Felicidade e infelicidade em A-dos-Patos
Roger Behrens
“A felicidade é infinitamente variada em termos qualitativos, a infelicidade é apenas quantitativa.” — Horkheimer, Notizen und Dämmerung [Notas e Ocaso], Francoforte do Meno 1974, p. 46
“Pois é, o Gastão tem cá um pintão, mas a nossa vaca também não é fraca!” cantam o Pato Donald e os seus sobrinhos Huguinho, Zezinho e Luisinho quando, depois de uma longa aventura que acaba em naufrágio, são salvos por um navio. Com uma dança de alegria e estas palavras alegres, que Erika Fuchs colocou nas “bolhas” das figuras de banda desenhada, Carl Barks finaliza a sua história “A família Pato a caminho do pólo Norte”, que fora primeiramente editada nos Estados Unidos, em 1967 (1). Esta história fala da felicidade e da infelicidade, personificadas em Gastão e no Pato Donald. “Não é em vão que me chamam o mimalho da felicidade” (2) (a), diz Gastão que, no original americano, se chama Gladstone Gander, provavelmente em alusão à pedra da felicidade de Goethe. Ostenta uma cabeleira loura e encaracolada, o que não só revela um charme de galã, como também não deixa de ter uma certa semelhança com os penteados de numerosas estátuas de mármore gregas e romanas; ele é a variante masculina da deusa da sorte, Fortuna, mas com uma crucial diferença: na maior parte dos casos, ele guarda a sua sorte para si, e o que lhe traz sorte não raramente significa a infelicidade dos outros. Ele é um egomaníaco da felicidade, um narciso que se encena na comodidade com que tudo lhe cai nos braços. O Gastão ganha todas as lotarias, encontra carteiras, nunca tem de trabalhar, recebe constante e fortuitamente prendas. Mas não é só à sorte que ele vai beber a sua arrogância, mas sobretudo à ausência de infelicidade; é este o segredo decisivo que remete para as condições sociais do destino que lhe é reservado: Ele só tem sorte porque outros não a têm. No que a isto diz respeito, Gastão pode fiar-se, antes de mais, no seu primo Donald, o eterno azarento – Donald perde sempre porque são sempre outros a ganhar. A felicidade e a infelicidade encontram-se distribuídas entre estas duas figuras como qualidades carismáticas e características pessoais; isso transforma-os em estereótipos de um indivíduo moderno concebido de uma forma igualmente estereotipada, que se resignou às suas condições sociais e deixou a sorte e a falta dela a cargo do destino, do signo astrológico ou do bom Deus. Qualquer estado de felicidade, pelo qual o indivíduo sabe ser, ele próprio, o responsável, encontra-se pelo contrário vinculado ao fetiche da mercadoria, ao consumo, quer seja a pechincha, o há muito nutrido desejo pelo carro de sonho ou as férias anuais com pensão completa. A felicidade, a sensação da mesma, a sorte – a vida bem sucedida que se situa para além da satisfação de necessidades no âmbito da lógica do valor, o idílio e a ideia do amor, a alegria, o contentamento, o jogo ou a simples experiência agradável – tudo o que não pode ser comprado com as “grelhas metafísicas” do capitalismo é deixado a cargo de metafísicas semelhantes. Ao carácter de fetiche da mercadoria como “objecto sensível e transcendente” (3) vem juntar-se a superstição, a obra sensível e transcendente do destino. Ter sorte, ter azar – estas duas circunstâncias tornam-se qualidades análogas à cor do cabelo, ao número que se calça e, no âmbito da sociedade pautada pela forma da mercadoria, “riqueza”, propriedade, sucesso. Ao mesmo tempo, a sorte, a riqueza e o sucesso constituem a trindade do sujeito moderno. É, também, por isso que os felizes e os sortudos são alvo de “inveja e má vontade” (4), onde já de si são vítimas de discriminação, e o antisemita e o racista se fortalecem ao ver confirmado o seu preconceito na felicidade do que lhe é estranho: Quem tem sorte, torna-se culpado. É esta a figura mítica do ressentimento contra aqueles que supostamente têm mais sorte que nós, embora – e aí é que está – a merecêssemos mais (um modo de pensar muito familiar do alemão trabalhador e antisemita); semelhantes ressentimentos andam de mãos dadas com as teorias da conspiração (5). Assim, Grobian Gans, que no início dos anos setenta escreveu o seu relatório de investigação irónico sobre “A família Pato”, presume que quem está por detrás da sorte de Gastão é a CIA. A CIA faz-lhe chantagem, pelo que o Gastão trabalha para ela como agente secreto: “Ele precisa de esconder do público uma coisa que é do conhecimento do serviço secreto. É que Gastão é homossexual.” (6) O seu “papel de cavalheiro” não passa de fingimento, limitando-se a seguir os ditames de uma “sensibilidade popular sadia” (7). Afinal, o objecto do seu desejo é o Pato Donald: “Gastão encontra-se sujeito à tensão de uma relação homossexual latente com Donald.” (8) Assim, Gastão torna-se a única figura neste psicograma que ainda tem uma segunda e secreta identidade; Gastão “parece ser o grande marginal de A-dos-Patos que se nega ao princípio do trabalho e vive os seus dias de uma forma despreocupada.” (9) A bem ver, Donald faz o mesmo, mas com menos sucesso; ao passo que Gastão, contrariamente ao que parece, bem se preocupa com a sua sorte, passando o dia à procura de carteiras perdidas, Donald deixa-se levar para uma variante derrotista de uma ascese involuntária, preferindo passar os dias a dormir no sofá.
Para a generalidade dos leitores menos afortunados, Gastão não deixa de ser um personagem pouco simpático. Ele representa o sacana melífluo que, para além do mais, “ainda por cima” tem sorte. A inveja, que se poderá sentir face a pessoas como o Gastão, em Donald converte-se em ódio. Mas também o Gastão é invejoso de Donald, odiando-o ocasionalmente, e assim desvenda a nulidade do que aparenta ser a sua sorte: ambos são concorrentes no que ao amor diz respeito, competem pelas boas graças de Margarida. O que é digno de registo é que a sorte de Gastão aparentemente não se aplica ao amor; ele é tão solteiro como Donald, o qual ao menos – apesar da sua aparente falta de sucesso – parece manter uma espécie de caso descomprometido com Margarida. Se Gastão consegue, uma vez por outra, impressionar Margarida e ganhar a sua simpatia (uma saída nocturna ocasional, mais não lhe é concedido), esse facto não é representado como sorte, antes a sua sorte mais não fez que proporcionar-lhe um encontro inconsequente. Assim sendo, a sorte de Gastão de algum modo parece não dar felicidade – tal como Donald, o eterno azarento, acaba por não se deixar derrotar pelo seu azar, saindo mais que uma vez vitorioso (mesmo que ocasionalmente não deixa de o ser no âmbito do seu papel de conformista do destino). A sorte que Gastão alardeia perante Margarida destina-se a fazer vista; a sorte exibida perante Donald ainda apenas produz a mesma, ou ao menos a respectiva ilusão. Apenas ao preço de ser constantemente nomeada e contrastada com o azar, a sorte é o que é. Na maior parte dos casos, ela toma a forma do dinheiro, das benesses financeiras. Uma coisa que Gastão partilha com Donald é a característica de não tardar a esbanjar o dinheiro que possa obter. Ao contrário, por exemplo, do Tio Patinhas, cuja fortuna imensa se baseia igualmente na sorte, nomeadamente no seu primeiro “táler da sorte”, ganho com o seu próprio esforço, a sorte de Gastão não é acumulativa. Para mais, a sorte de Gastão não tem substância; embora possa ser cada vez maior, como carece de qualidade, nunca é suficiente. Dificilmente haverá, na banda desenhada de Barks, uma figura menos afortunada que o Gastão; ele revela-se incapaz de gozar a sua suposta sorte – afinal ele nem sequer goza, no sentido hegeliano do senhor e do servo, os proventos do trabalho alheio, tal como o Tio Patinhas goza a sua fortuna; ao mesmo tempo, ele não goza a preguiça, a fuga ao trabalho, tal como o faz Donald; a única coisa que ele parece gozar é a inveja que a sua sorte provoca, e ele odeia quem não ficar invejoso. (10)
