um ser humano e lhe expropriar as suas células estaminais embrionárias.
A célula estaminal humana embrionária
A célula estaminal embrionária é uma célula que provém de um embrião humano e que, ao mesmo tempo, pode corresponder à “mãe estaminal” de um ser humano multicelular. Para além do óvulo, esta é a única célula que sabe como, com base em um genoma humano, é desenvolvido um bébé apto a viver. Também a maior parte das células corporais contém o genoma humano completo, e o mesmo já é o caso do computador de Craig Venter. Contrariamente à célula ovular e à célula estaminal embrionária primordial, porém, nem umas, nem o outro são capazes de desenvolverem um bebé a partir daí.
Os cromossomas do núcleo de uma célula corporal contêm numerosas áreas do DNA “censuradas”, uma vez que, para o bom cumprimento das suas tarefas, as células corporais especializadas só podem ter conhecimento de “capítulos do genoma” escolhidos. É que no genoma encontra-se escrito o plano sequencial da sua funcionalização, e demasiada leitura genética leva a que uma célula corporal se esqueça das suas funções e desperte para a auto-multiplicação cancerígena, pelo que escapa à sua morte celular programada (apoptose) e destrói o corpo que a utiliza (cancro). No entanto basta transplantar o núcleo celular para o interior de uma célula ovular para voltar a tornar-se legível na sua totalidade. Assim aconteceu na Escócia, pela mão do biólogo Ian Wilmut e com recurso ao núcleo de uma célula mamária de uma ovelha, de onde nasceu, em 1998, a mundialmente famosa Dolly. É que, por enquanto, a célula ovular é o único ser capaz de voltar a tornar legíveis as informações “censuradas” do núcleo de uma célula corporal e de dar início à diferenciação controlada de um novo embrião.
No computador de Craig Venter, porém, muitos dos capítulos decifrados do genoma ainda são hieróglifos incompreendidos que aguardam a respectiva decifragem. A fim de entender o seu sentido, ele tem de despojar o óvulo e a célula estaminal embrionária do seu monopólio do saber. Para tal, Craig Venter também tem de perscrutar o plano sequencial da funcionalização das células estaminais em cada tipo celular individual, compreender a lógica das decisões tomadas no decurso desse processo e estudar as ferramentas moleculares com cujo apoio o genoma, no corpo em crescimento, funcionaliza as células estaminais e coordena a sua transformação em órgãos. Só quando a life science e o capital, que se fundiram em um só na máscara de carácter chamada Craig Venter, tiverem compreendido tudo isto por seu lado, serão capazes de produzir a partir da célula estaminal todos os tipos de células e órgãos. Assim sendo, e contrariamente ao que acontece com o médico especializado em transplantes do tipo clássico, o que está em causa para o capital moderno da life science não é apenas a matéria-prima. O lhe interessa sobretudo é absorver, no seu espírito entendedor ou no organizador exterior de informação deste, o computador, a totalidade do programa genético de autoconservação que comanda e coordena a produção de todos os elementos funcionais biológicos do Homem. Acontece ser precisamente a percepção do programa incarnado nas moléculas do DNA o que permite a produção, peça por peça, das tão cobiçadas “peças sobressalentes” biológicas, sem que para tal tenha de formar-se um ser humano integral, cuja valorização despoleta as reacções de auto-protecção das sociedades sociais que entravam os desígnios do capital. Para tal, chega valorizar os “meros” embriões humanos, que de facto não passam de aglomerados celulares que ainda têm de passar por um processo de desenvolvimento paulatino para constituírem um ser humano. Assim sendo, a resistência do espírito humano à valorização de um corpo humano vivo é mais fraca no embrião, podendo ser superada sem problemas de maior pela instrumentalização desenfreada das esperanças de vida de seres humanos individuais.
No entanto, o que desaconselha, do ponto de vista do Homem individual, a valorização do embrião humano? A defesa da “dignidade do Homem” no embrião? A utilizabilidade de células estaminais adultas para fins restaurativos? O reconhecimento dos direitos vitais de seres humanos em gestação? Uma relação do Homem com o seu próprio corpo que reduz este a matéria-prima? O temor da selecção biológica do Homem pelo Homem? A formação de “novas relações sociais” que afectam deficientes, clones, mutantes, dadoras de óvulos e mães substitutas? Os problemas psíquicos que se prendem com a procura da identidade própria de seres humanos que foram produzidos em vez de gerados? A corrida ao bebé por medida?
