13.02.2015 

O Renascimento Milagroso De Antonio Gramsci

Robert Bösch

 

“A verdade é que as chances de sucesso de uma revolução socialista não têm outra medida que o próprio sucesso”.

Antonio Gramsci (1891-1937),

referindo-se à Revolução de Outubro

 

 

No mais tardar com o desaparecimento da URSS da cena política mundial, também o que se costumava chamar de “teoria marxista” perdeu de vez toda e qualquer relevância social. Até as variantes mais esclarecidas do marxismo tinham a União Soviética senão como socialista, ao menos como uma formação social “pós” ou “não-capitalista”. Sua ruína catastrófica selou também o veredito sobre a esquerda até aqui existente e seu conceito de teoria.

Nesse contexto, não se pode deixar de admirar o ainda relativamente amplo interesse por Antonio Gramsci. Não é fácil compreender porque um pensador que viu como sua tarefa “traduzir para o italiano” as experiências da Revolução de Outubro  (Zamis 1980, p. 327), e para quem Lenin era “o maior teórico moderno” do marxismo (Perspektiven 1988, p. 6), não é tratado como um cachorro morto. De fato, o renascimento desse revolucionário fracassado do tempo da III Internacional causa surpresa, se temos em mente que não apenas a esquerda, mas também a direita teórica descobriu para si esse “clássico marxista”. Se Gramsci já era popular desde a década de 70 em um determinado espectro da esquerda acadêmica, que se agrupava na Alemanha Ocidental sobretudo em torno da revista Argument, já em 1977 o teórico da nouvelle droit francesa, Alain de Benoist, escreveu um livro em que adaptava a seu modo o pensamento de Gramsci. E enquanto a editora Argument no começo da década de 90 começava a editar a primeira tradução completa para o alemão de seus “Cadernos do Cárcere”, que foram escritos durante sua prisão nas masmorras fascistas, a adaptação de Gramsci por Benoist se integrava ao pensamento da “Nova Direita” alemã. Em 1985 foi editada a tradução alemã do livro de Benoist de título Revolução Cultural de Direita: Gramsci e a Nouvelle Droit e a revista mensal Junge Freiheit (Liberdade Jovem), com uma tiragem hoje em dia de mais de 35.000 exemplares, exigia em referencia direta a Gramsci que a direita deveria recuperar a “hegemonia social” que havia perdido para a esquerda.

Como se pode explicar as apropriações aparentemente tão contraditórias de um teórico de quem a revista socialista Perspektiven em 1988 asseverou ser na mesma medida “perigoso” para a “ordem dominante” como para a “estupidez de esquerda” (Perpektiven 1988, p.3); e a quem o marxista inglês Stuart Hall (1989, p.56) descreveu como sendo expressão da “renovação do marxismo”? Será a reivindicação de Gramsci tanto pela direita quanto pela esquerda um sinal de que seu princípio teórico tornou-se obsoleto?

Não poderei dar uma resposta completa a essa pergunta no presente texto. Entretanto, gostaria de tentar, com um olhar mais minucioso sobre os teoremas centrais de Gramsci e o contexto histórico no qual ele os formulou, indicar em que medida há uma lógica comum às interpretações aparentemente contraditórias desses teoremas.

 
1. O esquema Base-Superestrutura: Fundamento do pensamento de Gramsci
O ponto de partida do pensamento teórico de Gramsci é sem dúvida a Revolução de Outubro. É fácil compreender que a queda do regime czarista em meio à carnificina da Primeira Guerra Mundial tenha sido sentida por ele como a revelação “de uma nova consciência moral”, como o “começo de uma nova ordem” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann 1981, p.119).

A particularidade da Revolução de Outubro para Gramsci é que ela teria sido uma “revolução contra O Capital” de Karl Marx, uma vez que os bolcheviques teriam mostrado que “é possível realizar o socialismo a qualquer momento” (Gramsci, apud Zamis 1980, p.325). Essas “afirmações peculiares”, como as denominou Guido Zamis, editor de Gramsci, não se devem ao fato de Gramsci ter embarcado em uma “corrupção interpretativa do marxismo” (idem, p.326), mas, ao contrário, elas desenvolvem exemplarmente o ponto central de um entendimento do marxismo que julga a realidade exclusivamente a partir de dentro do horizonte do conceito de luta de classes: “Os acontecimentos… dependem da vontade de muitos, que se expressa no fazer ou no deixar de fazer determinadas coisas e nas posturas mentais correspondentes, e eles dependem da consciência dessa vontade, que apenas uma minoria tem, e do modo como essa minoria direciona essa vontade a um fim comum, depois dessa vontade de muitos ter sido unificada no campo da autoridade estatal” (Gramsci 1980, p.17). O marxismo para ele é uma “teoria da ação”, que deve culminar na “fundação de um novo Estado”. (Perspektiven 1988, p.53).