A competição entre Donald e Gastão destina-se a assegurar às pessoas na indústria cultural “que escusam de ser diferentes do que são e que podem ser bem sucedidas mesmo sem que lhes seja exigido algo de que se sabem incapazes. Mas ao mesmo tempo são avisadas de que nem o esforço de alguma coisa serve, uma vez que mesmo a felicidade burguesa deixou de ter qualquer nexo com o efeito calculável do seu próprio trabalho. Elas entendem o aviso. No fundo, todos reconhecem o acaso de que nasce a sorte de uma pessoa como o outro lado do planeamento.” (11) Se Adorno e Horkheimer diagnosticam que a felicidade e a falta dela perdem o seu significado económico, porque o acaso e o planeamento vão dar ao mesmo, as histórias de Gastão e do Pato Donald são a prova disso: Ambos não têm qualquer qualificação profissional, sabem fazer tudo e nada, e tanto a sorte de um como os esforços do outro não conduzem ao sucesso económico; e se o fizerem, tal será um fenómeno perfeitamente independente das suas respectivas estratégias. Gastão e Donald representam duas formas da promessa de felicidade, duas variantes da felicidade impotente. – A história de Barks, “A família Pato a caminho do pólo Norte”, começa com a situação clássica: “Ora viva, primo Donald! Há uma eternidade que não te via!” – “Pudera! Não é por nada que tenho andado a evitar-te, primo Gastão.” – “Mau! Deverias procurar a minha companhia. Nesse caso aprenderias como se vai a algum lado na vida.” – “De ti, nada posso aprender, meu gabarolas! Além disso, és um grande chato. Adeus, passa bem!” Gastão não desarma, provoca Donald valendo-se para tal de toda a sua desagradável impertinência. Ele constrange Donald a ouvir o que diz o seu horóscopo: “Nasci debaixo de uma estrela da sorte… Tudo o que eu empreender tem de ser bem sucedido.” E parece que hoje é um dia especialmente feliz: “Pode ser que me saia a sorte grande… Eu mostro-te o que vale a minha sorte.” Gastão fala em “empreender” e “valer”, quer apresentar a sua sorte como financeira e, assim, comprovar a sua superioridade financeira face a Donald. E assim acontece: o dinheiro cai-lhe literalmente do céu. “Mas isto é impossível!” comenta Donald os acontecimentos, fascinado com a sorte de Gastão, mesmo que este fascínio se desgaste rapidamente: “Aborreces-me!” Gastão ganha, encontra, e volta a ganhar: “O feliz vencedor da onda de sorte chama-se desta vez Gastão. O prémio é livre de impostos e tem o valor de 200 táleres.” – Agora a história conhece uma viragem, iniciando-se a aventura propriamente dita: “Esse Gastão ainda me põe louco. Ao lado dele uma pessoa sente-se como um idiota. Donald quer livrar-se de Gastão e delineia um ardil: Falsifica um mapa que traz a localização de uma mina de urânio desactivada perto do pólo Norte e faz com que este venha cair aos pés de Gastão, como se fosse a sua sorte a enviá-lo. Entretanto Gastão “(encontrou) mais duas carteiras e (ganhou) mais uma vez a lotaria! Coração, o que desejas mais? Agora é ir ter com Donald e contar-lhe. Ele vai rebentar de inveja.” Encontra o mapa, mas quer mantê-lo em segredo perante Donald, “senão esse ainda vai querer uma quota-parte” (raciocínio notável, visto que Donald também não exigiu uma quota-parte do que ele ganhou até à data). Assim, Gastão viaja em direcção ao pólo Norte, rumo ao jazigo de urânio inexistente, e Donald está – “feliz”: “Bem pode ele tentar encontrar carteiras em cima dos icebergues!” Mas o descanso de Gastão é Sol de pouca dura: Donald começa a preocupar-se com Gastão: “Icebergues e ursos polares! Será que os ursos polares comem pessoas? … Temos de apanhar o tio Gastão antes de lhe acontecer alguma coisa de terrível.” As malas são feitas à pressa, visto que Donald não acredita que a sorte de Gastão realmente será capaz de garantir a sua sobrevivência no deserto branco; as carteiras não matam a fome. E de facto Gastão está em apuros: “Ufa, se alguma vez na vida precisei de ter sorte, é agora!” Mas a sorte não o abandona. Donald, que se meteu à estrada com os seus sobrinhos, Huguinho, Zezinho e Luisinho, consegue apanhar Gastão. Todos acabam por ir parar ao lugar onde supostamente se encontram as jazidas de urânio. Mas, em vez disso, todos dão consigo em cima de um icebergue. Gastão consegue aproveitar o único barco – e também a sua sorte – para abandonar o icebergue. Mas, ao fazê-lo, descobre que afinal sempre há um tesouro a recuperar: no icebergue encontra-se encerrado um barco viking. O icebergue parte-se, o barco fica livre e Donald e os sobrinhos dão consigo no convés do barco de madeira medieval. Os escudos e as armas são de ouro, e no porão encontram-se armazenadas– evidentemente ultracongeladas – costeletas de porco, biscoitos e queijo. Entretanto Gastão trouxe ajuda, que consiste fundamentalmente em apresentar-se como o legítimo proprietário do tesouro dourado: “Segundo o artigo 32, alínea II da lei das calamidades marítimas sou proprietário do navio e de toda a sua carga.” – “Ai, ai, eu sou e não deixo de ser um azarado! Porquê?” – “Porquê? Porque falsificaste um mapa!” é o que Gastão tem a dizer ao seu primo. Gastão pega no ouro e abandona Donald e as crianças nessa “barcaça antiquada e podre”. Enquanto tudo indica que Gastão já há muito que está de volta a A-dos-Patos gozando a sua sorte dourada, Donald, Huguinho, Zezinho e Luisinho são apanhados numa tempestade, naufragam – e encontram “um antigo mapa viking do Norte da América. Desenhado muitos séculos antes de Colombo ter descoberto a América!”, sabem os sobrinhos. (12) E mais ainda: “Este mapa é um dos documentos históricos mais valiosos à face da Terra … Muito mais valioso que o ouro todo que o Gastão levou.”
João Felizardo – Ver-se livre de todas as preocupações
“Fortuna vítrea est, tum quum splendet, frangitur.”
Publilius Syrus (A felicidade é como vidro,
tão depressa resplandece como se parte.)