Estes campos de conflitos, em que se reúnem resistentes contra a valorização de aglomerados celulares geradores de seres humanos, contêm todos o mesmo ponto fraco. Constituem abstracções face ao comportamento real de seres humanos verdadeiros. O Homem verdadeiro que i) se mandou mumificar e obliterou milhares de vidas para se tornar imortal na megalomania piramidal; que ii) não se detinha perante qualquer assalto à mão armada e gastava vidas escravas a fim de aproveitar ócio para ao menos perpetuar em papiros o seu próprio espírito; que iii) ainda se deixou aproveitar, com uma fiabilidade jamais desiludida, por qualquer tipo de “espírito endeusado”, quer se apresentasse como religião ou ideologia, assim como pelo capital, para qualquer crime imaginável cometido contra os seus semelhantes e que iv) hoje se serve de órgãos de moribundos anónimos para, ele próprio, se manter vivo, haverá de se deter logo perante a valorização de aglomerados celulares que ainda prometem tornar-se seres humanos? E tudo isso numa altura em que as doenças civilizacionais psíquicas e físicas se encontram a aumentar de forma acelerada, novos e velhos flagelos assolam o mundo, as doenças se tornam economicamente cada vez mais inviáveis e a autogestão individual é o pressuposto de uma procura de emprego bem sucedida? A pressão socio-económica que empurra o indivíduo no sentido de alargar o autocondicionamento, até à data apenas mental, também ao seu corpo, aumenta permanentemente, em paralelo com o encolhimento dos mercados de trabalho. Se existirem os meios biotecnológicos e económicos para o restauro e a auto-optimização genética próprios, o Homem verdadeiro aproveitá-las-á perdendo apenas poucos pensamentos com leis passíveis de serem iludidas e as vidas destruídas de seres humanos anónimos que ainda se encontravam em formação.
Com toda a clareza ilumina-se assim o caminho, pelo qual mercados capazes de expansão, aproveitando sinergias com as ciências biotecnológicas livres de investigarem em qualquer sentido, subvertem as leis existentes até que estas já apenas simulam o estabelecimento de uma ordem jurídica e os biomédicos, juntamente com gente obcecada com peças sobressalentes biológicas e a optimização dos seus filhos, gerem o cocktail fabricado por medida, a partir do qual o “Admirável mundo novo” de Huxley pode desenvolver-se da utopia para a realidade.
O desenvolvimento do admirável mundo novo
A câmara superior do parlamento britânico pronunciou-se, em Janeiro de 2001, a favor da clonagem terapêutica de embriões humanos para fins de investigação. Também na Suécia e nos Países Baixos esta técnica é lícita, não sendo proibida em Portugal. A investigação gastadora de embriões supranumerários provenientes da inseminação extracorporal de células ovulares é permitida em França, na Dinamarca, em Espanha, na Finlândia, em Itália assim como na Grécia, tendo o parlamento federal alemão aceite sob determinadas restrições, a 30 de Janeiro de 2002, a valorização de células estaminais embrionárias importadas. A investigação gastadora de embriões e a clonagem terapêutica tendem para serem aceites em todo o mundo, sendo a clonagem reprodutiva por enquanto a única que permanece unanimemente proibida. Há, porém, quem afirme que pioneiros como Severino Antinori e Panayiotis Zavos já clonaram o primeiro ser humano e o implantaram em uma mãe substituta. Realização essa que também a empresa sectária Clonaid reclama para si. O “turismo” de clonagem vindo de baixo, assim como o desmoronamento dos diques jurídicos nacionais contra a clonagem reprodutiva, por isso, já não se farão esperar por muito tempo. Processos globais de concorrência económica podem encarregar-se de promover a expansão desta novel indústria reprodutiva que acarretaria, em seguida, com toda a lentidão democrática, a harmonização das normas legais nacionais à imagem e semelhança das normas da OMC.
A transformação de resultados da investigação nos embriões em produtos passíveis de serem lançados e explorados no mercado resultará essencialmente da interacção de três mercados. No mercado da saúde, a procura individual de órgãos suplentes e culturas celulares reproduz-se e alarga-se na medida em que a indústria biotecnológica de restauro vai desbravando campos de aplicação sempre novos para produtos derivados de células estaminais. As culturas celulares multiplicáveis no reactor biológico, assim como órgãos suplentes produzidos com recurso à biotecnologia, substituirão passo a passo os “órgãos tradicionais, provenientes de dadores”. Tal irá impulsionar igualmente a terapia genética, visto as células estaminais serem fáceis de manipular geneticamente antes de se diferenciarem e serem implantadas em corpos humanos. Os núcleos manipulados de células estaminais podem, por seu lado, ser transferidos para o interior de novos embriões humanos com recurso à clonagem reprodutiva para, em seguida, nos úteros de mães substitutas, se desenvolverem em bebés transgénicos. O discurso social sobre a manipulação de embriões humanos que, a bem dizer, ainda nem sequer despertou, por isso, no seu cerne, passa ao lado da tecnologia que realmente pode ser utilizada para esse fim. Com o nascimento do rapaz americano Adam Nash, em Agosto de 2000, o desenho de bebés segundo critérios de sanidade estabelecidos pelos progenitores e “concepções de criança ideal” passou do estádio da utopia para a fase da respectiva realização. Como embrião extracorporal, esta criança foi seleccionada de entre quinze embriões, com a “utilidade terapêutica colateral” de fornecer à sua irmã, atingida pela doença de Fanconi, células estaminais sanguíneas imunologicamente compatíveis. Um ano e pouco mais tarde, em Fevereiro de 2002, nasceu em Inglaterra o segundo “bebé com utilidade terapêutica colateral”, e mais foram encomendados.
