Anotações a propósito da crítica do Iluminismo
Anselm Jappe
Seria de uma banalidade considerável acusar-se a crítica do Iluminismo de, ela própria, estar ainda apegada ao pensamento iluminista. As diversas variantes desta acusação foram rechaçadas, de um modo assaz convincente, pelo próprio Robert Kurz. Mas existe um ponto em que a crítica do Iluminismo realmente parece permanecer profundamente iluminista, e até mais iluminista que o próprio Iluminismo: estamos a falar do desejo de fazer tábua rasa, do iconoclasmo, da ruptura com todas as tradições. Se apenas podemos “virar as costas, com raiva e nojo, a todo o lixo intelectual do Ocidente” (Robert Kurz, Razão Sangrenta, in: Krisis 25 [2002]), p. 66 [nº 1, 2º §, N.T.]; no que se segue, será citado como RS), o que nos resta é realmente começarmos do zero sem nos podermos basear sobre qualquer coisa que viesse de trás. Assim, também o esquema hegeliano de tese, antítese e síntese vai agora para à lixeira da História, juntamente com todo o resto do pensamento iluminista. É a ruptura pura e dura, a partir de amanhã nada será como dantes. No entanto é precisamente essa suposição que distingue o Iluminismo do século XVIII e os seus prolongamentos que se estendem até ao presente de todas as figuras do pensamento anteriores (se omitirmos algumas, em todo o caso diferentes, ideias religiosas da palingénese e da renovação cíclica do mundo).
Para os iluministas, toda a História até à sua chegada fora um mal-entendido pegado, uma cadeia ininterrupta feita de crimes, estupidez e toleima. “A Humanidade de até então, assim opina ainda Kant em todas as suas obras principais, tinha condicionado o seu pensamento e a sua actuação por erros sistemáticos e inconsequências; ela ter-se-ia dedicado à irracionalidade e a inclinações erróneas” (RS, p. 72 [nº 5, 2º §, N.T.]) – é este o resumo que Kurz faz de Kant. Mas a sua própria perspectiva não é muito diferente. O Iluminismo (cujo pathos, não obstante toda a crítica a seu respeito, ainda é susceptível de tocar-nos bem no fundo) gostava de se comparar a si próprio com a aurora, uma vez que todos os séculos que o antecederam não teriam passado de uma longa noite. Quem está possuído pela ideia de poder fazer tudo melhor e de ser capaz de recriar o mundo com base na própria razão, ou no que se julga sê-lo, tem toda a facilidade em dar expressão à híbris e ao mecanicismo da sociedade industrial da mercadoria, para a qual o mundo não passa de um material em que a forma pura se pode realizar a bem do seu melhor enaltecimento. Por conseguinte, os movimentos revolucionários dos últimos 210 anos, na sua qualidade de expressão mais concentrada da lógica iluminista, também levaram ao paroxismo esta concepção do início em tudo novo (e assim pareciam simpáticos por comparação aos reformistas que teimavam em considerar que muito do que vinha de trás merecia ser salvo); foi esse o caso da Revolução francesa com o seu novo calendário, foi o da russa com o seu “homem novo”, o da espanhola, em que Buenaventura Durruti vaticinou que o proletariado iria herdar apenas ruínas, mas que isso não o assustava, foi o caso da revolução cultural chinesa com a sua rejeição dos “quatro velhos: ideias, cultura, costumes e usos” e as suas orgias da destruição. As reformas de Atatürk, que se estendiam mesmo à escrita e à língua, aos nomes de família e ao calendário oficial, constituem outro exemplo. Invariavelmente o novo estado virava as costas, “cheio de raiva e nojo”, a todo o lixo do passado a fim de criar um mundo novo à sua imagem e semelhança. Deparamos igualmente com a mesma postura nos extremistas do Iluminismo tardio, como é o caso dos pós-modernos e dos movimentos de emancipação puramente parciais (emancipação da mulher, dos homossexuais e dos “povos colonizados” sob a forma da mercadoria), aos quais o presente se afigura como a primeira época na História em que, ao fim de milénios a perder de conta, se vislumbra um raio de luz, por muito ténue que seja.