“A sorte está com os tontos.” – Aforismo
Para o fim da história, a sorte parece ter mudado. Donald tem sorte; considerando o facto de ele e os sobrinhos terem sido salvos de uma situação de grande perigo, até se trata de uma sorte superior à aborrecida sorte fortuita de Gastão. Também a inveja esfumou-se. Embora a sorte tardia se assemelhe a um final feliz, já sabemos o azar que Donald terá na sua próxima aventura. Assim, também esta sorte não passa de uma promessa (quantas foram as vezes que Donald teve pelo meio das suas histórias uma sorte que, de forma dolorosa, voltou a perder no momento seguinte). Mas é precisamente porque Donald, com os seus perpétuos fracassos, permanece um personagem simpático, ele pode igualmente contar com a simpatia das leitoras e dos leitores; ele é o “fall guy” e, como tal, “o retrato e a figura de identificação dos leitores adultos. Esta função estereotipada explica a popularidade de Donald junto dos leitores de idades avançadas … Quem se ri com Donald, quem tem pena dele, se sente atraído por ele, sempre se refere unicamente a si próprio.” (13) Adorno e Horkheimer, na sua “Dialéctica do Iluminismo”, ainda vão mais longe: “Tanto o Pato Donald, na banda desenhada, como os infelizes na realidade, levam os seus enxertos de porrada para os espectadores se habituarem aos seus.” (14) É discutível se aqui o efeito imediato da banda desenhada não é sobrestimado, e se não são subestimadas as ambivalência que se encontram nomeadamente nas histórias de banda desenhada de Barks e nas suas figuras. Por que motivo haverá logo o azar de vida de Donald de ter a função de preparar para a infelicidade vivida na realidade, mas não, por exemplo, o fracasso de um Josef K. no romance “O Castelo” de Franz Kafka? Além disso, Adorno e Horkheimer têm pouca sensibilidade para o que Umberto Eco designa por “obra de arte aberta”, para as alegorias da cultura de massas (15): Sem querer diminuir o mérito do diagnóstico crítico da dinâmica estrutural da indústria cultural, Adorno e Horkheimer não conseguem discernir quanto as histórias de banda desenhada em torna da família do Pato Donald têm de surreal, convidando a tudo menos a identificação imediata com as suas figuras.(16) Por exemplo é surreal que Donald, na história “A família Pato a caminho do pólo Norte”, seja acometido por problemas morais de consciência repentinos; é surreal que os sobrinhos o acompanhem na viagem, a qual, afinal – visto tratar-se de uma acção de salvamento – não deixa de ser perigosa; é surreal a forma evidente de que, ainda assim, se supõe que Gastão, o eterno sortudo, possa de todo vir a ter problemas, surreal é também o decurso da viagem, surreal é igualmente a sorte de Gastão (num dado momento, ele apanha, com um íman em forma de ferradura, uma baleia que salta para terra) … A simpatia com que Donald é contemplado não se baseia, de forma alguma, apenas na comiseração com o “fall guy” que é o próprio leitor, mas sobretudo na distância face aos imbróglios refinados, mas invariavelmente absurdos e irónicos e para com o que as histórias têm de divertido e de ridículo. Adorno e Horkheimer projectam, no seu primeiro Excurso na “Dialéctica do Iluminismo”, Ulisses como o cidadão prototípico que, com recurso à razão e ao ardil, vence o mito. O mesmo que Ulisses representa como precursor do sujeito da alta cultura burguesa, Donald é-o como figura emblemática da cultura de massas do capitalismo tardio – o mito que ele tem de vencer com o seu ardil modesto e nem sequer brilhante pela sua astúcia, não é a violência de uma ordem divina, mas a violência da normalidade quotidiana. Cada aventura redunda em fuga, em Odisseia – objectivo da viagem: o pólo Norte, o que interessa é que seja “para longe”. Adorno e Horkheimer escrevem da “felicidade ‘nos confins do mundo’” (17) que também deverá ter movido Ulisses a empreender a sua viagem. No pólo Norte, os Patos descobrem testemunhos de culturas há muito passadas, o navio viking, para eles pertencente à pré-história: “Independentemente da abundância do sofrimento a que nela os seres humanos se viram expostos, eles não conseguem pensar qualquer felicidade que não se alimentasse da imagem dessa pré-história: ‘Assim prosseguimos na nossa caminhada, de coração pesado.’” (18) – É esta felicidade o que demonstra, na história de Barks, que à felicidade modesta de Donald assiste a veracidade que falta à eterna sorte de Gastão. Noutras línguas [que não a alemã] distingue-se entre a sorte fortuita (por exemplo em inglês “luck”, em francês “fortune”, em português “sorte”) e a felicidade de uma vida bem sucedida (por exemplo em inglês “happiness”, em francês “béatitude”, em português “felicidade”); embora para ambos seja a felicidade das circunstâncias favoráveis o que está em causa, é a Gastão que sai a sorte grande – ele é um afortunado [em alemão: Glückspilz, “cogumelo da sorte”], como no século XVIII, quando a palavra apareceu, era designado o novo-rico, o arrivista, o parvenu. Em Gastão, é “a ausência da consciência de infelicidade”, representada por Donald. “A felicidade, porém, contém em si verdade. É essencialmente um resultado, consubstanciando-se na anulação do sofrimento.” (19)
Este sofrimento, tal como a felicidade, afigura-se diametralmente oposto à discussão filosófica clássica em torno da felicidade. A Filosofia europeia desde a Antiguidade clássica tem vindo a colocar a questão de qual é o modo de vida mais feliz: a vita activa ou a vita contemplativa. A contradição entre ambas, que antes de mais produz a processualidade viva da prática humana, encontra-se eliminada nesta distinção, extinta da mesma forma que a possível felicidade nascida da conciliação desta contradição. A felicidade verdadeira (isto é, actuante enquanto o possível) (20) passa por irreal; a distinção é diferença real, sofrimento manifesto; no capitalismo, essas esferas chamam-se trabalho e fruição, labuta na fábrica e descanso do período pós-laboral, realidade da sociedade burguesa e reino ideal cultural. A liquefacção paulatina das fronteiras entre a vida activa e a vida contemplativa verifica-se, seguidamente, o mais tardar desde o novo centro, o novo mercado e a nova economia onde, por um lado, a actividade se converte cada vez mais em pseudo-actividade, em ocupação, e onde, por outro lado, a fruição, a esfera da contemplação, abandona a zona do descanso, a lentidão do ócio, para ingressar na fase da azáfama atarefada, convertendo-se, ela própria, em uma praxis aparente. (“A pseudo-actividade constitui, de um modo geral, a tentativa de salvar para si, no seio de uma sociedade profundamente mediada e endurecida, enclaves de imediatez”, dizia Adorno. (21) – A isto corresponde tanto o mote do “Faça você mesmo” como o ditado “Cada qual forja o seu destino”.) Se a sorte, antigamente, ao menos ainda nascia com uma pessoa sob a forma da profissão certa, nos dias que correm ela bem pode tomar a forma mais modesta do emprego porreiro que assume o aspecto de uma ocupação de tempos livres, uma vez que estes já foram empreendidos como se de trabalho se tratasse. E sem dúvida todos podem alegrar-se com este bocadinho de sorte. Mas o que desapareceu por completo, de uma forma que praticamente não foi notada pela Filosofia, é a felicidade que, à primeira vista, se apresenta sob a forma da estupidez. Trata-se da felicidade hedonista que nem venera a ascese, nem eleva o ócio ao estado do trabalho atarefado; antes, aqui, de um modo lúdico, o “trabalho” converte-se em descanso, em arte, em produção estética. Como já se disse, a princípio parece uma estupidez; o conto do “João Felizardo é disso um belo exemplo. Depois de ter “servido junto do seu senhor” ao longo de sete anos, João pode voltar a casa, para junto da sua mãe, e recebe, em jeito de recompensa, “um pedaço de ouro que tinha o tamanho da (sua) cabeça.” (22) Ora, no seu caminho de regresso à casa da mãe, João troca o ouro por um cavalo que não pode cavalgar, por uma vaca que não pode ordenhar, por um porco que não pode comer, por um ganso, este por duas pedras de amolar que, por fim, lhe caem para dentro de um poço. Ao rapaz que lhe troca o porco pelo ganso, João fala “da sua sorte … e de como sempre fez trocas tão vantajosas.” E quando segue caminho com as suas pedras de amolar, ele diz para si próprio: “Devo ter nascido numa pele de sorte … Tudo o que desejo realiza-se, como a quem nasceu com o rabo virado para a lua.” Quando, por fim, as pedras lhe caem para o interior do poço, de onde ele quis beber, acaba o conto: “Depois de, com os seus olhos, as ver desaparecer na profundidade, João deu um salto de alegria, … deu graças a Deus com lágrimas nos seus olhos” e viu-se “liberto das pesadas pedras…, que, afinal, apenas o teriam atrapalhado. ‘Tão sortudo como eu’, exclamou, ‘não há outro homem debaixo do Sol.’ De coração leve e livre de qualquer fardo, ele seguiu então o seu caminho a correr até chegar a casa da sua mãe.” A felicidade, para João, consiste em ser livre de todo o fardo, livre de todas as preocupações, “sofrimento anulado”. Os irmãos Grimm apresentam João como o idiota que se deixa enganar e que se deixa aliviar da valiosa paga de sete anos de serviço: com o ouro, João poderia ter vindo a ser tão feliz; e agora, ele acaba por ainda fazer passar a estúpida perda das suas posses por uma sorte, acreditando, para mais, ter em cada uma das suas trocas comprovado a sua habilidade! Um inútil, como também von Eichendorff o descreveu – e Carl Barks. Donald não deixa de apresentar um certo parentesco com o protagonista do conto dos irmãos Grimm, constituindo, por assim dizer, o cromo negativo de João, um João azarado, uma vez que as condições entretanto já não deixam espaço para uma pessoa se sentir bem na falta de posses. Se João, no tempo dos contos de fadas, ainda era o maluco de quem as pessoas se riam, Donald é o falhado e o inútil, alvo de sorrisos condescendentes. Numa sociedade onde a obrigatoriedade do trabalho e qualquer alegre afirmação do esfalfamento é declarada o conteúdo da vida de todos, e por todos, tanto João como Donald são alvos de comiseração; mas, justamente devido às condições específicas do mundo que os rodeia, nenhum deles pode contar com qualquer solidariedade. João livrou-se de todas as preocupações, e Donald apenas as ganha devido à sua despreocupação. Donald, que sempre foge ao trabalho insistindo no seu direito à preguiça, é obrigado ao trabalho – em regra pelo Tio Patinhas – em troco da promessa de uma remuneração que já de si não é exageradamente “justa”, acabando por ser defraudado até desta última (é frequente que aqui apareça um sistema de recompensas próprio da mitologia: Como remuneração pelo cumprimento de uma tarefa, Donald recebe a promessa de tanto dinheiro ou ouro quanto consegue levar; o truque consiste em que, na hora do pagamento de promessas, ele por alguma razão não é capaz de levar seja o que for). E, tal como João, também Donald, ainda assim, preserva uma ideia da felicidade, um contentamento, que vale mais que todo o ouro e dinheiro: Cada aventura, por mais emaranhada que seja, e de que Donald – depois de a ter vencido – tenha, mais uma vez, saído perdedor, é a felicidade da prática bem sucedida, mas precisamente na tensão da aventura de se observar sempre sob uma perspectiva exterior contemplativa (é também a isto que se deve o entusiasmo que subsiste pelos últimos aventureiros, por Rüdiger Nehberg, Reinhold Messner e outros) (23). As crianças ainda sentem esta felicidade, escrevendo, nos livros de poesias, o dito tão verdadeiro no seu mundo: “A maior felicidade do mundo situa-se nos dorsos dos cavalos.” Um belo dia, os cartazes dos cavalos são retirados das paredes, e as aulas de equitação são descontinuadas. Na indústria cultural, esta utopia da felicidade ingressa como promessa, manifestando uma felicidade impotente: Por um lado, os protagonistas da produção da cultura de massas são infantilizados para assim os converter em portadores da promessa de felicidade (24) – também aqui voltamos a cruzar-nos com o Pato Donald – por outro, as pessoas devem ser habituadas a que esta felicidade tem de permanecer uma promessa, visto ser ingénua a identificação com a estrela feliz; ainda assim, a promessa de felicidade permanece idêntica à figura da estrela, sendo até encorajada uma identificação ingénua dos consumidores com as estrelas: Nela vive a ideia ingénua da felicidade e acaba por confirmar-se a identificação negativa com o que uma pessoa tem e, ela própria, é. “Nem a todos deve vir, um dia, a sorte, apenas àquele a quem sai a sorte grande, e muito mais àquele que a tal é designado por um poder superior – na maior parte dos casos pela indústria do entretenimento que é imaginada como quem se encontra constantemente à procura. As figuras descobertas pelos caçadores de talentos e, em seguida, produzidos à grande pelo estúdio, são os tipos ideais da nova classe média dependente. A estrela feminina de pouca envergadura deve simbolizar a empregada, no entanto de tal modo que, contrariamente ao que acontece com a verdadeira, o grande casaco de peles já lhe parece ser reservado pelo destino.” (25) – Antigamente, as estrelas representavam a rapariga da rua; de facto, algumas celebridades foram “descobertas na rua”, mas frequentemente o seu sucesso ainda passava por uma rigorosa selecção e formação. Isso hoje não se passa de outro modo, com a única diferença de que a indústria cultural entrada em crise tenta, uma vez mais, com o seu último fôlego, não mais vender o seu modelo de identificação como uma bela aparência, senão como uma realidade pura e dura: Supostamente as estrelas já não representam ninguém, a não ser as próprias pessoas. Os processos de selecção, pelos quais os culturalmente mal sucedidos são eliminados, e que desde sempre revelavam uma bárbara semelhança com a separação das pessoas nas rampas dos campos de extermínio, são convertidos em espectáculo: Nada mais é escamoteado, tudo isso já se chama “Ídolos”. A selecção é feita por um júri, cuja competência já apresenta a mesma qualidade que aqui é solicitada, nomeadamente a conformidade com os mais rudes mecanismos de disciplina, normalização e controlo: No final ficam os mais bonitinhos que se prostituíram com orgulho, os lisos e apresentáveis, cuja auto-consciência é elogiada, que não mostraram fraquezas e com os quais choraram os feios perdedores. A auto-consciência esgota-se, no entanto, na sincera crença de que todos tiveram a mesma hipótese, se tratou de um processo justo, houve muitos “bons votos” a contribuir – porque ao mesmo tempo supõe-se que tenha sido a sorte a decidir, uma sorte associada ao acaso. Ao mesmo tempo, esta continua a ser uma sorte impotente, uma vez que de qualquer maneira apenas consiste na medida em que nela se reafirma o poder. É a sorte fetichista do dinheiro. Já em moedas antigas encontra-se estampada a deusa da sorte, Tyché (como padroeira das cidades, ela garante a sua protecção pelo dinheiro em que se encontra retratada).
Excurso: Tyché, promessa de felicidade
A deusa grega Tyché corresponde à romana Fortuna que distribui as dádivas com a sua cornucópia. Nas suas representações a partir da Idade Média, ela frequentemente traz consigo um globo e uma roda da sorte. Em duas gravuras de Dürer, Tyché encontra-se representada como “mulher nua que balanceia em cima da esfera”. Em “Das kleine Glück [A pequena sorte/felicidade]” (cerca de 1496), ela tem na mão uma flor como “símbolo da sorte amorosa”, ao passo que na outra gravura, “Das große Glück [A grande sorte/felicidade]” (cerca de 1501/02), Tyché é, na verdade, uma representação de Nemesis, da deusa da vingança e da justiça divina…: alada, a deusa paira acima do mundo dos homens, segurando nas mãos a taça que contém honra e riqueza, assim como arreios para refrear os desmedidos e os descomedidos.” (26) Não raramente, Tyché/Fortuna é representada com uma venda nos olhos como sinal da sua cegueira. – A roda da sorte era, na Idade Média, o símbolo da instabilidade, da subida e da descida no destino dos humanos.” (27) Hoje em dia, a roda da sorte é um instrumento do jogo de azar; tal como acontece com a roleta, ela é posta a rodar, sendo que uma posição predeterminada decide sobre o ganho ou a perda. Na televisão reaparece em concursos cujo objectivo consiste em se adivinhar o preço certo das mais variadas mercadorias. Agora, a roda da sorte gira no sentido contrário. Que mesmo nos concursos, em que o Homem, sob a capa de um jogo, é familiarizado com o carácter de fetiche da mercadoria, seja utilizado algo designado por roda da sorte não é uma mera analogia; com a tradução do símbolo também é traduzido o conceito da sorte e da felicidade. De um modo quase imperceptivelmente associado, também se altera o momento da felicidade nos termos da psicologia social, a capacidade de felicidade, a sensualidade e as necessidades associadas à capacidade de sentir a felicidade como uma experiência de prazer – ou de a deixar degradar na mera vivência de um sucedâneo fruto da sublimação de impulsos naturais. – A cornucópia da sorte de Tyché está vazia; vazias são igualmente as promessas de felicidade que, por seu lado, existem de forma abundante: Cada um deve encontrar a sua própria felicidade, e o pequeno-burguês também não quer mais que o seu “contentamento pessoal” (28), o seu descanso, a sua cerca rústica e os anões no jardim, ou a aventura, o fim-de-semana louco. A sorte grande promete, para mais, a casa de sonho, o carro de sonho, as férias de sonho – a roda da sorte converte-se na espiral da sorte que, de forma hipnótica, fixa o Homem no fetiche da mercadoria. No tempo em que o indivíduo já mais não é que um exemplar, a promessa da felicidade subjectiva converte-se na vã garantia de que cada ser humano é especial.
Felizes são os felizes
“Os autores desta edição dizem: ‘Felizes são os felizmente
felizes. Os sentimentos andam por aí tão espalhados que uma pessoa podia apanhá-los:
Um por um ou todos ao mesmo tempo. Mais duro agora é mais duro.’