Os critérios de exigência relativos à saúde individual, à respectiva profilaxia e ao diagnóstico biomédico “necessário” para tal são levados para além do âmbito imediato do mercado da saúde pelo mercado dos seguros. Pela subdivisão dos clientes em classes de risco sanitário diferenciadas que podem ser associadas com genótipos diagnosticáveis, o capital segurador, através de uma política de preços activa, produz encargos económicos individualmente diferenciados para seres humanos diferentes. Futuros pais, através do diagnóstico genético pré-natal ou pré-implantacional ou pela implantação de embriões, podem, em toda a “autonomia”, evitar semelhantes encargos para si e os seus filhos. Em termos técnicos, semelhantes práticas já hoje podem ser complementadas de forma construtiva pela reparação, com os meios da terapia genética, de células estaminais, seguida da clonagem reprodutiva. Através de contratos que girem em torno da “existência física” de seres humanos (por exemplo seguros de vida, doença e tratamento), o capital segurador irá, assim, interferir no seu próprio interesse e de forma eugénica no pool genético humano.
O terceiro é o mercado de trabalho, que ainda irá muito além do simples estabelecimento de parâmetros de sanidade e de “criança ideal”. É que os candidatos a empregos são seleccionados segundo todo o tipo de qualidades e capacidades necessárias à valorização do capital, e são-no de entre uma quantidade de candidatos que excede as vagas disponíveis. O estabelecimento de requisitos físicos poderia começar pela minimização de custos devidos a doenças profissionais através da aplicação de perfis de requisitos genéticos, podendo ser ampliados de forma permanente, em função do progresso biotecnológico, a capacidades humanas mais complexas. Deste modo, na sociedade pós-moderna, a força de trabalho volta a ficar colada, de um modo perfeitamente inédito e, desta feita, “autónomo”, ao seu fundamento biológico.
A agudização e individualização capital da concorrência dos humanos pelas cada vez mais rarefeitas possibilidades de ganhar a vida reduz as situações de vida individuais cada vez mais a meras “possibilidades de sobrevivência”. Este facto favorecerá enormemente a imposição económica de critérios de selecção genéticos. O capital, por seu lado, alcançou o seu “limite interior16 da valorização da força de trabalho humana” visto, pelo recurso a tecnologias informáticas computorizadas, ser mais rápido a libertar a “força de trabalho viva tradicional” do trabalho remunerado do que consegue produzir novas áreas de trabalho(30). “Não passa um dia sem que alguma grande empresa anuncie despedimentos em grande escala”, opinou por exemplo o manager-magazin.de ao reunir em uma tabela, a 21.11.2001, o “grande bota-fora” de 551.300 despedimentos planeados por parte de trinta e cinco global players(31). Fazem parte deste lote três bancos germânicos, a Infineon, a Lufthansa, a MAN, a Opel e a Siemens com 65.000 pessoas excedentárias. Depois do rebentamento das bolhas especulativas da “nova economia” nos mercados accionistas internacionais e do atentado de Nova Iorque do 11 de Setembro de 2001, porém, os sinais de crise e as falências sucedem-se, à escala mundial e de formas cada vez mais ruidosas, por todos os cantos da economia capitalista, e é de um modo cada vez mais urgente que se põe a questão: O que fazer com os numerosos seres humanos demitidos de um trabalho remunerado e expropriados de todos os outros meios de subsistência que em todo o mundo vão perdendo as bases do seu sustento, rebentando sistemas nacionais de segurança social, aumentando o potencial de rebelião, morrendo miseravelmente devido a fome e epidemias, batendo-se e matando-se aos milhões pelos últimos recursos ou deixando-se valorizar por perdedores elitistas da economia global de mercado como guerreiros suicidas terroristas? No entanto, sob os olhos cegos do público, nos media culturais dos biólogos moleculares e nas clínicas dos praticantes da medicina reprodutiva, está a amadurecer, juntamente com os embriões humanos, uma “possibilidade de solução avançada” para mais este problema.