Essa atitude voluntarista inicialmente parece diferenciar Gramsci da ortodoxia marxista, como verifica Annegret Kramer: “contra o ‘finalismo fatalista’ de uma teoria da história que faz do proletariado um apêndice ou, na melhor das hipóteses, um órgão de execução da ‘racionalidade da história’, Gramsci destaca portanto o significado da iniciativa política no processo do desenvolvimento histórico” (Kramer 1975, p. 75). Entretanto, uma concordância expressa com Lenin na polêmica contra os “renegados” da II Internacional indica que Gramsci de modo algum conseguiu se livrar do sistema de categorias do marxismo contemporâneo.[i] Ele apenas dá ênfase ao elemento voluntarista, que está vinculado à contraposição exterior e dicotômica de “base objetiva” (“as relações de produção”) e de “fator subjetivo” (“a classe trabalhadora”), que desde sempre foi o fundamento secreto para a divisão da esquerda em correntes “objetivistas” e “subjetivistas”.[ii]

Gramsci interpretou o “economicismo” como uma expressão efetiva do “finalismo fatalista”, fazendo-se necessário ser ele combatido “não apenas na teoria historiográfica, mas também e especialmente na teoria e práxis políticas” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann 1981, p. 241). Em uma anotação dos Cadernos do Cárcere sobre a relação “base-superestrutura” lê-se o seguinte: “a afirmação… de que qualquer movimento na política e na ideologia deva ser representado e explicado como expressão imediata da base precisa ser combatida… como infantilismo primitivo…” (Gramsci 1980, p. 219).

Como comprovação, ele cita a carta de Friedrich Engels para Joseph Bloch de 21.9.1890, em que Engels escreve: “de acordo com a concepção materialista da história, o fator em última instância determinante da história é a produção e reprodução da vida real (…) A situação econômica é a base, mas os diferentes momentos da superestrutura…  também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas…” (Engels, apud Perspectiven 1988, p.68). Para Gramsci, segue-se daí a “unidade dialética de base e superestrutura” em um processo de “interação”.[iii] No entanto, já o próprio conceito de “interação” deixa claro que nessa formulação da relação entre “base e superestrutura” a estrutura dicotômica de conhecimento da filosofia ocidental não é de modo algum superada. Como Hegel o expressou: “a insuficiência que reside na aplicação da relação de interação consiste, visto mais de perto, no fato de que esta relação, em vez de poder ser considerada como equivalente para o conceito, quer ela mesma ser conceituada, e isso acontece pelo fato de que ambos os lados não se deixam reconhecer como algo dado imediatamente, mas ao contrário … como momentos de um terceiro, mais elevado, o qual então este sim é o conceito” (Hegel 1830, p.302).

A essa ausência de um conceito geral do relacionamento social está vinculado o fato de a ênfase da análise teórica só poder ser posta ou na “base” (i.e., no “fator objetivo”) ou na “superestrutura” (i.e., no “fator subjetivo”), o que mesmo no caso de um só teórico varia de acordo com a situação histórica. Por detrás das acusações recíprocas de objetivismo (também chamado de “economicismo”) e subjetivismo (ou “voluntarismo”), geralmente desaparece o fato de que se trata apenas de uma identidade negativa.

A “superestrutura” político-cultural é vista por Gramsci como consistindo em algo diferente da “base”, entendida como “movimento econômico”, e por isso ele precisa deixar os dois campos “agirem” um sobre o outro de modo mecânico (o que ele então entende como “dialética”). “Dialética” é em Gramsci (como também ao menos no Engels tardio) não a unidade processante de momentos contraditórios, mas somente um nexo causal bipolar dinamizado. A subjacente forma de relação burguesa é um pressuposto inconsciente dessa teoria, e as esferas da “política”, “economia”, etc., por essa forma constituídas, são apresentadas como relacionando-se umas às outras apenas exteriormente.

Com esse esquema base-superestrutura como pano de fundo, Gramsci pode interpretar a Revolução de Outubro no sentido de que “as condições políticas de uma transformação guiada por marxistas não precisam necessariamente corresponder aos pressupostos de um sistema capitalista caduco” (Hofmann 1984, p.43). Coerentemente, ele acreditava reconhecer na URSS o paradoxo de uma “superestrutura política” comunista, cuja “base econômica” ainda era capitalista. O conceito de interação surge como solução do problema das “relações entre a base e a superestrutura”, porque ele permite a Gramsci dar à “superestrutura” “uma realidade efetiva e objetiva” (apud Perpektiven 1988, p.7), quer dizer, definir as relações sociais de produção, reduzidas a “condições econômicas”, como a causa “em última instância” determinante; e além disso, tal conceito permite a Gramsci, enquanto “filósofo prático”, intervir na política, interpretada como luta imediata de interesses das classes: “1. O econômico é em última instância determinante; 2. A política não pode desistir de ter o primado sobre a economia: ela está ‘no posto de comando’”. (Gramsci, apud Bucci-Glucksmann 1981, p.276). Ou, nas palavras de Lenin: “a política não pode deixar de ter o primado sobre a economia. Pensar de outro modo significa esquecer o ABC do marxismo” (apud Bucci-Glucksmann 1981, p.28).[iv] Para entender todas as implicações dessa visão, é necessário analisar mais de perto o conceito de ideologia de Gramsci.