E as imagens têm o saco cheio”
Kristof Schleuf, “Laufe blau” (Brüllen)
Que cada qual forja o seu destino e, por conseguinte, toda a caracterização ou até definição da felicidade permanece subjectiva, é já a ideologia da verdade da felicidade que se supõe residir na subjectividade bem sucedida. Mas enquanto a subjectividade estiver vedada, for apenas disponível como sucedâneo de um subjectivismo, também a felicidade experimentada não passará de um momento, de um pressentimento, de um logro. – Como já referimos, a Filosofia trata, até à data, o problema da felicidade como uma questão de vita activa ou vita contemplativa, praxis ou teoria; para mais, desde a Antiguidade a eutiquia, o favor das circunstâncias e do destino, é distinguida da eudaimonia, da percepção desse mesmo favor. Para além disso, o conceito geral da felicidade parece ser menos palpável. E nomeadamente a Filosofia idealista não consegue passar da generalidade da felicidade – a felicidade é aquilo que cada um tem como tal. Até à Modernidade, o problema da felicidade é percepcionado de um modo geral, mas ao mesmo tempo abstracto e abstraído da generalidade. No entanto existia um pressentimento de que a sociedade não tem felicidade a dar para toda a gente; contra a realidade social defende-se um hedonismo, Epicuro designa uma vida feliz por vida natural. (29) A dor impede a felicidade. Também isto é do conhecimento do hedonismo, pelo que – tal como recomenda Aristipo – o prazer dos sentidos é de preferir ao prazer do espírito, visto ser mais intenso (visto também a dor física ser pior que a dor de alma); (30) no entanto, “os hedonistas são incapazes de superarem o seu relativismo e contemplarem o problema da felicidade no plano global da sociedade: sob a categoria da verdade objectiva.” (31) Com a Modernidade vem a desenvolver-se lentamente a consciência das contradições sociais, juntamente com o esclarecimento dos conceitos da teoria e da prática. “A felicidade consiste no triunfo sobre resistências reais.” (32) E, como em seguida vem adiantar o materialismo: Cada um, ao aspirar à felicidade individual, contribui, conscientemente ou não, à felicidade de todos. No entanto, o subjectivo e o objectivo já não podem ser mediados desse modo, nomeadamente porque o liberalismo ergueu barreiras económicas: a partir de então, a felicidade era identificada com a propriedade privada. A felicidade como estado de satisfação e plena ausência de desejos foi-se tornando cada vez mais um ideal, para cuja realização nem a teoria, nem a prática poderia contribuir, sendo os seus únicos responsáveis o acaso e o destino. Reencontramos as figuras das formas de felicidade assim ideologicamente amanhadas mais tarde, por exemplo, no Tio Patinhas, no Gastão – e no Pato Donald que, plenamente de acordo com o materialismo de Feuerbach, dá a entender que o mesmo que torna a felicidade possível também diminui a felicidade – não há vida sem sofrimento. (33) Esta negatividade da felicidade é a pista para a possibilidade de conceber a felicidade de uma forma objectiva: Como momento subjectivo de emancipação. No entanto, para tal é necessário um conceito materialista da prática; de outro modo, semelhante posição permanece a da particularidade da existência que, “assim na sua existência, desfruta de si própria.” (34) No entanto: “A história universal não é o chão da felicidade. Nela, os períodos da felicidade são folhas vazias; é que são os períodos da concordância, da falta de oposição.” Antes, a história universal é “o progresso na consciência da liberdade – um progresso que temos de reconhecer na sua necessidade.” (35) Só com a viragem materialista a teoria crítica volta a pensar essa liberdade em conjunto com a felicidade, reúne o hedonismo subliminar de Hegel (isto é, a fruição de si próprio) com a ideia histórica da emancipação: “Toda a alegria e toda a felicidade nascem da capacidade de transcender a natureza – transcendência essa em que o próprio domínio da natureza se encontra subordinado à libertação e á pacificação da existência.” (36) Esta ideia da felicidade acentua precisamente a capacidade de fruição do Homem e procura ligar, na aspiração à fruição, ao prazer, ao contentamento, a sensibilidade e a experiência da felicidade à prática e à teoria. Assim, a felicidade aproxima-se da arte, e até encontra na arte um local onde pode ser e é anulada: “A existência assemelha-se cada vez mais tão-só a si própria. A arte pode, por isso, cada vez menos assemelhar-se a ela. Como toda a felicidade com o que existe e no seio do mesmo é um sucedâneo e é falsa, ela tem de quebrar a promessa para lhe manter a fidelidade.” (37) Não só a felicidade e a liberdade são aqui pensadas em conjunto, mas igualmente a felicidade e a esperança, a felicidade e a emancipação. Se Feuerbach reduziu a felicidade à sensibilidade, Marx salva “o momento de verdade da equiparação clássica e medieval da felicidade com a contemplação.” (38) – Nele encontram-se os “contornos de um conceito da praxis humana qualitativamente novo – decisivo para o seu entendimento da problemática da felicidade.” (39)
Excurso: Silêncio por favor, que aqui se trabalha!
A felicidade como “porção normal de trabalho”
“… Assim por exemplo a Filosofia epicurista, estóica,
era a felicidade da sua época; assim procura a
borboleta nocturna , depois de se ter posto o Sol geral,
a luz de lanterna do privado.”
Karl Marx, epikureische Philosophie [Filosofia epicurista]
in: MEW vol. de aditamentos 1, p. 299 s.
A praxis tem aqui traços da livre criação artística. A ela encontram-se associados os conceitos anulados na estética da criatividade e da imaginação; isso torna-se possível pelo carácter social que assiste à praxis; ela não é “esforço do Homem, como força natural de um determinado modo amestrada, mas sim como sujeito que no processo de produção não se manifesta sob uma forma apenas natural, primária, mas como actividade reguladora de forças da natureza.” (40) Um conceito da felicidade deste modo fundamentado na praxis pode, portanto, ser associado com a liberdade, justamente porque não encara a vita activa e a vita contemplativa como modos de ser separados, mas como formas da praxis: uma praxis crítica em que o Homem não experimenta apenas a sua realidade, mas em especial as suas possibilidades. “Qualquer libertação, por muito sensível e radical que ela seja, tem de prestar homenagem ao facto nu e cru de o Homem ser um ser racional, que a sua liberdade e a sua felicidade dependem da consciência do que é face ao que pode ser, e que o descanso da sensibilidade pura é transitório.” (41) O descanso é aqui pensado como praxis transitória, porque o Homem – tal como Marx já formulou nas Teses sobre Feuerbach – deve ser concebido como Homem sensível e prático. Nos “Esboços”, Marx tematiza esta relação entre contemplação e praxis como a que existe entre o descanso e o trabalho.
“Deverás trabalhar no suor do teu rosto! foi a maldição que Jeová outorgou a Adão na despedida. E é como maldição que A. Smith concebe o trabalho. O ‘descanso’ afigura-se o estado adequado, idêntico à ‘liberdade’ e à ‘felicidade’. Que o indivíduo, ‘no seu estado normal de saúde, força, actividade, habilidade, agilidade’ também tenha necessidade de uma porção normal de trabalho não parece, de todo, fazer parte das convicções de A. Smith … No entanto, ele tem razão ao afirmar que nas formas históricas do trabalho como trabalho escravo, servo e assalariado o trabalho sempre se apresenta como repugnante, sempre como trabalho forçado exterior e, contrariamente a ele, o não-trabalho como ‘liberdade’ e ‘felicidade’.” (42) No entanto, o trabalho também pode “ser a auto-realização do indivíduo”, travail attractif, mas não como um mero jogo, não como empreendimento particular, como felicidade do período pós-laboral. “Um trabalho verdadeiramente livre, por exemplo a composição musical, é ao mesmo tempo algo do mais sério, um esforço dos mais intensos.” Este é o trabalho transitório, o descanso produtivo, a arte. Deste modo, Marx também argumenta contra a suposta felicidade do descanso, que apenas se manifesta como renúncia à fruição, como sacrifício: Esta felicidade da inacção nega-se ao prazer produtivo: “A negação do descanso, como mera negação, como sacrifício ascético, nada cria … O que for designado como um sacrifício do descanso, também pode ser denominado um sacrifício da preguiça, da falta de liberdade, da desgraça, isto é, a negação de um estado negativo.” (43) Marx coloca em oposição a isso a felicidade da arte, a “actividade positiva, criadora.” (44) É a prática feliz, que não coincide propriamente com a ideia burguesa da sorte fortuita que apenas contempla aqueles que de qualquer forma já se encontram em vantagem. A concepção do trabalho e da felicidade liberalista, utilitarista, ou a que é própria da indústria cultural moderna, invariavelmente exclui o infeliz; os doentes, os incapacitados, os velhos e os enfermos trazem a chancela do seu destino, não devendo nem podendo ser felizes: A sua sorte é a sua liquidação, a morte (a erradicação de “vida indigna de se viver”, na Alemanha nazi, era caracterizada pela palavra grega da eutanásia, da morte feliz.). Marx contrapõe a isso uma felicidade da prática social: “A. Smith encara o trabalho de um modo psicológico, com referência ao prazer ou desgosto que dá ao indivíduo. Mas para além desta relação anímica com a sua actividade ainda é, apesar de tudo, outra coisa – primeiro para outros, como o mero sacrifício de A nenhuma utilidade teria para B; segundo, um determinado comportamento de si mesmo com a coisa em que investe o seu trabalho, bem como com as suas próprias aptidões de trabalho.” (45) O esforço produtivo do compositor Beethoven, já ensurdecido, produz felicidade: é o Hino à Alegria, meus caros amigos.