A reprodução controlada do Homem não é uma ideia nova
Entre os antepassados da Antiguidade clássica, foram os espartanos quem ao longo de mais de oitocentos anos manteve a própria reprodução sujeita a um controlo apertado, com base em critérios de aptidão físicos e psíquicos, justificados com imperativos de política social(32). Na Modernidade, Thomas Malthus (1766–1834), com a sua ideia da “lei populacional”, recuperou este pensamento, e Francis Galton (1822–1911) estabeleceu a “doutrina da saúde hereditária” como disciplina científica. Depois de um enriquecimento ideal com base na genética de Mendel e nas experiências de apuramento da agricultura, esta avolumou-se no século XX, pelas esterilizações de massas praticadas em todos os países industrializados, numa eugenia prática, visando o “melhoramento do pool genético humano”. Na Alemanha, os nazis entroncaram neste desenvolvimento sem qualquer ruptura, ampliando-o desde programas de esterilização sucessivos até ao assassínio activo de “sub-homens” “indignos de viver” ou “inferiores”, obedecendo a modelos de pensamento designados por “eutanásia” ou “economia populacional”. Esta sociedade alemã planificou e praticou o assassínio dos seus membros classificados como “indignos de viver” no seio do regular funcionamento das instituições de medicina psiquiátrica(33) e organizou a extinção dos “grupos populacionais de valor inferior” no “plano geral Leste” pela combinação sistemática de fome, expatriação e “extermínio pelo trabalho”(34). Como “indignos de viver” e “inferiores”, porém, eram considerados todos aqueles seres humanos que, devido à sua improdutividade física ou psíquica ou pela subsistência agrária integrada num estado estrangeiro, se subtraíam à respectiva valorização pelo capital alemão ou que opunham uma resistência organizada a nível político ou ao de um estado nacional à expansão dos interesses do mesmo. De entrada para este tipo de prática social serviu a correcção da concorrência pela expropriação económica dos judeus34 que foi tornada socialmente aceitável pela apenas aparente “loucura racial” subordinada ao modelo de pensamento de uma “higiene racial” biologista.
Como a expropriação económica dos judeus foi complementada por proibições de trabalho, a reclusão em guetos, leis especiais(35) e outras medidas repressivas socio-políticas, eles foram deixados, em grande quantidade, desprotegidos e privados de meios de subsistência. Deste modo, estas pessoas tornaram-se para a Alemanha nazi um “problema” de fabrico caseiro que, após a descontinuação da política de expulsão e o fracasso do “plano de transferência dos judeus” para Madagáscar34, foi “resolvido” (ou antes: dissolvido em fumo) pela racionalidade utilitária da “solução final” que consistia no seu extermínio físico, coordenado em 1942, na conferência de Wannsee. Os fascistas alemães revelaram-se assim historicamente a primeira elite funcional do capitalismo que elevou a antiquíssima estratégia social do extermínio activo de seres humanos que deviam ser e eram despojados dos seus meios de subsistência materiais a um nível moderno, cientificamente planeado e industrialmente realizado. Para além das realizações da ciência e da tecnologia, para se levar a cabo este projecto assombroso (não em último lugar pela sua violência) tiveram de ser sistematicamente extrapoladas a dimensões gigantescas, e aplicadas, todas as técnicas de dominação social desenvolvidas ao longo da história humana anterior. Assim, sob o esgar desalmado da caveira dos fascistas alemães, a racionalidade abstracta e lógica, autonomizada sob a forma da valorização do Homem pelo ciclo do capital, despiu-se irrevogavel e totalmente da máscara sedutora do progresso “humano” que ainda duas gerações antes lograra fascinar mesmo o espírito evoluído de Karl Marx. No entanto, na Alemanha em expansão, dado o contexto da “economia populacional”, as práticas de extermínio organizadas de forma industrial foram complementadas por medidas destinadas a favorecer de forma específica a multiplicação do “material humano ariano funcionalizável”. Contudo, por falta de uma suficiente penetração cientifico-tecnológica em todas as suas formas (Grã-Cruz da Maternidade, Acção Lebensborn (e), anulação da estigmatização tradicional da maternidade extramatrimonial, “legislação racial”, distribuição a alemães dos recursos roubados, instrumentalização de alemães emigrados, recrutamento e “germanização” de colaboracionistas estrangeiros etc.), este “filão da economia populacional” não extravasou as dimensões humanas limitadas da vida individual e social, não tendo ainda atingido, nessa altura, um nível moderno e industrial.
Todas as estratégias desenvolvidas até à época com a finalidade de manipular e de controlar a reprodução humana apresentaram-se sobretudo sob a forma da repressão dirigida contra os interesses vitais biológicos e socio-económicos de pessoas adultas. Foi, no entanto, precisamente no seu carácter repressivo que sempre residiu igualmente o seu potencial de suscitação de uma resistência organizada e que se desenvolvia em função das estruturas socio-políticas das sociedades em questão e da extensão dos abusos repressivos. A valorização segundo os critérios da racionalidade utilitária de seres humanos durante o terceiro Reich, cuja intensidade e extensão excedeu de longe todas as experiências históricas com a violência, liberta que estava de todas as limitações sociais (morais, éticas, políticas e jurídicas), contribuiu, ao invés, de um modo essencial para que na Europa se verificasse, após 1945, uma quebra acentuada da aceitação social de programas eugénicos. Especialmente na Alemanha, a discussão crítica em torno do aborto, da inseminação artificial, do diagnóstico pré-natal (PND), da valorização de embriões na investigação das células estaminais e do diagnóstico pré-implantacional (PID), dominada pelas feministas, ainda se encontra fortemente marcada por esta rejeição(36).