 

2. O Estado integral e a luta pela hegemonia

Também o conceito gramsciano de ideologia é determinado pelo “primado da luta de classes”: “a frase do prefácio à Contribuição à crítica da economia política, segundo a qual os seres humanos conquistam a consciência dos conflitos estruturais na esfera da ideologia, precisa ser encarada como uma observação de valor cognitivo e não de valor puramente psicológico e moral” (Gramsci, apud Albers 1983, p.138). Na introdução a esse texto, Marx escreve que “em determinado ponto do desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes” (apud Schreiber 1982, p.79). Para Gramsci, no entanto, tal contradição não é o antagonismo entre o conteúdo material e a forma de relacionamento social, o valor, mas, classicamente marxista, a contradição entre trabalho assalariado e capital. Como ele não considera o proletariado como uma máscara da mercadoria-trabalho, como uma categoria imanente ao capitalismo e por ele constituída, a manifestação superficial da oposição de interesses das classes necessariamente se apresenta a ele como ponto de referência que transcende o capitalismo.

Gramsci não situa a contradição entre capital e trabalho apenas na esfera da produção, mas, além disso, referindo-se a Marx, define a política, compreendida enquanto “superestrutura político-cultural”, como esfera da luta de classes pelas “formas ideológicas, nas quais o homem se torna consciente desse conflito e realiza o combate” (Marx, apud Schreiber 1982). Conceitos como “democracia” ou “nação” se apresentam a ele como sem “significado totalmente fixo”, pelos quais, em função disso, é possível desenvolver uma “luta estratégica” (Hall 1984, p.116).[v] Nem a “democracia” é conceituada como a forma política adequada ao capitalismo desenvolvido, nem a “nação” como ponto de referência identificatória do indivíduo burguês, mas, coerentemente com as ilusões mais belas da vontade livre e abstrata, esses conceitos são tomados como “neutros” estruturalmente e consequentemente instrumentalizáveis para fins emancipatórios (e também para fins reacionários): “trata-se de retirar um significado do conceito (‘democracia’) do campo da consciência pública e implantar esse significado na lógica de um discurso político diferente” (idem, p.117). Desse modo, tornar-se-ia “possível dar ao conceito de nação um significado e uma conotação progressistas” (idem, p. 118).

De acordo com essa perspectiva, o decisivo é quem possui o poder de definição na sociedade, para definir “o significado e a conotação” de determinados conceitos e categorias da “superestrutura”. As ideologias são para Gramsci “visões de mundo”, cuja coerência depende de como elas conseguem “modificar e transformar a consciência cotidiana (Hall 1989, p.80). A consciência cotidiana ou o senso comum é o “terreno”, “sobre o qual surgem conceitos e categorias, sobre o qual se forma concretamente a consciência prática das massas” (idem). Em função disso, esse “terreno” é “um campo estratégico da luta de classes” (Buci-Glucksmann 1981, p.67); as ideologias são “construções práticas, instrumentos de condução política. (…) Para a filosofia da praxis, as ideologias são tudo menos que arbitrárias, elas são fatos historicamente reais, que, em função de sua natureza, devem ser combatidas e expostas enquanto instrumentos de dominação, e isso não por motivos morais mas por motivos práticos: para tornar os governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e construir outra, como momento necessário da revolução da prática” (Gramsci, apud Kramer 1975, p.79).

Essa noção de uma hegemonia ideológica conduz ao conceito de “bloco histórico”, central para Gramsci, com o qual ele procura compreender a sociedade como “totalidade concreta” (Kramer 1975, p. 115) e colocar as relações de classe em um contexto abrangente. “Por ser o Estado um modo de constituição e organização de uma classe, (…) a unificação de diferentes camadas sociais se realiza em um bloco histórico em torno de uma classe dominante e em um Estado” (Buci-Glucksmann 1981, p.279). A condição para que uma classe se torne dirigente, isto é, hegemônica, é “o papel decisivo que cabe a essa classe na produção material” (Kramer 1975, p.96). “Se a hegemonia é ética e política, ela também tem que ser econômica e ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce na zona central da atividade econômica” (Gramsci, apud Schreiber 1982, p.47). Dessa forma, um novo “bloco histórico” se constitui através da conquista da hegemonia econômica, política e cultural por uma classe, e “com a tomada do governo pela classe em expansão, sua função hegemônica torna-se” finalmente “também a de um Estado” (idem, p. 42)

