Da essência do capitalismo – uma introdução
Christian Höner
Os primeiros teóricos do valor foram os grandes expoentes da economia burguesa, Adam Smith e David Ricardo. Eles partiam do ponto de vista de que o trabalho necessário para realizar um produto constituía seu valor. O trabalho despendido reencontra-se de certa maneira na mercadoria e dá-lhe assim a qualidade de possuidora do valor. Smith e Ricardo não queriam ou não podiam responder à pergunta sobre por que, em resumo, nas sociedades produtoras de mercadorias os produtos recebem um determinado valor. A resposta a essa pergunta foi dada por Karl Marx, um crítico do sistema de produção mercantil. Nele a explicação do valor também parte da análise da mercadoria. O que há então de tão fundamental a ser descoberto na mercadoria?
Contrariamente a um produto qualquer, a mercadoria se define pelo fato de poder ser trocada por uma outra mercadoria. A mercadoria, um martelo, por exemplo, não possui portanto apenas a qualidade de ser feito de madeira e aço e permitir enfiar pregos numa parede. Como mercadoria, o martelo possui a “qualidade” de ser trocável. O que isso significa? Para ficarmos nesse exemplo, como trocar um martelo por uma garrafa de cerveja? A cerveja e o martelo são dois objetos completamente diferentes que não servem para satisfazer as mesmas necessidades. Essa diferença tem importância para quem quer beber um copo de cerveja ou pregar algo na parede. Mas para a troca, como operação lógica, sua utilidade concreta não é relevante. No ato de troca, trata-se de trocar coisas iguais ou equivalentes. Se não fosse o caso, trocar-se-ia sem hesitação um pedaço de manteiga por um automóvel. Mas qualquer criança sabe que um automóvel tem mais valor. De maneira evidente, portanto, não é o atributo qualitativo (a sua natureza concreta ou sensível) de uma mercadoria que torna a troca possível. Cerveja, martelo e automóvel devem possuir algo que os tornem semelhantes e, portanto, comparáveis.
O que há de comparável entre uma boa cerveja e um martelo firme?
Ambos só existem porque um ser humano despendeu sua energia para fabricá-los. Mas não se trata aqui das atividades concretas que o fabrico da cerveja ou de um martelo necessitam; pois como tais são completamente diferentes. As atividades tornam-se idênticas e comparáveis apenas quando faz-se abstração da sua natureza concreta. Já não se trata mais do procedimento concreto de preparo da cerveja ou do fabrico de um martelo, mas unicamente da energia que foi despendida. Marx utilizou para descrever esse processo o termo “trabalho abstrato”. O trabalho abstrato, de acordo com Marx, se objetiva na mercadoria e cria o seu valor. Por conseguinte, para apreender o valor de uma mercadoria é necessário pôr de lado qualquer atributo concreto do martelo. O que se tem então nas mãos é uma pequena e bizarra porção abstrata de dispêndio de energia humana.
A mercadoria possui assim uma dupla natureza. Por um lado ela é concreta e sensível e, por outro, uma “coisa-valor” meramente quantitativa e abstrata. Marx chama de valor de uso o lado concreto-sensível da mercadoria. Para ele o valor de uso é uma categoria trans-histórica. Mas na realidade o valor de uso está sujeito ao diktat do valor de diferentes maneiras. Primeiramente, produz-se apenas coisas que podem se exprimir em valor ou se realizar indiretamente através da valorização. Em segundo lugar, o diktat da valorização domina o próprio processo de produção. Processo de produção e produto são organizados com o propósito da valorização. Constata-se que tanto a produção quanto os seus produtos são realizados em função da imposição da eficácia econômica abstrata. Podemos então deduzir que o valor de uso não é senão a expressão concreta da abstração do valor. O valor de uso representa a utilidade somente num sentido abstrato: uma bomba é também concreta-sensível e possui uma certa utilidade. Os escândalos atuais na indústria agroalimentícia mostram que a afirmação de Marx segundo a qual os pequenos pães fabricados numa sociedade feudal têm o mesmo gosto que os fabricados pelo capitalismo já não se sustenta. O valor de uso, por conseguinte, deve ser redefinido, e não como uma constante transistórica, mas como algo que pertence à lógica da mercadoria.
Como mensurar a quantidade de valor?