No entanto, (e à semelhança do que em tempos se passou com o Iluminismo,) a variante moderna da eugenia embrionária insinua-se ao Homem individual sobretudo vincando os seus aspectos libertadores. Para tal, faz referência às consequências reprodutivas da educação e do bem-estar material, a interesses individuais de sanidade e carreira, assim como a interesses sociais de cariz emancipatório. Causas socio-económicas complexas que, nos países industrializados, conduziram à disseminação do bem-estar e da educação, contribuíram para uma alteração radical das possibilidades de educação e actividade femininas, assim como para a erosão do significado das estruturas familiares tradicionais, legitimadas pelo estado e pela religião. Também o movimento de libertação da Mulher, que se formou no âmbito dos esforços emancipatórios socialistas dos dois séculos passados e alcançou a sua independência doutrinária no feminismo, desempenhou um papel decisivo na imposição de vidas femininas autodeterminadas acompanhada de um diferimento temporal da fundação de famílias e de uma redução notória do número de nascimentos e da quantidade de filhos por casal. Hoje, a taxa estatística de natalidade na Alemanha situa-se abaixo da taxa da reprodução simples, com 1,4 filhos por mulher, a idade média de casamento das mulheres encontra-se entre os 29 e os 31 anos, a idade média por altura do nascimento do primeiro filho é de 28 anos e a quota das mulheres sem filhos nascidas em 1965 ronda os 30% (32% no Ocidente e 25% no Leste)(37). Com o descambar em direcção à sociedade pós-social reforça-se em todos os países industrializados a tendência para a decadência das estruturas vinculativas semelhantes à família, visto os planeamentos individuais de vida de mulheres e homens contemplarem cada vez menos a eventualidade do nascimento de crianças, ao passo que as infra-estruturas sociopolíticas da sociedade destinadas à criação, socialização e educação de crianças apresentam sinais de dissolução. Também e em especial os constrangimentos objectivos económicos exigem e favorecem a mónada humana disponível com alto grau de flexibilidade (visto isenta de vínculos sociais), cuja vida entretanto, a todos os níveis funcionais, se encontra cada vez mais totalmente determinada pelos imperativos da valorização pessoal(38). Por isso, mesmo nas “ilhas de bem-estar” do capital, as condições para a reprodução biológica e social do Homem com base em estruturas sociais pessoais e da sociedade geral, vinculativas a longo prazo, estão a piorar progressivamente.
Massas humanas não passíveis de qualquer valorização e a braços com a míngua dos fundamentos da reprodução social, por um lado, e estruturas sociais em dissolução e regidas por colecções de preceitos jurídicos destituídos de alma, por outro, não constituindo apenas condições colaterais da escalada global das espirais de violência de lutas concorrenciais individuais, sociais e capitalistas pelos últimos recursos, abrem igualmente à indústria reprodutiva biomédica hipóteses se médio prazo para a comercialização de uma força de trabalho viva “de novo tipo”. A origem desta indústria reprodutiva reside na medicina da reprodução assistida que, pela inseminação extracorporal, retirou os óvulos e embriões humanos do seu contexto biológico e os tornou tecnicamente acessíveis aos interesses de terceiros. Hoje, apenas um quarto de século mais tarde, são decepados os últimos vínculos jurídicos entre os embriões extracorporais e os respectivos pais individuais, enquanto a “máquina de restauro” científica lhes arranca o seu ímpar conhecimento genético. Deste modo, o capital moderno da life science começa por “capitalizar”, passo a passo, as potencialidades restauradoras das células embrionárias humanas e, provavelmente antes mais cedo que mais tarde, chamará a si igualmente o respectivo potencial reprodutivo. A crescente discrepância entre a valorização industrial dos embriões, em franca expansão, e o avanço titubeante da sua “aceitabilidade social” por parte dos rudimentos da sociedade social impele a indústria restauradora no sentido de desenvolver soluções imaginativas para o “aprovisionamento de embriões” tão livre quanto possível de obstáculos de ordem sociopolítica. Assim sendo, há muito que, nos EUA, floresce o comércio de óvulos, enquanto embriões humanos se desenvolvem até ao décimo quarto dia no interior de úteros artificiais. Até à queda da proibição actualmente existente do seu cultivo para além desta idade, a compreensão do desenvolvimento embrionário progride, graças à universalidade do código genético e dos processos fundamentais do desenvolvimento biológico a nível molecular, com base em organismos modelares não-humanos. O saber biológico virtualizado é conquistado no interior de computadores, com recurso à informática biológica, de onde nasce uma “biologia de sistemas” que modela “in silico” e constrói “in vitro” e que, com cada experiência bem sucedida, também liberta a reprodução material de seres humanos “mais um passo” do seu primitivo “ambiente de evolução feminino”. Os seres que poderão, a prazo, ser produzidos sem recurso a mulheres já não pertencerão a nenhuma mãe individual que, por seu lado, fosse membro de uma comunidade social protectora, podendo ser patenteados como mercadoria de alta tecnologia produzida industrialmente, optimizados e colocados directamente num mercado de trabalho moderno.