Mas se, segundo Kurz, o Iluminismo não encerra quaisquer momentos emancipatórios transcendentes, e se pressupusermos a sua existência, de onde vêm estes afinal? Ou seja, a menos que tenham caído do céu aos trambolhões, e se não forem, tal como pensa a apropriação marxista da ideologia iluminista, um produto colateral ou um “derivado dialéctico”das próprias ideias do Iluminismo, eles já devem ter existido no alvor do Iluminismo. Isso quer dizer que provêm das formações sociais que precederam o Iluminismo. Como seria possível de outro modo que uma História tão causadora de nojo e raiva tivesse produzido seres humanos capazes de tecer críticas à sociedade da mercadoria? Como é que se explica que os sujeitos da mercadoria não sejam tão reféns da sociedade da mercadoria como as formigas o são face ao formigueiro? A afirmação de que a sensibilidade, no contexto do Iluminismo, apenas pode ser sangrenta e perversa (RS, p. 82 [nº 14, 4º §, N.T.]) não é senão um exemplo da lógica identitária redutora: afinal – e mais ainda no Romantismo – não existiram apenas carnificinas e mostras de necrofilia, mas também houve formas de sensibilidade bem diversas. E o que se exprimia nestas era tudo menos o que tem cabimento na lógica do valor. Se não houvesse nada a mexer que fosse de sinal contrário, o Iluminismo tinha ganho à partida e, passados dois séculos, nenhuma resistência seria pensável. A afirmação de Kurz de que a lógica do valor acaba por sobrepor-se e dar o seu abraço de morte mesmo a tudo que dissocia entra, de resto, em flagrante contradição com a sua observação repetida, segundo a qual em todas as formas de organização social existentes até à data, tanto na iluminista como nas que precederam a Modernidade, existiu algo nos indivíduos que não se encaixava totalmente na situação em vigor (Robert Kurz, Ontologia Negativa, in: Krisis 26 [2002], p. 39 [alias 34, sub-título 5, 8º §, N.T.]; no que se segue, será citado como ON), visto que os indivíduos sensíveis e sociais se teriam sempre digladiado com a sua própria forma negativa (ON, p. 43 [alias 38, sub-título 7, 5º §, N.T.]). No entanto, esta afirmação certamente não deverá ser interpretada no sentido de existir um conflito contínuo entre o Homem “verdadeiro” e as diversas relações que o violentam. Antes parece tratar-se de um conflito entre formas diferentes de fetichismo ou de mediação. Mas se a Humanidade não se encaixa inteiramente nas relações de fetiche, de onde virá aquela parte que não se encaixa?
Também podemos perguntar: será o moderno fetichismo da mercadoria tão-só o ponto culminante de uma triste História, onde sempre predominou uma ou outra forma de fetiche,(1) significando que a esperança de um dia vir a existir uma sociedade não fetichista não se pode fundamentar em nada que exista ou tenha existido? Ou será que o fetichismo constitui, antes de mais, uma enorme “avaria” da História, uma reviravolta catastrófica no meio de um desenvolvimento da Humanidade que também se caracterizou por numerosos traços positivos (essa parece ser, por exemplo, a opinião de um Karl Polanyi)?
O que está em causa é, por conseguinte, a questão pelo posicionamento da crítica, uma questão que também Ernst Lohoff levanta na sua crítica do meu artigo “Genes, Valores, Revoltas Camponesas” (Krisis 25 [2002]). Dito de outro modo, interessa saber isto: a sociedade da mercadoria, afinal, é má em comparação a quê? Será que existe um termo de comparação positivo, ou será o único disponível imanente e negativo? Ao escrever que a crítica das condições pré-modernas não deve ser feita a partir da posição da Modernidade, mas a partir da posição da crítica da Modernidade (ON, p. 39 [alias 34, sub-título 5, 7º §, N.T.]), Robert Kurz limita-se a empurrar o problema para outro lado. Qual é afinal o ponto de vista a partir do qual se pode fazer uma crítica conjunta da Modernidade e daquilo que a precedeu? Na tentativa de denominar esse ponto podem evidentemente imiscuir-se até elementos “estranhos” à “crítica radical do valor” (Lohoff). É que a crítica do valor constitui uma crítica da socialização do valor exercida no território próprio desta última que demonstra o seu carácter paradoxal e, no fim de contas, a sua insustentabilidade. No entanto ela própria, como crítica do valor, não dispõe de pontos de referência positivos. Contrariamente à prática corrente da variante marxista do Iluminismo, ela não dispõe do argumento de que o capitalismo elabora, no fundo, conteúdos positivos que apenas teriam de lhe ser arrancados. Para a crítica do valor, a negatividade da socialização do valor não traz no seu ventre a positividade. Por isso, a crítica do valor tem de ir buscar as referências positivas forçosamente ao exterior da mesma, deixando-se inspirar neste empreendimento também por outras abordagens que tentaram formular o seu desagrado para com a sociedade da mercadoria. Se o que importa, como Kurz o postula, é “elaborarmos uma nova diferenciação dos resultados” e “uma arrumação diferente” de “todo o pensamento desenvolvido até à data” (ON, p. 47 [alias 42, sub-título 8, 12º §, N.T.]), nesse âmbito tanto podemos reconhecer uma verdade parcial a alguns elementos isolados do Contra-Iluminismo burguês como a alguns fragmentos do marxismo do movimento operário.