Quando uma classe conquista a hegemonia completa, Gramsci fala de um “Estado integral”, definido como “sociedade política e sociedade burguesa, isto é, hegemonia, protegida através de coação”, ou “ditadura mais hegemonia” (Gramsci, apud Perpektiven, 1988, p. 10). O que se deve entender por isso? “Em sentido estrito, o Estado é idêntico ao governo, ao aparato da ditadura de classe, na medida em que ele exerce funções econômicas e coercivas. O domínio de classe é exercido através do aparato estatal em sentido clássico (exército, polícia, administração, burocracia)” (Buci-Glucksmann 1981, p. 88).  Essa é a concepção clássica de Estado “como instrumento da dominação de classe”, como “máquina de repressão da classe oprimida e explorada” (Engels, apud Schreiber 1982, p. 25).

Gramsci expande esse conceito de Estado como aparato de coerção (“società política”) ao conceito de “società civile” enquanto sociedade burguesa/civil. Esse conceito refere-se por um lado “às ‘sociedades capitalistas’, ou seja, às condições de vida materiais, ao sistema privado de produção. Por outro, ele implica no aparato ideológico-cultural da hegemonia, no aspecto educacional do Estado” (Buci-Glucksmann 1981, p.78). Este último se manifesta no “conjunto de todos os organismos comumente denominados de ‘privados’” (Gramsci, apud Schreiber 1982, p. 26), pelo que se deve entender “instituições como escolas, universidades, igreja, associações, sindicatos e meios de comunicação de massa” (Kramer 1975, p. 84).

“Società civile” e “società política” podem ser conceituadas como “planos efetivos”, que formam, como Schreiber o formula, “uma unidade que abrange todas as esferas estatais e sociais” (Schreiber 1982, p.130). O Estado se apresenta então, ao lado de seu papel de aparato de coerção, e através dos instrumentos de hegemonia, entendidos como culturais, políticos e econômicos, como “organisador da aprovação” (Buci-Glucksmann 1981, p.86), que constrói um “consenso dos governados” (Gramsci, apud Schreiber 1982, p.29) e assim assegura à “classe dominante” a hegemonia sobre a sociedade. Segundo Kramer, “a relevância que cabe à dominação hegemônica se torna clara no fato de Gramsci falar de ‘hegemonia e consenso’ como a ‘forma necessária’ de um bloco histórico, ou seja, somente através de uma relação de hegemonia se forma uma unidade real e duradoura entre base e superestrutura, surge um ‘Estado integral’” (Kramer 1975, p.94)

Assim, “dominante” é aquela classe cujo domínio não é baseado somente sobre uma coação pura, mas aquela que é dirigente também em função de sua “hegemonia”. “Ela não tem apenas o poder ou a competência para dirigir, mas possui também o meio para a socialização de seu programa: o Estado” (Schreiber 1982, p.50), “isso significa a organização material que sustenta, defende e desenvolve a ‘frente’ teórica e ideológica” (Gramsci, Schreiber 1982, p.60). Essa “estrutura ideológica de uma classe dominante” se expressa nos “aparelhos de hegemonia”, que “formam de maneira coerente a consciência do cotidiano de grandes massas humanas”, isto é, as “submetem à ideologia dominante” (Perspektiven 1988, p.13). “O desenvolvimento de modelos de pensamento e comportamento conformes com o sistema se dá de forma planejada através das ditas instituições ‘privadas’ da sociedade burguesa” (Kramer 1975, p.92), e o proletariado é por conta disso “subalterno, por estar submetido ao aparato hegemônico da classe dominante” (Karin Priester, apud Perspektiven 1988, p.13).

Com a concepção de Estado integral, os “aparatos de hegemonia” alcançam consequentemente um lugar central na “luta de classes”. Se for possível quebrar a hegemonia da “classe dominante”, sua dominação social estará posta em questão, uma vez que o Estado “não é um simples instrumento nas mãos de uma classe, que o ‘manipula’” (Buci-Glucksmann 1981, p.95), não é uma “coisa”, mas “a condensação de uma relação de forças” (idem, p.74) entre as classes, uma relação que pode estar em um “equilíbrio instável”, “que se caracteriza por uma alternativa simples: ou revolução ou reação” (Gramsci, Buci-Glucksmann 1981, p. 93). Em função disso, depende “da relação entre as forças presentes” se a classe dominante estará ou não em condições de “cimentar um bloco de forcas sociais heterogêneas”.[vi]

 