O seu fabrico, a sua quantidade e o seu tratamento enquanto resíduos serão regulados inteiramente pela dinâmica do mercado, ou seja, através da procura. Neste segundo renascimento da Modernidade, caracterizado pelo desaparecimento da sociedade social(39), apenas sobrarão fósseis e recordações do sonho humano de uma vida sem fim, perfeita e autodeterminada, pelo que convém regressarmos à questão candente:
Quem ou o quê pode, afinal, ser um ser humano perfeito?
Uma sociedade social autodeterminada teria toda a facilidade em declarar “ser humano perfeito” o “ser humano feliz”. O preenchimento perscrutador das potencialidades socioeconómicas de desenvolvimento deste último, tendo em conta todas as contradições, corresponderia a uma vida verdadeiramente digna de seres humanos num quadro de liberdade cooperativa. O capital, porém, já respondeu a esta questão há cerca de uma geração, e fê-lo de um modo muito mais pragmático e utilitário. Esta resposta erguia-se sobre a rampa de Auschwitz, na forma da figura de carácter racional e científica do Joseph Mengele, que ainda hoje é cegamente minimizado como um monstro sádico, e dividia os prisioneiros à chegada em três categorias: Primeiro, os que ainda podiam ser funcionalmente valorizados em algum processo de trabalho, segundo, os que como cobaias tinham utilidade para as ciências medico-biológicas e, em terceiro lugar, os que não se prestavam a qualquer tipo de valorização e que, como consequência racional, seguiam imediatamente para as câmaras de gás. Antes do tratamento dos seus corpos defuntos pelo fogo, ditado pela higiene epidemiológica, com a meticulosidade alemã ainda lhes eram retirados cabelos, dentes de ouro e pele tatuada como material valorizável. Como “ser humano perfeito” revelou-se, portanto, já há meio século o “ser humano perfeitamente valorizável” e o “elemento funcional humano perfeito”.
Epodo
Com a autorização da valorização cientifico-económica do embrião humano, a sociedade social entregou a disposição exclusiva do Homem sobre a sua reprodução biológica ao capital da life science. Assim colocou o genoma humano capaz de autodesenvolvimento, na sua totalidade material, à mercê das possibilidades técnicas deste. Este facto, porém, priva-nos da derradeira actividade reprodutiva autodeterminada que como seres humanos temos a perder. Em resultado dele, não se modifica simplesmente a “imagem do Homem”, como o discurso da crítica ética gosta de o comentar com brandura. Antes podem ser alterados, de um modo determinado por outrem, os fundamentos físicos do desenvolvimento do Ser humano. A variedade genética do Homem, futuramente manipulada pelo capital, nessa altura já não resultará das necessidades de reprodução materiais, mentais e sociais que lhe são inerentes, mas dos imperativos da variedade funcional interior dos vários capitais individuais. Ao espírito socializado pelo capital do Homem actual juntar-se-á em breve um genoma domesticado pelo capital. E, na medida em que o capital virtual cego consegue, por intermédio da tecnologia genética modelada por computador e da indústria da medicina reprodutiva, materializar no genoma material cego dos seus elementos funcionais humanos as suas próprias necessidades de acumulação, ele perde o seu carácter de fetiche.
A sociedade suportada no fim-em-si da acumulação do capital funde-se, nessa altura, por completo com a “bela máquina” da valorização do valor tornada viva, com o que se completa a transformação iniciada há milénios das sociedades humanas em superorganismos. A evolução, porém, com um riso repleto de escárnio volta a apanhar, no ponto culminante da sua auto-elevação, o Homem que, há centenas de milénios, lhe escapara para a História à procura do império da liberdade.
A autora é bióloga molecular e membro da associação Gen-ethisches Netzwerk e.V. [Rede de ética genética].
NOTAS
(*) O conceito da “sociedade social”, à primeira vista pleonástico, reflecte aqui a totalidade das teias de relações imediatas de dependência e cooperação nas sociedades humanas, realizadas pelo par complementar de motivações de actuação “responsabilidade versus confiança na actuação responsável”. Isso refere-se a todas as obrigações de realização face a pessoas e comunidades humanas concretas que, de um modo voluntário (ou, na variante negativa, também de forma coagida), são mentalmente interiorizadas pelos indivíduos no processo de socialização. Esta forma das relações sociais, originária e típica de todas as sociedades humanas não capitalistas, também na sociedade burguesa ainda constitui parte integrante das interacções sociais, sendo, no entanto, degradada e instrumentalizada pela dinâmica própria das relações fundamentadas sobre o valor de troca. Relações sociais verdadeiras, hoje em dia, já apenas pontificam nas áreas restritas da privacidade dos indivíduos, ao passo que, na sociedade, já apenas fingem revestir-se de funções reguladoras. O conceito da “sociedade social” destina-se a realçar, a título provisório, a qualidade delimitavelmente própria do modo primitivo das relações sociais, podendo ser encarado como o contraponto do termo da “sociabilidade não social” a que alguns dos autores da Krisis por vezes recorrem para caracterizar as teias de relações de valor de troca “quase naturais” entre os indivíduos tornados solitários, próprias da essência do capitalismo que, com efeito, já não são sociais (no sentido de obrigações de realização face a pessoas e comunidades humanas concretas mentalmente interiorizadas). Assim sendo, aqui o conceito “social”, em combinação com a sociedade, é utilizado, contrariamente ao seu significado comum de “relativo à sociedade”, para caracterizar um tipo de socialização específico, humano.