Parece claro que o tempo necessário, gasto em energia humana, para a produção da mercadoria tem um papel. Mas aí há um problema: não ocorreria a um fabricante de automóveis a idéia de trabalhar mais rapidamente para aumentar o valor de seu veículo? O que de resto não adiantaria. Ele deve se confrontar à concorrência e ao nível técnico e científico da produção de automóveis. Por conseguinte, pode-se dizer que a grandeza de valor é dada pela quantidade de trabalho abstrato, dependente da média do nível de produtividade social. Sabemos agora graças a Marx que o tempo de trabalho abstrato, dependente do nível de produtividade, é o que define a magnitude do valor. Mas como se pode calcular exatamente essa grandeza? A resposta é simples, não se pode. Existem muitos locais de trabalho onde o tempo de cada atividade é controlado, mas simplesmente não existem instrumentos de medida para definir o tempo de trabalho abstrato e menos ainda para definir o nível médio de produtividade social. Que mesmo assim se possa colocar um preço sobre cada mercadoria, como podemos ver nos supermercados, decorre do fato que valor e preço não são coisas idênticas. Poderíamos dizer que o valor é uma espécie de cordel ao redor do qual os preços circulam.
Quem define qual mercadoria tem qual valor?
A resposta também é tão simples que causa irritação: são as próprias mercadorias. A loucura dessa afirmação salta aos olhos. As coisas, por definição, não têm vontade e muito menos podem tomar decisões. Mas, de certa maneira, é assim mesmo que ocorre. Por quê? Trocando diariamente os seus produtos, as pessoas, na sociedade burguesa, igualam as suas formas de atividades. Essa equivalência confere aos produtos a propriedade especial de possuir um valor. Essa qualidade é fantasmagórica pois o produto, pela sua natureza, não possui qualquer valor. O valor de uma mercadoria, por exemplo, um diamante, não pode ser descoberto em sua própria estrutura, mesmo através da análise de seus átomos, visto que encontraríamos apenas átomos de carbono. Por conseguinte, confrontamo-nos com um paradoxo: o valor é ao mesmo tempo existente e inexistente. As coisas não possuem um valor natural, só as relações de troca entre os seres humanos fazem nascer o valor. Assim, e de modo paradoxal, o comportamento das pessoas torna-se uma “qualidade” das coisas. Tais relações “entram” nas coisas e “animam” o corpo das mercadorias que só então podem “comportar-se” em relação a outras mercadorias.
Por que o valor é um fantasma?
A relação social entre humanos inverte-se numa relação entre as coisas. Essa relação de coisas pode evidentemente ser apenas uma abstração, mas trata-se de uma abstração real, não podendo se dissipar senão quando as pessoas pararem de entrar em relação social desta maneira muito específica. Marx chamou essa incapacidade de entrar em relação social a não ser através dos “produtos da mão humana” de fetichismo da mercadoria. O fundamento místico fetichista da sociedade produtora de mercadorias “esclarecida” encontra uma analogia no domínio da religião. “É somente a relação social particular das pessoas que toma para elas aqui a forma fantasmagórica de relação de coisas. Para encontrar uma analogia, é preciso portanto sumir nas trevas do mundo religioso. Lá os produtos da cabeça humana parecem ser animados por uma vida própria, personagens independentes têm relações entre eles e com os humanos. A mesma coisa passa-se no mundo das mercadorias com os produtos da mão humana.” (K. Marx, O Capital I). Em sociedades dominadas por totens, deuses da natureza, Deus ou mercadoria, a síntese social não se passa sob a forma de comunicação social imediata. Ela se realiza indireta e inconscientemente, referindo-se a algo aparentemente “exterior” que parece, independentemente da atividade consciente do humano, estruturar a liame social como uma matriz. Essa matriz não aparece como uma relação feita pelos seres humanos, mas como uma relação quase natural, obedecendo às “leis da natureza”. Mas essa pretensa lei da natureza não é outra coisa senão que a própria forma social através da qual os seres humanos, na sociedade produtora de mercadorias, referem-se uns aos outro. Assim não basta que essa forma inconsciente torne-se simplesmente consciente. Trata-se bem mais de transformar a forma da prática social das relações entre os indivíduos, de modo que o processo de mediação humano-humano e humano-natureza seja realizado através da comunicação consciente.