É evidente que já não é possível citarmos um modelo contrário existente como termo de comparação, como o faziam os apologistas da URSS. Nem podemos remeter para situações melhores que teriam existido até há pouco, tal como o fizeram com uma certa predilecção os ludditas ou outros revolucionários por altura da transição da sociedade pré-moderna para a moderna. Não satisfaz tão-pouco a mera ideia de um futuro melhor, desde o simples país das delícias, passando pelo retorno de Cristo, até à mais bela utopia de Bloch, uma vez que estas imagens contrárias têm sempre qualquer coisa de arbitrário. Uma outra possibilidade – e é a que escolhe o próprio Kurz – consiste na afirmação de que o momento emancipatório se fundamenta no sofrimento produzido pela sociedade da mercadoria, ou seja, no facto dos indivíduos reais não se encaixarem na forma social do sujeito, como seja o operário, o assalariado, etc. Nesta linha de raciocínio, a sociedade da mercadoria é pura e simplesmente insuportável, o que não careceria mais de uma explicação do que o facto de tirarmos a mão de cima de um fogão em brasa. Infelizmente o Homem, ou em todo o caso o Homem moderno, demonstra precisamente neste âmbito uma desagradável flexibilidade e capacidade de adaptação. Por certo todos consideram desagradáveis as dores físicas, e passar dez horas por dia a partir pedra também dificilmente poderá parecer um entretenimento a alguém. Mas, pondo de parte exemplos extremos como estes, a experiência do sofrimento dificilmente pode ser generalizada, uma vez que depende da socialização e do hábito. Ter de passar o dia todo com jogos de vídeo e “Playstation” ainda pareceria a muitos dos nossos contemporâneos um castigo do oitavo círculo do inferno. No entanto, para muitos parece não existir nada mais lindo; e para estes seria, ao invés, um sofrimento infernal serem obrigados a ler a teoria do fetiche de Marx ou os poemas de Góngora. Muitos gestores de empresas acham de tal forma o máximo passarem a vida a andar de avião de uma reunião para outra, e nos intervalos entre estas a falar ininterruptamente ao telemóvel, que ficam com sintomas de privação quando não o fazem. Mesmo alguns operários fabris da velha escola supostamente sofriam depressões quando se reformavam. Ao longo de séculos, milhões de pessoas gostaram do jejum, da oração e dos castigos religiosos. Nem sequer o nível fisiológico é uma referência fiável: há quem afirme que pessoas que cresceram em Los Angeles ou em Tóquio têm dificuldades em respirar quando expostas ao ar puro. Muitas pessoas gastam o seu dinheiro penosamente ganho na fábrica para, nas discotecas, ouvirem ruído de fábrica. Breve: o que faz sofrer os indivíduos é extremamente variável. Sob um ponto de vista histórico não são, de modo algum, as situações mais insustentáveis que provocam a maior resistência. Se assim fosse, a história da Índia teria de ser repleta de revoluções. De igual modo já existiram sofrimentos, contradições e desaforos maiores que os que se fazem sentir na Europa ocidental no ano 2002. Para além disso, as revoltas devidas a situações imediatamente insuportáveis foram muitas vezes as mais desorientadas e as mais fáceis de manipular: quem se revolta apenas por fome também pode ser satisfeito com um saco de farinha. Em termos históricos, as reviravoltas maiores costumam produzir-se, antes de mais, onde ao mal-estar (que, afinal, sob uma forma ou outra existe em todo o lado e sempre) vem juntar-se a ideia concreta de algo de melhor, nem que esta seja, ela própria, ilusória.