(**)O “Rubicão transposto” faz referência ao discurso de Berlim de Johannes Rau [Presidente da RFA; N.d.Tr.] de 18 de Maio de 2001: “Acabará tudo em bem? Por um progresso de dimensão humana”, em que este, com a frase: “Há muito espaço do lado de cá do Rubicão”, vincou a sua rejeição da valorização dos embriões. O presidente da DFG, Winnacker, respondeu a esta sentença no mês de Dezembro do ano de 2001, a seis semanas da decisão do parlamento federal alemão sobre a importação de células estaminais, de 30 de Janeiro de 2002, por ocasião de uma discussão sobre as células estaminais embrionárias na Academia das Ciências de Berlim, do modo seguinte: “A investigação do lado de cá do Rubicão nem sequer é possível, visto a história da investigação ser uma história de quebras de tabus.” Winnacker, já na tomada de posição da DFG de 3 de Maio de 2001 tinha designado, de um modo perfeitamente acertado, a aceitação da aplicação da inseminação extracorporal ao Homem, já velha de um quarto de século, como o “passo decisivo para o outro lado do Rubicão”.
(1) Simpósio „Fortpflanzungsmedizin in Deutschland” Berlim, 24 a 26 de Maio de 2000.
(2) Gesetz zum Schutz von Embryonen (Embryonenschutzgesetz – ESchG), de 13 de Dezembro de 1990.
(3) “A final do direito. Hipóteses sobre a extinção de um princípio formal do Ocidente”, Franz Schandl, neste número da Krisis. http://obeco.planetaclix.pt/fsl3.htm
(4) „Versäumnisse, die uns jetzt einholen [Negligências que agora nos apanham]”, U. Baureithel, Das Parlament-online.
(5) “Recomendações da DFG para a investigação com recurso a células estaminais”, 3 de Maio de 2001, em http://www.dfg.de/aktuell/stellungnahmen/lebenswissenschaften/empfehlungen_stammzellen_03_05_01.html
(6) “Plädoyer für eine unvoreingenommene, offene Debatte [Apelo em prol de uma discussão aberta e sem preconceitos]”, Riedel, U., Deutsches Ärzteblatt 97, 2000, n° 10, 586.
(7) Iserlohner Aufruf – Für eine zukunftsfähige Ethik, Gen-ethischer Informationsdienst (GID) 143, Dez. 2000/Jan. 2001 e http://www.gen-ethisches-netzwerk.de/position/iserlohn0005.html
(8) “Neanderthal Cannibalism at Moula-Guercy, Ardèche, France.” Defleur et al., science. 1999 Oct 1; 286 (5437) : 128-131.
(9) “Biochemical Evidence of Cannibalism at a Prehistoric Puebloan site in Southwestern Colorado”, Marlar et al., Nature. 2000 Sep 7; 407 (6800): 74-78.
(10) “Die Azteken”, Westphal W., Georg Westermann Verlag 1990.
(11) “Mutter Natur – Die weibliche Seite der Evolution [Mãe Natureza – O lado feminino da evolução]”, Hrdy, S., Berlin Verlag, 2000.
(12) „Der Ursprung der Familie, des Privateigentums und des Staates [A origem da família, da propriedade privada e do estado]”, Engels, F., Philipp Reclam Verlag Leipzig.
(13) “Krieg und Frieden im griechisch-römischen Altertum [A guerra e a Paz na Antiguidade greco-romana”, Ranowitsch A. B., Akademie Verlag Berlin, 1961.
(14) “Von Thales zu Demokrit [De Táles a Demócrito]” Jürss, F., Urania Verlag, 1982.
(15) “Das Kapital – Band [vol.] I – III”, Marx, K., Verlag JWH Deitz Nachf. Berlin, 1947.
(16) “Schwarzbuch Kapitalismus[Livro Negro do Capitalismo”, Kurz, R., Eichborn Verlag AG, 1999.
(17) “Das fünfhundertjährige Reich [O império dos quinhentos anos], Emanzipation und lateinamerikanische Identität [Emancipação e identidade latino-americana], Altheimer und Reese Verlagsgesellschaft m.b.H, 1990.