3. A sociologia revolucionária de Gramsci

O conceito de Gramsci de “Estado integral”, ou de “bloco histórico”, é frequentemente interpretado como o substrato verdadeiramente original de seu pensamento, por representar a tentativa de compreender a sociedade como totalidade.[vii] E de fato, seu princípio teórico, em termos históricos, representa um avanço sobre aquelas interpretações marxistas que só eram capazes de ver no Estado um instrumento de opressão da “classe dominante”. No entanto, esse avanço se mostra ambivalente, pois ele é acompanhado por uma reformulação da idéia de luta de classes, num momento em que ela se torna cada vez mais obsoleta. Um mínimo de reflexão mostra logo que o Estado moderno não pode mais ser interpretado como simples instrumento de domínio “da burguesia”. O Estado burguês, em sua fase inicial, de fato trazia momentos fortemente privatistas. Mas seu desenvolvimento na direção de uma instância coisificada de socialização, que fornece a “infra-estrutura” para a valorização do valor, não poderia deixar o pensamento teórico de esquerda intocado. Caso que podemos conceber Gramsci como um sociólogo, porém como um sociólogo que procura dar a sua teoria uma guinada revolucionária. Como o pensamento sociológico comum (aliás, junto com todo o marxismo), ele opera dentro das categorias superficiais da sociedade burguesa, assim como com entidades positivas, que são jogadas umas contra as outras mas que não podem ser abolidas enquanto tais. Ele pressupõe que as esferas em estado de desintegração da ordem burguesa são dissociadas umas das outras e só consegue imaginar a totalidade social como uma interação externa dessas esferas, como uma resultante do paralelograma de forças dos grupos sociais que agem dentro delas. Ele permanece cego perante à forma burguesa de socialização subjacente aos conflitos de interesse entre as máscaras do capital.[viii] Enquanto que Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, dizem que “o Estado é a forma, dentro da qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e toda a sociedade burguesa de uma época se resume” (Marx/Engels, apud Kramer 1975, p.93), Gramsci compreende “a burguesia”, que dá a si própria “uma forma geral” no Estado (idem, p.89), como um “grupo social” (Gramsci, apud Kramer 1975, p.89) de indivíduos que têm a característica de ser proprietários de meios de produção.[ix]

No entanto, a propriedade privada não é uma “característica” de determinadas pessoas ou de grupos de pessoas. Ela é uma forma de socialização social-fetichista, que se constitui na medida em que os indivíduos se relacionam uns com os outros enquanto donos de mercadorias e por isso têm que se reconhecer mutuamente como proprietários.[x] A relação de valor põe os indivíduos como sujeitos de direitos e assim constitui ao mesmo tempo a forma social geral, dentro da qual esses indivíduos são relacionados uns com os outros: o direito. A expressão dessa generalidade abstrata das mônadas monetárias e jurídicas burguesas é o Estado. Mas assim como a forma valor “reflete para as pessoas os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres coisificados dos produtos do trabalho, como características naturais sociais das coisas” (Marx 1890, p.86), a forma-direito transforma a propriedade de uma forma de socialização em uma “característica” pessoal dos seres humanos.

Assim como a socialização pelo valor como um todo, o Estado e o direito devem ser entendidos como categorias processuais reais, que somente conseguiram se transformar em conceitos após diversos impulsos de desenvolvimento. O Estado moderno, assim como o direito moderno, surgiu de uma “racionalização material” (Max Weber) da dominação. As necessidades produzidas pelo avanço da valorização capitalista não podiam mais ser administradas pelo direito arbitrário de poderes intermediários particulares, elas precisavam da centralização de todo o poder no Estado soberano, que, assim como a manufatura em desenvolvimento, começava a comprimir as pessoas em condições de “continuidade, uniformidade, regularidade, ordem” (idem, p.365).

A Revolução Francesa evidentemente representa um enorme passo na direção da formação do Estado moderno. Se o Estado absolutista ainda era acima de tudo um aparato de coerção para o recolhimento de divisas, e nesse sentido ainda ligado aos interesses e privilégios da nobreza dominante (isto é, ainda em um estágio de “limitação concreta”, para acompanhar Hegel), a burguesia, com a proclamação de direitos humanos inalienáveis e a juridicização do Estado através da divisão de poderes (que tem a pretensão de colocar na lugar da forma-fetiche do príncipe a soberania geral e abstrata do direito), deu impulso a um processo que, segundo Marx, fez com que o Estado se tornasse um Estado de verdade, ou seja, uma coisa pública. No entanto, foram precisos em torno de mais cento e cinqüenta anos e enormes conflitos sociais até que essa condição estivesse finalizada na forma da moderna democracia de massas pluralista.