É precisamente a progressão totalizante da socialização da mercadoria que nos torna cada vez mais difícil reconhecermos o nosso sofrimento, ou vermos nele mais que um vago mal-estar ou a consequência de um falhanço pessoal. O sofrimento é percepcionado sobretudo onde é ressentido como novo e estranho, uma vez que os indivíduos dispõem de um ponto de vista, de uma referência perante a qual o novo sofrimento não se afigura evidente. Assim sendo, a resistência nas fábricas do Norte de Itália, nos anos sessenta e setenta, partia sobretudo dos imigrantes do Sul agrário desse país. As condições de vida destes, nos seus locais de proveniência, não tinham sido necessariamente melhores que as da fábrica. Mas elas ofereciam um termo de comparação suficiente para os deixar ver por exemplo o absurdo do tempo elevado a medida abstracta. No século XVIII dizia-se em Inglaterra que seria mais fácil pôr um veado à frente do arado que levar um habitante das terras altas da Escócia a trabalhar numa fábrica. E muitas vezes o que está em causa nem sequer é a comparação com uma “vida melhor” realmente vivida, mas sim concepções que consideram certas actividades “indignas” ou “imorais”, ou contrárias às origens de uma pessoa. Dersu Uzala, protagonista do filme homónimo de Akira Kurosawa, estranhou na cidade o facto de se ver obrigado a comprar água e lenha.
Kurz nomeia, ele próprio, o ponto de vista a partir do qual pode ser posto a nu a pretensão totalitária do fetichismo da mercadoria, e no qual ele esbarra na prática: os “indivíduos (…) sensíveis e sociais, precisamente em toda a sua diferença qualitativa” (ON, p. 30) que sofrem com a sua incongruência com as formas do fetiche: ou seja, a área dissociada, tudo o que não se enquadra na forma do valor e que nunca pode ser encaixado na mesma por completo. Mas de onde vêm esses “indivíduos reais, sensíveis e sociais” que o próprio Kurz opõe à “sensibilidade abstracta” da Filosofia iluminista? Afinal não se trata aqui do Homem enquanto ser natural biológico mas, sim, do Homem como ser constituído de forma histórica, breve, como ser social. Como é que este surgiu. Tudo indica que tenha sido ao longo de um desenvolvimento de muitos milénios. O indivíduo que não se encaixa por completo na socialização do valor com a sua “sensualidade, objectualidade prática e necessidade social” (RS, p. 76) é claramente um produto histórico, exactamente no sentido dos manuscritos parisienses de Marx: “O olho tornou-se um olho humano, tal como o seu objecto se tornou um objecto social, humano, vindo do Homem para o Homem […] Vai de si que o olho humano desfruta de outro modo que o olho cru, não humano, o ouvido humano, de outro modo que o ouvido não trabalhado, etc. […] É que não só os cinco sentidos, mas igualmente os assim chamados cinco sentidos do espírito, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), por uma palavra, o sentido humano, apenas nascem da existência do seu objecto, pela natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é o resultado do trabalho de toda a história universal […] Assim sendo, é necessária a objectualização da essência humana, tanto em termos teóricos como sob o ponto de vista prático, tanto a fim de tornar humanos os sentidos do Homem como para criar um sentido humano adequado a toda a riqueza de um ser humano e natural” (MEW 40/540-542).
O Homem que não obedece à forma do valor não é, portanto, uma mera coisa do futuro, sendo já existente, ainda que o seja sob uma forma parcelar. E não o é como uma faúlha divina, mas como resultado de um desenvolvimento histórico, resultado esse que no essencial já deve ter sido presente nos finais do neolítico e por altura do nascimento das altas culturas agrárias, mesmo que se tenha exo-diferenciado fortemente nos milénios subsequentes. De outro modo, como poderia explicar-se que ansiamos por Paz e beleza, amor e amizade, harmonia e estímulo, ociosidade e convívio? Afinal não se trata de uma herança biológica, como é o caso do reflexo de retrair a mão do fogão escaldante. De facto, este processo da humanização no sentido enfático pode fracassar a qualquer momento, tanto a nível individual como no âmbito colectivo.