A produção de mercadorias: de um fenômeno marginal até…
Ainda que a maioria dos sociólogos e dos historiadores burgueses parta do ponto de vista de que trocar faz parte da natureza humana, a troca de mercadorias nas sociedades pré-modernas não era o princípio de socialização. Lá onde havia a troca tratava-se de um fenômeno marginal. As sociedades pré-modernas eram sociedades baseadas na economia de subsistência e dispunham de diferentes formas de distribuição dos produtos, como por exemplo as relações de dependência ou de poder pessoais.
É uma característica das sociedades capitalistas que a troca tornou-se o único princípio do “metabolismo do homem com a natureza”. Historicamente, a troca permaneceu um fenômeno marginal por tanto tempo que as pessoas dispunham de meios próprios, ou em comum, para chegar à satisfação das suas necessidades. É apenas a separação violenta entre o homem e os seus meios de subsistência que tornou possível o capitalismo e generalizou o princípio da troca. É apenas no Capital que se realiza a lógica da troca. Para compreender isso, é preciso que inclinemo-nos uma vez mais sobre o valor. A qualidade-valor das coisas nasceu somente de relações humanas específicas e inconscientes. Uma relação social tornou-se uma qualidade de uma coisa.
Esta qualidade-valor é o resultado de uma abstração real. Ela própria é uma condição prévia ao ato de troca. A fim de poder tornar iguais e comensuráveis coisas sensivelmente diferentes, é preciso justamente abstrair sua sensibilidade. É assim que objetos sensíveis transformam-se em coisas-valor abstratas, que não representam nada senão produtos de um trabalho nos quais se encontra apenas energia humana consumida. O valor é então o denominador comum das mercadorias: da energia humana gasta, coisificada ou coagulada. As mercadorias comparam-se umas às outras por este denominador comum. O valor, de acordo com a sua essência, pode aparecer sobre a superfície sensível da prática social em diferentes estados ou formas. Pode aparecer sob a forma-mercadoria ou sob a forma-dinheiro. No dinheiro, o valor aparece como o intermediário prático entre mercadorias diferentes. Um exemplo: um padeiro faz pequenos pães para trocá-los por dinheiro. Com este dinheiro, o padeiro troca todas as coisas que lhe são necessárias para satisfazer as suas necessidades. Aqui o dinheiro aparece como um meio relativamente inofensivo e prático. Mercadorias produzidas são trocadas por dinheiro e seguidamente outra vez por mercadorias que, por sua vez, serão consumidas: Mercadorias-Dinheiro-Mercadorias. O valor veste, por assim dizer, primeiro a roupa de uma mercadoria, em seguida a do dinheiro, para transformar-se outra vez numa mercadoria. Mas esta imagem aparentemente idílica do simples produtor de mercadorias não tem nada a ver com o capitalismo.
…o Capital
Que é o Capital? Para que nasça do capital, é necessário decompor o movimento Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria em suas partes e recompô-lo diferentemente. Dinheiro-Mercadoria-Mais Dinheiro (D-M-D’). Este movimento é o Capital. Contrariamente ao movimento Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria, onde se encontra pelo menos no início e no fim a mercadoria e onde o dinheiro não aparece senão como mediador, no movimento Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro o valor, na sua forma de expressão dinheiro, fez-se ele próprio ponto de partida e de chegada do movimento do Capital. O movimento Dinheiro-Dinheiro tem evidentemente um “sentido” apenas se há mais dinheiro no final. O valor tornou-se o seu objetivo em si, sua instância que lhe dá sentido, ele inventa para si um vir a ser, um fim em si. A satisfação das necessidades humanas é reduzida a um simples meio, um mal necessário. A “máquina” capital é um automatismo auto-referente ou, segundo Marx: o sujeito automático. Todas as necessidades humanas, e os interesses que lhe estão ligados, podem ser realizados apenas se forem, de certo modo, danos colaterais dentro do movimento do capital. A produção de mercadorias tornou-se o mal necessário para fazer do dinheiro mais dinheiro. A relação do humano à natureza e à sociedade, na sociedade produtora de mercadorias, não pode ter lugar senão no quadro do movimento, como fim em si, do valor (capital). Mas como o valor faz precisamente abstração dessa relação, porque conhece apenas a sua própria e o seu “auto-crescimento”, os homens não são mais do que simples executantes do movimento do capital. Os homens tornam-se portadores de funções, de máscaras de um automatismo que os domina. Este automatismo não é outra coisa senão sua própria forma de mediação social, louca e inconsciente.