(18) http://www.roche.com/de/home/company/com_hist_intro/com_hist-1920.htm
(19) “Golden Rice: Introduction the ß-Carotene Biosynthesis Pathway into Rice Endosperm by Genetic Engeneering to Defeat Vitamin A Deficiency”, Beyer, P., et al., 2002, American Society for Nutritional Science, Symposium of Plant Breeding in April 2001, Florida.
(20) Regulamento sobre novos alimentos e aditivos alimentares, Reg. (CE) 258/97.
(21) „Lebensmittel pro aktiv”, Niemann, B., Gen-ethischer Informationsdienst (GID) 144 Fevereiro/Março 2001 e http://www.optipage.de/pfeffer/phytosterine.html
(22) “Market Potential for Probiotics”, Stanton, C., et al., Am. J. Clin. Nutr. 2001, 73.
(23) “Lohnarbeit und Kapital” [Trabalho assalariado e capital], Marx, K., Phillip Reclam Verlag
(24) „Organhandel in Indien – Nachbehandlung von Organkäufern in Essener Krankenhäusern” [Tráfico de órgãos na Índia – Atendimento pós-operatório de compradores de órgãos em hospitais de Essen], Rotondo, R., palestra 1997 http://www.bioskop-forum.de/themen/koerperrohstoffe/index_k.htm#transplantation
(25) The New York Times, 11 de Novembro de 2001.
(26) “The Global Traffic in Human Organs”, Scheper-Hughes, N., Current Anthropology 2000, 41, 2.
(27) http://www.eurotransplant.nl/Deutsch/
(28) Gesetz über die Spende, Entnahme und Übertragung vom Organen [Lei sobre a doação, retirada e transferência de órgãos] (Transplantationsgesetz – TPG [lei dos transplantes]) de 5 de Novembro de 1997, Bundesgesetzblatt I, p. 2631.
(29) Spenden was uns nicht gehört – Das Transplantationsgesetz und die Verfassungsklage [Doar o que não é nosso – A lei dos transplantes e a queixa constitucional], Fuchs, R. / Schachtschneider, K. A. (ed.), Rotbuchverlag, Hamburgo 1999.
(30) „Das Ende der Arbeit [O fim do trabalho]”, Rifkin, J., Fischer Taschenbuch Verlag 2001.
(31) http://www.manager-magazin.de/unternehmen/artikel/0,2828,166297,00.html
(32) “Krieg und Kultur [Guerra e Cultura]”, Toynbee, A. J., in http://www.otopia.de/toynbee/
(33) „Euthanasie im Dritten Reich [Eutanásia no terceiro Reich”, Klee, E., Fischer Taschenbuch Verlag 2001.
(34) “Vordenker der Vernichtung [Os ideólogos do extermínio]”, Aly, G. e Heim, S., Hoffmann und Campe Verlag, Hamburgo 1991.
(35) http://www.shoa.de/nuernberger_rassengesetze.html
(36) Statement ReproKult – Frauen Forum Fortpflanzungsmedizin [Fórum Feminino Medicina Reprodutiva], Hearing with the Civil Society – Temporary Committee on Human genetics – Parlamento da UE, 9 e 10 de Junho de 2001, Bruxelas, dedicado ao tema: The impact of Human Genetics on our everyday life [O impacto da genética na nossa vida quotidiana].
(37) „Der Nachwuchs macht sich rar [A descendência vai escasseando]”, iWD, Informationsdienst der deutschen Wirtschaft Köln [Serviço de Informação da Economia Alemã, Colónia], 2, 2002, ano 28.
(38)„Der flexible Mensch [O Homem flexível]”, Sennet, R., Siedler 2000.
(39) „Die Gesellschaft des Verschwindens [A sociedade do desaparecimento]”, Breuer, St., Junius Verlag GmbH 1992.
NOTAS DO TRADUTOR
(a) Partido-irmão bávaro da união cristã-democrata CDU, tradicionalmente à direita do partido federal, à iniciativa de cujo presidente, Edmund Stoiber, devemos fundamentalmente o famigerado “Pacto de Estabilidade e Crescimento”.
(b) Partido do Socialismo Democrático, sucessor do SED de Honecker.
(c) Deutsche Forschungsgemeinschaft: associação oficiosa dos investigadores alemães.
(d) Em Portugal a lógica é precisamente inversa: segundo a Lei 12/93 de 22/04, é presumido dador quem não se fizer acompanhar, na hora do óbito, por uma declaração que expresse a sua vontade de não o ser.
(e) Apelidado de “fonte da vida” (Lebensborn), este programa visava a criação da “raça superior” através do “cruzamento”, planeado e executado fora de qualquer enquadramento “tradicional”, de “espécimes” considerados exemplares do que se pretendia ser a “raça ariana pura”.
Original alemão: Die Renaissance des biologischen Menschen. Über den Kapitalistischen Zugriff auf das mensliche Genom em Krisis 26, Janeiro de 2003.
Tradução de Lumir Nahodil, 06.12.2003