Mas se este “homem real” constitui um ponto de diferenciação positiva face à lógica do valor, também as condições e os processos que o criaram não podem ter sido inteiramente maus. No entanto eram, sem dúvida, condições fetichistas. São pensáveis duas respostas a este paradoxo, visto existirem duas concepções possíveis de “fetichismo” que mesmo no contexto da crítica do valor nem sempre são diferenciadas. Ou o fetichismo designa uma espécie de relações de domínio transmitidas por objectos. Neste sentido, por exemplo o feudalismo constituía um sistema de fetiche mediado pela posse de terra. A afirmação de Kurz, segundo a qual as formas de fetiche mais antigas teriam assentado ao Homem de formas comparativamente soltas, como máscaras, parece ser próxima desta concepção do fetichismo como algo imposto aos indivíduos. As formas anteriores do fetiche foram, nesse sentido, muito menos totalitárias que o fetiche da mercadoria, aflorando por assim dizer as sociedades reais em uma passagem rasante, limitando-se a sugar e a esbanjar o seu mais-produto. Muito menos que o capitalismo, elas próprias contribuíram para a produção desse mais-produto. A verdadeira História da Humanidade de certo modo desenrolava-se debaixo desta superfície, e a este nível podemos de facto constatar, no mínimo em relação a certas épocas e regiões, qualquer coisa como um “progresso”: sejam os melhoramentos no âmbito da agricultura ou da navegação ou do transporte ao longo da Idade Média (introdução da rotação trienal das culturas, do arado com rodas, do moinho movido a água ou pelo vento, da bússola, do estribo), sejam os progressos culturais, tais como o refinamento do sentido rítmico no desenvolvimento do lirismo europeu a partir de 1100. O poder político aqui muitas vezes não passava de um factor de perturbação puro e simples: se os alimentos que um camponês europeu tinha à sua disposição a partir do fim da Idade Média estiveram continuamente aquém do nível medieval, tal de modo algum se deveu a uma redução da produtividade dos campos enquanto tal. As fomes do século XVII não foram devidas, em primeira linha, a um desenvolvimento insuficiente da produtividade, visto que no plano da produtividade agrícola os primórdios da Modernidade foram de facto mais “avançados” que a Idade Média. Por isso existem motivos para se supor que a Humanidade se tenha libertado aos poucos do seu apego à natureza e que ela, se conseguisse libertar-se das suas amarras políticas, teria sido capaz de se desenvolver rumo a condições emancipatórias. Sobre esta linha de desenvolvimento, ascendente apesar de reveses gravíssimos, a partir da “revolução das armas de fogo” a sociedade da mercadoria teria desabado como uma intempérie. Afinal é disso que se trata na crítica do Iluminismo, tal como já foi exposta no Livro Negro do Capitalismo: a socialização do valor sobrepôs-se qual mortalha às condições que, mesmo que não tenham sido de uma autodeterminação real, ao menos poderiam ter ascendido a esse estatuto ou o foram de formas incipientes, uma vez que não eram mediadas pelo dinheiro e pela mercadoria, pelo valor e pelo direito, pelo trabalho e pelo estado. A crítica do Iluminismo admite, ela própria, que nas “sociedades agrárias de um contexto pré-moderno que eram sumariamente desqualificadas” pela ideologia iluminista não teria existido tão-só uma “estrutura da sociedade similar à de uma torpe manada de gado” sem qualquer amostra de “individualidade” (ON, p. 19 [alias 14, sub-título 2, 1º e 2º §§, N.T.]), mas igualmente pontos de partida positivos. Decerto apenas se trata de pontos de partida. Mas estes, ainda assim, podem facultar-nos um ponto de referência parcial. E evidentemente sempre também estão em causa as “oportunidades soterradas”. Esta designação não se refere apenas às revoltas fracassadas, mas igualmente a todas as formas, sob as quais as culturas pré-capitalistas deram uma ideia daquilo, de que teriam sido capazes: nos âmbitos da música e da poesia lírica, do canto e da poesia épica, do mito e da religião.