Euforia e eufobia
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“Com a felicidade, as coisas não se passam de outro modo que com a verdade: Não se tem, mas está-se nela. Pois é, a felicidade não é outra coisa que o conforto, a réplica do aconchego junto da mãe. É, contudo, por isso que nenhum feliz alguma vez poderá saber que o é. Para ver a felicidade, teria de sair da mesma: seria como um nascido. Quem diz ser feliz, mente ao fazer juras disso mesmo, e assim peca contra a felicidade. Tão-só lhe guarda fidelidade quem diz: fui feliz. A única relação da consciência com a felicidade é a gratidão: é nisto que reside a sua incomparável dignidade.”
Adorno, Minima Moralia, Reflexionen aus dem beschädigten Leben [Reflexões vindas do interior da vida danificada], Gesammelte Schriften [Obras completas] vol. 4, p. 126.
Nota intercalar: No Marxistisch-Leninistisches Wörterbuch der Philosophie [Dicionário marxista-leninista da Filosofia] não existe qualquer entrada dedicada à “felicidade”. – Num spot de publicidade de uma marca de cerveja, um casal jovem está sentado num sofá de estilista; não falam, aninharam-se um ao outro. Um deles bebe cerveja. Como nos desenhos animados, lemos – e ouvimos – os ruídos do acto de beber. Mas em vez de “glu, glu, glu”, o consumo desta marca de cerveja promete: “Glück, Glück, Glück (b) – é uma Diebels fresca”.
A felicidade, segundo Sigmund Freud, brota da satisfação de necessidades sumamente acumuladas, sendo apenas possível como um fenómeno episódico. Isso tanto mais se torna verdade quanto as necessidades provêm do fetichismo da mercadoria da lógica do valor; a felicidade da satisfação de necessidades falsas permanece vã. Assim, Marcuse escreve: “Podemos distinguir entre necessidades verdadeiras e falsas. ‘Falsas’ são aquelas que são impostas ao indivíduo por poderes sociais particulares que estão interessados na sua opressão: as tais necessidades que perpetuam o trabalho árduo, a agressividade, a miséria e a injustiça. A sua satisfação pode ser muito do agrado do indivíduo, mas esta felicidade não é um estado que se mantenha … O resultado é, então, a euforia na infelicidade.” (46) Isto equivale à incapacidade de se ser feliz, à impotência da felicidade. É a esta euforia na infelicidade que se refere a dialéctica da felicidade; em dadas circunstâncias, esta muito facilmente se converte no seu oposto. A psicanálise depara-se com um problema peculiar, que consiste em “que ocasionalmente os seres humanos adoecem precisamente numa altura em que se lhes cumpriu um desejo profundo e acarinhado durante um período prolongado. Estes indivíduos criam uma impressão como se não suportassem a sua felicidade, …” (47) – No grupo Blumfeld lemos: “Em vez de feliz / agora o que interessa é mostrar coragem / estou inconsolável / simplesmente demasiado fraco para ser feliz … Em vês de feliz / apresento preocupações / algo não está certo / e assim está desde que sei pensar / errar é humano / cada um segue o seu caminho / em vez de feliz / até que nada mais se possa fazer … quero ter certezas / tenho medo do que vai ser daqui em diante / e de estar só.” (48) Demasiado fraco para ser feliz remete para que, no estado da subjectividade já apenas esporadicamente conseguida e fragmentada, até no momento feliz e bem-aventurado a felicidade não passa de uma felicidade na infelicidade, de uma sorte no meio de tanto azar: sorte no jogo, azar no amor, ou vice-versa, o “todo permanece o não verdadeiro” e não há “vida certa no seio da errada”. (49) – Quando a felicidade é a mentira sobre a persistência da infelicidade, um pintar e beber cor-de-rosa (50) da vida modesta e merdosa, o contrário da felicidade não é a infelicidade, mas medo, que também é medo da felicidade, eufobia. E muita felicidade resume-se ao seu contrário: felicidade fingida, a mentira vital.
Em ‘O mal-estar na cultura’, Freud refere três fontes do sofrimento humano que impedem a felicidade: trata-se, primeiro, do poder avassalador da natureza, segundo da caducidade dos nossos corpos, terceiro, das deficiências sociais (família, estado, sociedade). Se estamos, em grande medida – apesar dos progressos cientifico-tecnológicos – entregues às nossas vicissitudes somáticas e naturais, até a retrocessos em tecnologia medicinal que, em nome da civilização, mais perpetuam muito sofrimento do que o anulam, segundo Freud, o sofrimento social pode ser erradicado, ou ao menos mitigado: Também disso se supõe capaz a cultura. Ao mesmo tempo são as tensões e relações fatais que existem entre as formas do sofrimento que podem tornar a vida ainda mais desagradável e dolorosa: A desvantagem constituída por uma deficiência ou doença, e mesmo sofrimentos psíquicos banais, é socialmente reforçada, enfatizada. É certo que o sofrimento que impede ou dificulta a felicidade deve ser concebido primariamente como físico, tal como o concebe a tradição materialista, que tinha perante os seus olhos o Homem submetido e escravizado – e nessa medida a felicidade também se encontra vinculada à ausência da dor, à satisfação conseguida das necessidades físicas; no entanto, os estados de sensibilidade do corpo são mediados de forma sensível, e por fim psíquica e, também por isso, uma vez mais vinculados de forma dialéctica à respectiva constituição social. (51) Por isso, o mais tardar desde Feuerbach, a sensibilidade é o fundamento da felicidade, (52) sendo que esta sensibilidade não se refere ao esteticismo do espírito enlevado pelo idealismo, ao empolamento do bom gosto e da fruição da cultura, já de si socialmente empolados e produzidos de forma hegemonial, mas, sim, ao olhar lúcido sobre as deformações sociais da sensibilidade e à felicidade possível mediada pelos mesmos: A sobriedade do materialista remete para a mediocridade da vida da grande maioria; banalidade, indiferença, faltas de respeito e de sentido, são as causas do sofrimento dos sujeitos capitalistas, ponto de intersecção entre o seu estado físico e anímico, a sua auto-percepção e auto-consciência. Assim permanece como condição física do Homem: a sua busca da felicidade, a sua actuação que – positiva e negativamente – visa a ausência de dor e de mal-estar, mas que, por outro lado, se esforça pela vivência de fortes sensações de prazer.” (53) Assim, segundo Freud, apenas a evitação do mal-estar pode ser sentida como felicidade, no caso: o descanso. Semelhante felicidade, no entanto, constitui demasiadas vezes apenas a infelicidade da evitação do prazer, a acumulação e o adiamento das necessidades que tenham a ver com cobiças, desejos e impulsos – necessidades muito heterogéneas, em suma, que encerram em si, em medidas iguais, tanto o mal-estar como o prazer. De qualquer modo, esta felicidade permanece puramente subjectiva, individualizada: não arrisca expor-se a qualquer perigo, não quer ser desiludida, uma vez que, no fim do dia, se sabe impotente e só: os contornos dessa felicidade são o seu contrário, o medo e a abnegação. Esta “posição da felicidade e da infelicidade”, esta felicidade da “coincidência” e “da falta de oposição”, (54) é o privado que, na sociedade do trabalho é elogiado como a virtude da modéstia; ela reproduz na sua contenção e auto-domínio o aborrecimento e o autocontrolo que determinam a vida dos indivíduos. Tal como já a ideia da emancipação, também se encontra deixada de fora a utopia da felicidade da emancipação.