O pensamento de Gramsci deve ser compreendido com o pano de fundo do processo de afirmação da moderna democracia de massas. Pode-se dizer que seu conceito de “estado integral” tenta descrever esse processo. Porém, sua descrição não é a de um processo em que o Estado se despe de seus momentos privatistas, mas, ao contrário, é o de um processo em que uma determinada classe se tornaria dominante. Para Gramsci, portanto, esse desenvolvimento se apresenta como invertido, de maneira que a burguesia, que ele descreve como “grupo dirigente na esfera econômica do capitalismo”, se torna ao mesmo tempo a classe universal dessa formação social, porque seu comportamento determina o desenvolvimento social. Sua ascensão a “classe dirigente”, à condição de “classe que se torna Estado”, descreve, segundo Gramsci, “a passagem do momento meramente econômico (ou egoísta-passional) ao momento ético-político, isto é, a base se torna super-estrutura, o que se realiza na consciência das pessoas” (Gramci, apud Albers 1983, p.140). Essa formulação, segundo Detlev Albers, é “o ponto central de todo o marxismo de Gramsci” (idem, p.140), que permitiria a ele “elaborar conceitos universais, armas ideológicas refinadas e decisivas”, “sem as quais uma afirmação da hegemonia ‘no Leste’, assim como sua conquista ‘no Ocidente’, lhes parecem impossíveis” (Gramsci, apud Albers 1983, p.140).

Pois se Gramsci descreve a “transformação de uma classe de base em super-estrutura” em três fases, a “econômico-corporativa”, a “ético-política” e a “estatal”, ele entende isso como um “modelo geral de pensamento” de uma classe “que chega a si mesma” (Schreiber 1982, p.107), que também deveria valer para a estratégia revolucionária do proletariado na situação de ‘guerra de posições’.[xi] Portanto, segundo Gramsci, também o proletariado deve superar sua fase “econômico-corporativa”, “que é a fase primeira e mais elementar das formas de consciência, formas de organização e de prática política de uma classe” (idem, p. 82), na qual “a solidariedade de interesses entre todos os indivíduos de uma classe social … ainda se dá em uma esfera meramente econômica” e a “questão do estado” só se coloca na medida em que a “igualdade político-jurídica com a classe dominante deva ser atingida” (Gramsci, Schreiber 1982, p.83). A assim conquistada “igualdade político-jurídica” se tornaria o “terreno” para se desenvolver para além da fase econômico-corporativa e subir a uma fase de hegemonia ético-política dentro da sociedade burguesa, e dominante do Estado” (Gramci, apud Schreiber 1982, p. 84).

Essa fase, prossegue Gramsci, estaria ligada ao “desligamento da visão de mundo da classe subalterna da visão de mundo da classe dominante, à reforma intelectual e moral e à formação da vontade coletiva” (idem, p.87); um movimento que, para Gramsci, se deixa ilustrar com a Revolução Francesa, que representaria “um tipo concluído de desenvolvimento harmônico de todas as energias nacionais” (Gramci, apud Buci-Glucksmann 1981, p.61), por a burguesia ter lá superado sua “tendência corporativista” e “ido ao encontro aos interesses das classes subalternas”. Pois, para Gramsci, o decisivo é que “não a classe em si, mas o desenvolvimento de toda a nação… tem primazia no interesse de uma classe que se desenvolve na direção da hegemonia” (Schreiber 1982, p.102).[xii]

Só essa referência afirmativa à nação já caracteriza Gramsci como teórico burguês da modernização, o que só é compreensível diante da retardada e precária formação do Estado nacional italiano. A nação como território politicamente unificado e definido pela soberania jurídica, o espaço dentro do qual os donos de mercadorias se relacionam entre si, ainda não havia nem de longe sido realizado e nesse sentido também o nacionalismo como ideologia generalizante ainda não fora aposentado. Assim como a liberdade e igualdade dos donos de mercadorias dentro da esfera de circulação da Revolução Francesa aparecia como “um verdadeiro Éden dos direitos humanos inatos” (Marx 1890, p.189), a “fraternidade” se tornara o lema ideológico para a nacionalização das massas e o nacionalismo a ideologia adequada para a imposição da juridicização e democratização gerais.

Gramsci posiciona sua “filosofia da práxis” completamente na tradição da revolução burguesa. Ele expressamente a descreve como um “nexo de reforma protestante e revolução burguesa” (Gramsci, apud Schreiber 1982, p.93), os dois mais importantes impulsos históricos da imposição da mônada geral monetária e jurídica, respectivamente em seu reflexo religioso e em sua versão secularizada do nacionalismo. Na revolução de 1789 se tratava, segundo Gramsci, de “uma grande reforma intelectual e moral do povo francês”, que teria tentado “substituir a religião por uma ideologia totalmente laica, nacional e patriótica”. Nada está mais distante dele do que criticar isso, pois “não se pode tirar do homem do povo sua religião sem lhe dar algo em troca que satisfaça as necessidades em função das quais a religião surgiu e ainda vive” (idem).[xiii]

 