Dum ponto de vista crítico do valor, no entanto, há que constatar que a estrutura fetichista de uma sociedade, mesmo pré-moderna, consiste em uma estrutura inconsciente da consciência e actuação quotidiana que, para além das estruturas de poder, abrange igualmente o plano micrológico. Sob esta perspectiva, mesmo onde, nas sociedades agrárias, existiram relações de reprodução mais ou menos autodeterminadas, a propriedade fundiária constituía o verdadeiro sujeito social, o “sujeito automático”. Neste caso, o “fetichismo” acaba por ser idêntico à mediação social “alienada” ou “inconsciente”, como “subordinação colectiva a relações formais alienadas e autonomizadas” (ON, p. 41 [alias 36, sub-título 6, 5º §, N.T.]). Todas as sociedades existentes até à data não só foram dominadas exteriormente pelo fetichismo. Antes eram constituídas de forma fetichista. Nesse caso, porém, o indivíduo real, social, sensível surgido ao longo dos últimos oito mil anos é, também, a consequência de relações de fetiche. O resultado final destas seria, nesse caso, mais ambíguo que puramente negativo(2). A “missão civilizatória” com que o capitalismo e o Iluminismo tanto gostam de se vangloriar pode ser atribuída com muito mais pertinência à História anterior ao capitalismo(3). E se o é, é-o a fim de lidar com ela da mesma maneira como Marx o quisera fazer com a “missão civilizatória” do capitalismo: não encará-la como uma venerável herança, mas como um ponto de partida que urge desenvolver sob circunstâncias alteradas. Existem motivos de sobra para virarmos as costas ao Iluminismo com um sentimento de raiva e nojo. Mas não necessariamente de todo o “Ocidente”. E o que quer isso dizer? Dos seus filósofos? Semelhante atitude é muitas vezes justificada. Mas também da sua música? Da sua literatura? Da arquitectura tradicional(4)? Evidentemente nenhuma sociedade antiga pode constituir uma referência positiva no seu todo, e todas, ou quase todas elas provavelmente mereceram perecer. Deve-se à totalidade das suas realizações vitais que se tenha desenvolvido uma “Humanidade” que realmente possa reivindicar não partilhar com os seus parentes animais mais que meia dúzia de genes e que até por vezes produziu resultados de “uma grandeza única” (Lohoff). Está certo, perante os homens de hoje, profundamente moldados pelo Iluminismo e pela socialização do valor, semelhantes afirmações podem parecer cómicas ou ousadas.
Evidentemente não existe uma “natureza” a que não se tivesse já sobreposto a sociedade. Não existe uma natureza que pudesse ser invocada como ponto de referência e face ao qual a falsidade da sociedade da mercadoria se revelasse como tal, e muito menos uma natureza que possa servir de estabelecimento normativo no sentido de um ponto de partida, qualquer afastamento do qual seria pecado. Mas existe uma “natureza” no âmbito do desenvolvimento da Humanidade. Tal como se pode falar de uma “ontologia negativa” (embora semelhante expressão, no fundo, constitua um oximoro) no âmbito das relações de fetiche históricas – ou seja, de circunstâncias que, não se encontrando associadas ao “Homem” enquanto tal, podem ser encontradas mais ou menos em todas as formas da “pré-história” a registar até à data – também se pode falar de uma “natureza” imanente à História(5). Esse ser “social e sensível” que hoje se defende dos desaforos do capitalismo manteve-se, no essencial, com uma surpreendente constância e uniformidade desde a revolução neolítica até às vésperas da revolução industrial. É neste enquadramento que pode ser designado de “natural”. Esta “natureza” não é uma origem, mas ela própria um produto histórico caracterizado por um devir constante(6). Como Lohoff admite, a agricultura é mormente uma natureza tornada histórica – mas que continua a assentar sobre uma base natural. A sociedade da mercadoria tenta criar um ser à sua própria imagem e semelhança que não conheça nada senão a sociedade da mercadoria. Mas até acabar por não o conseguir, defronta-se invariavelmente com o “velho Adão” que, ao menos de vez em quando, sente a sociedade da mercadoria como a impertinência que ela realmente é. No decurso dos milénios formou-se um substrato “quase que natural”. Assim é “natural”, neste âmbito histórico, ingerirmos alimentos cozidos sentados e com calma, ao passo que parece “pouco natural” devorarmos de pé um hambúrguer – embora os frequentadores do McDonald’s não parecem sofrer com isso como se sofre quando se põe a mão em cima do fogão aceso.