Tanto a felicidade do auto-domínio como a infelicidade do encolhido é uma afirmação do poder abstracto do domínio real do contexto económico. Este, que se afigura aos humanos como uma segunda natureza, é o mesmo poder abstracto, metafísico, que ele designa como seu destino, a sua primeira natureza, o seu carácter, a sua personalidade, a sua mentalidade; se os medíocres têm de se contentar com a felicidade do descanso, aos felizardos congénitos está aberta a vida activa: São escolhidos em concursos, embolsam invariavelmente a pechincha, são os economicamente bem sucedidos. Ainda assim, ao ser reduzido tudo o que conseguem a uma felicidade que é inteiramente identificada com o destino e o acaso, verdadeiros talentos, caso existam, experienciam a sua depreciação. O sucesso torna-se felicidade ao tornar-se esta última sucesso. Isso vincula toda a felicidade ao poder, o que, ao mesmo tempo, lesa a felicidade. Tal como o medo é o contrário da felicidade, os ressentimentos, a raiva aos felizes, é o oposto da infelicidade: “A ideia da felicidade sem poder é insuportável, porque apenas ele seria felicidade. Ainda no estado da possibilidade, têm de recalcar sempre de novo a ideia dessa felicidade, escamoteando-a tanto mais, quanto mais se aproxima a sua hora.” (55) O recalcamento da possibilidade de semelhante felicidade sem poder corresponde a habituação à normalidade do poder sem felicidade, à consciência de que a felicidade permanece uma excepção que se distribui por alguns poucos momentos nas vidas de poucos. Assim, diz-se que a felicidade também tem os seus senãos: As estrelas que alcançaram fama, e às quais a felicidade foi literalmente escarrapachada nas caras, nas fotografias tiradas na grande gala, também têm as suas misérias, as suas separações, os seus ferimentos e as suas doenças. Devem compartilhar com as massas, ao menos, a infelicidade. Isso reduz a infelicidade. Quem se acomodou à própria impotência de qualquer modo não conseguiria suportar a felicidade das mesmas. Assim, a indústria cultural imita a sociedade classista, que diz ter nivelado economicamente – somos todos iguais – no sistema das estrelas; ao mesmo tempo confirma, com tal atitude, a felicidade idealista do indivíduo. A teoria crítica da felicidade vai para além disso ao anular este conceito da felicidade, na prática emancipatória, contra a sua falsa realização por parte do destino individual: “A felicidade seria a ideia da Humanidade realizada.” (56) – Gastão é o indivíduo, a mentira do destino da vida bem sucedida; o Pato Donald, pelo contrário, representa o individualismo da infelicidade real: O que acontece a ele, aplica-se a todos. Por isso, redescobrimo-nos nele e vislumbramos: “O mundo em que vivemos / vai desabar / já nada temos a perder / apenas a felicidade, e essa diz nós.” (57)
Aditamento: Benjamin introduz a sua nona tese, “Sobre o conceito da História”, sobre o quadro “Angelus Novus” de Paul Klee, com um pequeno poema de Gersholm Scholem: “A minha asa está preparada para bater / eu regressaria de bom grado / é que, mesmo que ficasse um tempo vivo / eu teria pouca sorte.” (58)
NOTAS
(1) Primeiro no Pato Donald, caderno 8 (1967); aqui cito segundo a tradução de Erika Fuchs: Pato Donald, A família Pato a caminho do pólo Norte, in: Klassik Album N° 5, Estugarda 1985, p. 3 ss. Todas as citações subsequentes sem outra indicação referem-se a esta história.
(2) Gastão em: Weihnachten in Kummersdorf [Natal em A-dos-Tristes], Klassik Album N° 5, Estugarda 1985, p. 22.
(3) Karl Marx, Das Kapital, MEW vol. 23, Berlim 1986, p. 85.
(4) A inveja e a má vontade são, segundo Christian Smukal, as duas características principais do Homem na supostamente hedonística cultura “pop”.
(5) Cf. Max Horkheimer, Forschungsprojekt über Antisemitismus [Projecto de investigação sobre o antisemitismo], in: Gesammelte Schriften [Obra completa], vol. 4, Francoforte do Meno 1988, em especial a “Tipologia dos antisemitas contemporâneos”, p. 394 ss; assim como: idem, “Sobre a psicologia do antisemitismo”, in: Gesammelte Schriften [Obra completa], vol. 12, Francoforte do Meno 1985, p. 172 ss.
(6) Grobian Gans, Die Ducks, Psychogramm einer Sippe [A família Pato, Psicograma de uma estirpe], Reinbek bei Hamburg 1972, p. 68.
(7) Gans, Die Ducks, ibidem, p. 68.
(8) Gans, Die Ducks, ibidem, p. 68.
(9) Gans, Die Ducks, ibidem, p. 66. O Gastão é, “na verdade, uma miserável marioneta com cujo desaparecimento repentino e definitivo de A-dos-Patos tem infelizmente de se contar.” (ibidem, p. 69)
(10) Eu não partilho a opinião de Gans, ibidem, p. 69, segundo a qual Gastão, com a permanente ostentação da sua sorte, procura seduzir a Donald.
(11) Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Iluminismo], in: Adorno, Gesammelte Schriften [Obras completas], vol. 3, Francoforte do Meno 1981, p. 168. (c)
(12) Como Donald se meteu nesta trapalhada por ter falsificado o mapa do tesouro para Gastão, ele não consegue alegrar-se muito com o achado: “Odeio mapas!”
(13) Wolfgang J. Fuchs e Reinhold C. Reitberger, Comics. Anatomie eines Massenmediums [Banda Desenhada. Anatomia de um mass medium], Reinbek bei Hamburg 1973, p. 60.
(14) Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Iluminismo], ibidem, p. 160. (c)
(15) Cf. Umberto Eco, Das offene Kunstwerk [A obra de arte aberta], Francoforte do Meno 1972; idem, Apokalyptiker und Integrierte. Zur kritischen Kritik der Massenkultur [Apocalípticos e Integrados. Para a crítica crítica da cultura de massas], Francoforte do Meno 1984. Cf., para mais, o meu artigo: Tragische Zeichen. Zum Materialismus der historischen Formen – Konturen einer kritischen Kulturphilosophie [Sinais trágicos. Sobre o materialismo das formas históricas – Contornos de uma Filosofia Crítica da Cultura], in: Roger Behrens, Kai Kresse e Ronnie Peplow (ed.), Symbolisches Flanieren. Kulturphilosophische Streifzüge [Deambulações simbólicas. Passeatas filosofico-culturais], Hanôver 2001, p. 26 ss.
(16) Este não é o local indicado para discutirmos esta problemática. No entanto, não queremos deixar de remeter para a obra colectiva: Dieter Hoß e Heinz Steinert (ed.), Vernunft und Subversion. Die Erbschaft von Surrealismus und Kritischer Theorie [Razão e Subversão. O legado do surrealismo e da teoria crítica], Münster 1997. Benjamin, como crítico do surrealismo, avalia precisamente o papel do riso sobre as figuras de banda desenhada de outro modo, nomeadamente como o momento de uma potencial libertação. O seu exemplo é o Rato Mickey, cf. Walter Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit [A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica] (primeira versão), in: Gesammelte Schriften [Obras completas] vol. I-2, Francoforte do Meno 1991, p. 462.
(17) Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Iluminismo], ibidem, p. 82. (c)
(18) Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Iluminismo], ibidem, p. 82 s. (A citação é retirada da Odisseia.) (c)
(19) Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Iluminismo], ibidem, p. 81 s. (c)
(20) A distinção de Aristóteles entre a teoria e a praxis (e a poiesis), no entanto, incluiu no seu pensamento, de um modo bem materialista, o carácter processual e o sofrimento (pathos); o mesmo também se encontra implícito na condição dinâmica da realidade como possibilidade. Cf. relativamente a este complexo: Ernst Bloch, Subjekt – Objekt. Erläuterungen zu Hegel [Sujeito – Objecto. Explanações sobre Hegel], Francoforte do Meno 1971, p. 438.