4. Partido comunista e processo capitalista de modernização

O “modelo geral” gramsciano da ascensão de uma classe à condição de hegemonia social encontra sua sequência de desenvolvimento em sua teoria do partido comunista. O partido comunista é em Gramsci “a forma de organização mais elevada do sujeito revolucionário, o intelectual coletivo”, que está impelido a “ele próprio tornar-se Estado” e a “moldá-lo à sua imagem e semelhança”. Ele deve reunir em si “todas as exigências da luta geral” (Gramsci 1980, p.117). É sintomático para seu politicismo que ele ilustra essa idéia com base em O Príncipe de Maquiavel: “em todo o pequeno livro, Maquiavel trata das características necessárias ao príncipe para conduzir o povo à fundação de um Estado” (Gramsci 1980, p.253).[xiv] Segundo Maquiavel, um príncipe chega ao poder “através de uma astúcia bem-sucedida e um cortejo pelo apreço do Povo” (Maquiavel 1513, p.54). No entanto, conforme Gramsci, “na época moderna da revolução proletária” um tal “príncipe do povo” não pode mais ser uma “pessoa carismática”[xv] (Caponi de Hernandez 1989, p.108), “não pode mais ser um indivíduo concreto … mas somente um organismo, um elemento social complexo, no qual … uma vontade coletiva começou a se concretizar. Esse organismo já está presente em função do desenvolvimento histórico e consiste no partido político” (Gramsci 1980, p.253).

O conceito de partido em Gramsci é aquele da moderna grande organização da época de massas, ou melhor, é aquele da inclusão na política das massas separadas de suas raízes de classe. Para Gramsci, o partido deve ser um “intelectual coletivo”, “a instância de classe totalizante, intelectual e moralmente unificadora”, sua “nomenclatura” (apud Perspektiven 1988, p.12). Nisso ele concorda com Lenin, “que a necessidade de uma liderança forte, de unidade e disciplina existe no próprio partido” (Caponi de Hernandez 1989, p.120). No entanto, rejeita um partido de quadros de “revolucionários profissionais”. Essa última observação está ligada ao fato de Gramsci ter reconhecido de forma muito clara as diferenças entre a situação social russa e a italiana. Exatamente em função do fato de a Rússia apresentar um grande atraso em termos de modernização em relação aos países na Europa central e ocidental, pelo fato de lá a “sociedade civil” praticamente não estar desenvolvida, o partido comunista (como a chamada “vanguarda revolucionária do proletariado”) pode chegar ao poder através de uma “guerra de movimentos”. “No Oriente o Estado era tudo, a sociedade burguesa estava em seus primórdios, e os contornos eram fluidos. No Ocidente reinava uma relação equilibrada entre Estado e sociedade burguesa, e se o Estado era abalado revelava-se rapidamente a sólida estrutura dessa sociedade burguesa. O Estado era somente uma trincheira avançada, atrás da qual havia uma série de robustas fortificações e casamatas” (Gramsci 1980, p.273). Em função disso, tinha-se que contar com uma “luta prolongada … da classe trabalhadora” pela “hegemonia em todas as esferas da vida social já antes da revolução” (Schreiber 1982, p.114).

Abstraindo-se do fato de que o que ocorreu na Rússia de forma alguma foi uma “revolução socialista”, mas uma revolução burguesa, com a qual foi dado início a uma determinada variante de modernização capitalista recuperadora, e que também na Itália a socialização pelo valor historicamente ainda estava por vir, essa avaliação reflete as diferenças reais no nível de socialização entre os dois países. Daí se explica o caráter mais moderno do conceito gramsciano de partido (assim como a plausibilidade relativa de seu conceito de sociedade civil).[xvi]

A “principal tarefa do partido” na fase de “guerra de posições” deve ser, segundo Gramsci, “a reforma intelectual e moral” (Caponi de Hernandez 1989, p.111) das massas. Sua realização deve permitir ao partido “se expandir enormemente, para construir uma hegemonia … pela unificação de todas as faixas da população”, no que o partido “é o elemento intermediador, que transforma o embrião da vontade coletiva do início do processo revolucionário na expressão da sociedade como um todo. Através do partido e de sua função educativa, as massas se transformam gradualmente em agentes conscientes do processo revolucionário” (idem). O problema que Gramsci coloca não é essencialmente diferente do que Lenin formulou: o nível de desenvolvimento das relações sociais é baixo demais para que exista a possibilidade de um amplo desenvolvimento dos indivíduos, pelo que não pode ser abolida a separação entre “dirigentes” e “dirigidos”, a divisão entre trabalhadores braçais e mentais. No entanto, isso se apresenta a Gramsci como uma característica estrutural fundamental da sociabilidade moderna, que não pode ser abolida. Ele reconhece com muita clareza que a progressiva divisão social do trabalho da sociedade industrial está ligada a um desdobramento das possibilidades e capacidades dos indivíduos e esses são cada vez mais incluídos nos processos sociais, mas que isso não leva a uma dissolução das hierarquias sociais, mas somente à sua diferenciação dentro de uma simultânea coisificação.