Segundo Lohoff, nem todas as invenções da sociedade da mercadoria devem ser rejeitadas apenas por serem invenções da sociedade da mercadoria(7). É decerto adequada a distinção entre as tecnologias “apocalípticas” como a energia nuclear ou as tecnologias genéticas, que constituem experiências ao vivo com consequências irreversíveis, e outras tecnologias como por exemplo a informática. Mas as tecnologias “apocalípticas” também são fáceis de criticar e encontram-se de qualquer modo debaixo do fogo cerrado da crítica pública. Já é mais difícil tentarmos detectar as subtis e subterrâneas alterações na existência humana que partem das tecnologias aparentemente mais inofensivas. Aqui perfila-se, peça por peça, o “Homem Novo” da sociedade da mercadoria, até que também aqui deixe de haver retorno. Não faz falta a crítica do valor para rejeitarmos um reactor de plutónio. Mas talvez seja necessária para demonstrarmos, sem recurso a concepções morais convencionais, por que a promessa da biotecnologia de tornar férteis casais estéreis ou homossexuais nada tem de humano, constituindo apenas mais um passo em direcção ao sujeito plenamente automatizado.
Notas:
(1) O capitalismo é, segundo Kurz, o “resumo maligno de uma negativa história do sofrimento [será que existe uma positiva?] da Humanidade” (ON, p. 42, [alias 37, sub-título 7, 2º §, N.T.]) sendo que o “sujeito do valor” “agudizou insuportavelmente” a “história de sofrimento da Humanidade” (ON, p. 46, [alias 41, sub-título 8, 9º §, N.T.]).
(2) Aqui poder-se-ia objectar que, se formações sociais fetichistas podem justificar-se com resultados positivos pontuais, também o capitalismo terá muito a referir em seu favor, começando pelo tratamento dentário sob anestesia. Mas o que está em questão não são, afinal, os resultados individuais, mas o tipo de Homem que é formado por uma determinada forma do fetiche, e a esse nível o capitalismo destaca-se por uma negatividade sem paralelo na História.
(3) Se Marx encara toda a História anterior como “pré-história”, tal afinal não equivale ao desprezo por todo o desenvolvimento anterior, mas à rejeição das condições políticas correspondentes – se é que esta designação não se enquadra, ela própria, em um esquema iluminista da História, do qual Marx em muitos aspectos não se afastava grandemente.
(4) Aqui não se trata, de modo algum, de uma atitude típica da burguesia culta que afere uma dada formação social com base nos respectivos “valores culturais” e tende para se esquecer da miséria de massas de uma época se esta produziu um Bach ou um Goethe para a fruição refinada dos poucos felizardos. Antes pelo contrário, aqui também se trata das criações colectivas e anónimas do dia-a-dia como a música e a poesia tradicionais, cuja prática era para muitas sociedades o verdadeiro sentido da sua existência. Também é aqui referida a “cultura” em um sentido mais lato, que engloba o estilo arquitectónico, o modo de vestir, o artesanato, a caça, os jogos, os concursos, as artes de cavalaria etc.
(5) “A natureza que se forma na História humana – no acto de criação da sociedade humana – é a verdadeira natureza do Homem […] Para que o ‘Homem’ se torne objecto da consciência sensível e a necessidade do ‘Homem enquanto Homem’ se torne uma necessidade, para isso toda a História é a História do desenvolvimento. A História, por seu lado, é uma parte real da história natural, do devir da natureza em Homem” (MEW 40, 543-544).
(6) Talvez a esquerda alemã – que, como é sabido, passa a vida a querer aprender com os erros do passado – tenha realmente uma sensibilidade especial para os perigos que resultam da exaltação da natureza como estabelecimento normativo reaccionário e tipicamente alemão. Mas talvez essa acusação apenas sirva como moeda de troca fictícia em batalhas sectárias, em que um alemão insulta o outro de alemão e aquele que se manifesta contra os maus tratos infligidos aos animais é facilmente tratado por nazi. Abordagens que propõem como alternativa à sociedade da mercadoria um regresso à Idade da Pedra ou então à Idade Média têm presentemente um certo sucesso nos EUA (em especial a “deep ecology” de John Zerzan) e em França (por exemplo Michel Bounan), mas sem que os seus opositores desatem por isso logo a gritar “nazis!”.
(7) Às frigideiras revestidas a teflon há que contrapor, concretamente e com veemência, que são cancerígenas, e não ao nível moral o facto de serem um produto colateral da indústria de armamentos e aeroespacial. Também a auto-estrada não é má só porque foi Hitler quem a construiu. Mas também não a construiu por acaso. Pelos seus frutos devereis reconhecê-los.
in Revista KRISIS, nº 26, Janeiro de 2003.
Tradução de Lumir Nahodil, 18.09.2003