(21) Adorno, Resignation [Resignação], in: Gesammelte Schriften [Obras completas] vol. 10-2, ibidem, p. 796.
(22) Irmãos Grimm: Hans im Glück, in: Irmãos Grimm, Kinder- und Hausmärchen, vol. 1, Estugarda 1980, p. 407 ss. (todas as citações subsequentes deste conto referem-se a esta edição).
(23) No entanto, semelhante entusiasmo também ainda comporta outros motivos; também aos aventureiros reais, e à sua felicidade e infelicidade, parece aplicar-se: comiseração, sim, mas nada de solidariedade. Pela sua sorte são admirados, dos seus azares, porém, eles próprios têm a culpa.
(24) A formulação de uma “promesse de bonheur” remonta a Stendhal e é radicalizada pela teoria estética e pela crítica da indústria cultural em Adorno: Trata-se da beleza como promessa de felicidade; a arte é lugar-tenente da felicidade, e é-o de um modo tanto mais radical, quanto mais a felicidade, no capitalismo, se converte em um mero sucedâneo (cf. Konrad Lotter, Schönheit als Glücksversprechen [A beleza como promessa de felicidade], Colónia 2000). É uma figura dialéctica: por um lado, na sociedade da troca de mercadorias, a promessa de felicidade permanece por cumprir, vã; por outro lado, porém, é precisamente esta promessa de felicidade que – em Adorno, contida precisamente na arte – remete para a possibilidade utópica de uma sociedade libertada. A indústria cultural, porém, apela à regressão isenta de imaginação que já toma a promessa da felicidade pela felicidade propriamente dita, dando-se por satisfeita com os sucedâneos, nem que seja a reles embriaguês.
(25) Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Iluminismo], ibidem, p. 167. (c)
(26) Irène Aghion, Claire Barbillon e François Lissarrague, Reclams Lexikon der antigen Götter und Heroen in der Kunst [Dicionário Reclam dos deuses e heróis clássicos na Arte], Estugarda 2000, p. 308.
(27) Aghion, Barbillon e Lissarrague, Reclams Lexikon der antigen Götter und Heroen in der Kunst [Dicionário Reclam dos deuses e heróis clássicos na Arte], ibidem, p. 308.
(28) Cf. Alfred Schmidt, Zum Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], in: idem, Drei Studien über Materialismus [Três estudos sobre o materialismo], Munique, Viena 1977, p. 183.
(29) Cf. Schmidt, Zum Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], ibidem, p. 147.
(30) Cf. Schmidt, Zum Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], ibidem, p. 149.
(31) Schmidt, Zum Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], ibidem, p. 179; cf. igualmente: Herbert Marcuse, Zur Kritik des Hedonismus [Para a crítica do hedonismo], in: Zeitschrift für Sozialforschung [Revista de investigação social] ano 7 (1938), Munique 1980 (reimpressão), p. 55 ss.
(32) Schmidt, Zum Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], ibidem, p. 150.
(33) Cf. Schmidt, Zum Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], ibidem, p. 172. Não é por nada que esta redução teórica da felicidade subjectiva reaparece no amor – diz-se de forma análoga: Não há amor sem sofrimento.
(34) Georg Friedrich Wilhelm Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte [Prelecções sobre a Filosofia da História], Werke [Obras] vol. 12, Francoforte do Meno 1970, p. 41 s.
(35) Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte [Prelecções sobre a Filosofia da História], ibidem, p. 32.
(36) Marcuse, Der eindimensionale Mensch [O Homem unidimensional], Neuwied e Berlim 1969, p. 248.
(37) Adorno, Ästhetische Theorie [Teoria Estética], Gesammelte Schriften [Obras completas] vol. 7, ibidem, p. 461.
(38) Schmidt, Zum Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], ibidem, p. 190.
(39) Schmidt, Zum Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], ibidem, p. 189.
(40) Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie [Esboços da crítica da economia política], Berlim 1953, p. 505.
(41) Marcuse, Kulturrevolution [Revolução cultural], in: idem, Nachgelassene Schriften [Obras póstumas] vol. 1: Das Schicksal der bürgerlichen Demokratie [O destino da democracia burguesa], Lüneburg 1999, p. 117.
(42) Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie [Esboços da crítica da economia política], ibidem, p. 504 s.
(43) Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie [Esboços da crítica da economia política], ibidem, p. 507.
(44) Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie [Esboços da crítica da economia política], ibidem, p. 507.
(45) Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie [Esboços da crítica da economia política], ibidem, p. 507.
(46) Marcuse, Der eindimensionale Mensch [O Homem unidimensional], ibidem, p. 25.
(47) Sigmund Freud, Die am Erfolg scheitern [Os que sucumbem ao êxito], in: Studienausgabe [Edição de estudo] vol. X, Francoforte do Meno 2000, p. 236.
(48) Blumfeld, Anders als glücklich [Em vez de feliz], em: Testament der Angst [Testamento do medo], 2001. A linha aproveitada como título remonta a uma formulação de Kristof Schreuf.
(49) Cf. Adorno, Minima Moralia, Reflexionen aus dem beschädigten Leben [Reflexões vindas do interior da vida danificada], Gesammelte Schriften [Obras completas] vol. 4, p. 55 e 43. O todo é o não verdadeiro parafraseia Hegel, Phänomenologie des Geistes [Fenomenologia do Espírito], Werke [Obras completas] vol. 3, ibidem, p. 24: “Das Wahre ist das Ganze” [O verdadeiro é o todo].
(50) A felicidade na infelicidade dos impotentes continua a ser a embriaguês. Na “Dialéctica do Iluminismo”, Adorno e Horkheimer escrevem sobre a “felicidade dos estupefacientes …, com cuja ajuda, em ordens sociais cristalizadas, as camadas subjugadas foram tornadas capazes de suportarem o insuportável.” Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Iluminismo], ibidem, p. 81; À felicidade como sensação de prazer devida a drogas e compostos químicos também se refere Freud, Das Unbehagen in der Kultur [O mal-estar na cultura], ibidem, p. 210. Cf. a este propósito igualmente Walter Benjamin, Der Surrealismus. Die letzte Momentaufnahme der europäischen Intelligenz [O surrealismo. O último instantâneo da inteligência europeia] GS, vol. II-1, p. 297: A verdadeira superação da iluminação religiosa, a criadora, no entanto, deveras não reside nos estupefacientes. Reside, sim, numa iluminação profana, numa inspiração materialista e antropológica para a qual o haxixe, o ópio e seja lá mais o que for podem constituir a escola preparatória.”
(51) A Medicina problematiza este facto sob a forma dos sintomas psicossomáticos; deparamos com a anorexia, com perturbações alimentares em geral, doenças do foro neurológico, sobretudo doenças provocadas pela obrigatoriedade do trabalho, assim como cancro e, por fim, o alcoolismo e afins. – Sob outra perspectiva, as gender studies, Judith Butler, Donna Haraway e outros, puseram em causa o corpo aparentemente biológico, constituindo-o como social.
(52) Cf. Schmidt, Zum Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], ibidem, p. 141.
(53) Cf. Freud, Freud, Dia am Erfolg scheitern [Os que sucumbem ao êxito], in: Studienausgabe [Edição de estudo] vol. XI, ibidem, p. 41 s.
(54) Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte [Prelecções sobre a Filosofia da História], Werke [Obras] vol. 12, ibidem, p. 41 s.
(55) Adorno e Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung [Dialéctica do Iluminismo], ibidem, p. 196. (c)
(56) Begriff des Glücks in der materialistischen Philosophie [Sobre o conceito da felicidade na Filosofia materialista], ibidem, p. 195.
(57) Blumfeld, Eintragung ins Nichts, em: Testament der Angst [Testamento do medo], 2001.
(58) Citado segundo Benjamin, Über den Begriff der Geschichte [Sobre o conceito da História], in: GS vol. 1-2, p. 697.
Notas do tradutor
(a) Os conceitos de “sorte” e “felicidade”, em alemão, são expressos pela mesma palavra (Glück).
(b) Glück: felicidade, sorte. (a)
(c) Edição brasileira: Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar, editor.
Original alemão: Emanzipatorische Praxis und kritische Theorie des Glücks in Revista KRISIS, nº 26, Janeiro de 2003.
Tradução de Lumir Nahodil, 16.11.2003