Ele considera esse desenvolvimento inevitável, mas pensa poder dar a ele uma forma “democrática”, sob um “governo socialista”. O ideal desejável para ele consiste em “treinar em termos críticos a atividade intelectual que existe em algum grau em qualquer pessoa, dar à sua relação com o esforço muscular um equilíbrio novo e conseguir que o próprio esforço muscular … se torne a base de uma nova e integral visão de mundo” (Gramsci, apud Showstack-Sasson 1989, p. 105). O trabalho abstrato, portanto, não deve ser abolido, mas somente enriquecido moralmente. Gramsci acusa os fascistas de quererem fixar as hierarquias em termos jurídicos e classistas e de conduzirem a modernização de forma a “darem a alguns capacitados a possibilidade de melhorar suas capacidades, mas ao mesmo tempo solidificando as diferenças sociais” (Showstack-Sassoon 1989, p.97).

Em oposição a isso, ele exige “que qualquer ‘cidadão’ possa se tornar um ‘governante’ e que a sociedade o coloque, mesmo que abstratamente, em condições de fazê-lo … pelo que deve ser garantida a qualquer governado a aquisição gratuita da capacidade e da formação técnica geral necessária a esse objetivo” (Gramsci, Showstack-Sassoon 1989, p.96). Dificilmente seria possível definir de forma mais exata a tarefa estatal de educação nos termos da moderna socialização pelo valor. Onde Gramsci pensa dar uma “resposta socialista” à por ele suposta “crise de longo prazo do capitalismo” (idem, p.97), ele na verdade formula um programa que, nos anos após a Segunda Guerra Mundial, foi posto na ordem do dia sob o rótulo muito mais prosaico de “igualdade de oportunidades”. Quando se despe sua noção de “estado operário” de suas roupagens ideológicas, pode-se constatar que ela corresponde de maneira relativamente exata ao que nos últimos quarenta anos se tornou a realidade social nas democracias de massa ocidentais (mas que, nesse meio tempo, ela própria entrou em crise).

O fato de seu conceito de partido não ser muito mais do que uma “variante light” do exemplo leninista está em contradição somente aparente com sua noção de democracia. O partido comunista, o “príncipe moderno”, deve figurar como “coletivo individual” (apud Buci-Glucksmann 1981, p.175) e assim substituir o “centralismo burocrático” (idem), no qual a relação entre partido e classe trabalhadora é “puramente hierárquica, de tipo militar” (idem, p.173), por um “centralismo democrático” (idem p.175). Nisso “a relação classe-partido deve ser … orgânica e não burocrática” (idem  p.173), os líderes da classe operária devem personificar “seus interesses e desejos mais básicos e vitais”, devem ser “uma parte da classe operária”, e não somente “um apêndice, um simples enxerto violento” (apud Buci-Glucksmann 1981). Buci-Glucksmann enxerga nisso “um repúdio de qualquer relação burocrática-militar com as massas”, como a “política stalinista o praticou” (idem). Esse repúdio, no entanto, permanece teoria árida, se esgota no polimento de um conceito, do qual a estrutura básica (a “independência relativa dos líderes em relação à sua base social”, como Werner Hofmann eufemisticamente define o stalinismo; Hofmann 1984, p.53) consiste na própria forma organizacional do partido político, que necessariamente deve entrar em contradição com os interesses particulares (constituintes do valor) de seus membros, em que essa forma organizacional se coloca na posição do interesse geral abstrato.[xvii]

A reformulação empreendida por Gramsci do conceito de “centralismo democrático”, criado por Lenin, deveria corresponder ao nível de consciência mais elevado das massas italianas, assim como às exigências de disciplina e subordinação no interior do partido; ela deveria, como Schreiber o formula, possibilitar “a dialética de intelectuais e a massa, de espontaneidade e liderança” (Schreiber 1982, p.120). Essa suposta “unidade entre intelectuais e a massa do povo, entre governantes e governados” (Gramsci, apud Caponi de Hernandez 1989, p.114) baseia-se na “estrutura em três níveis” do partido (idem, p.115); seu primeiro elemento são “as pessoas comuns medianas, cuja participação consiste em disciplina e lealdade” (idem, p.109). Elas formam a “base social do partido” (idem). O segundo elemento “é o elemento principal de coesão… dotado de uma força altamente coesiva, centralizadora, e criativa (idem); trata-se da direção do partido, da qual Gramsci diz que seria mais fácil ela formar um partido do que o primeiro elemento” (idem). O terceiro elemento, finalmente, exerce uma função de intermediação, em que ele serve de ligação entre o primeiro e o segundo elemento”; trata-se dos assim chamados “intelectuais orgânicos do proletariado”, cujo trabalho “deve permitir a interação e integração política, moral e intelectual entre massas e direção” (idem, p.110).[xviii]

A essa “divisão em diferentes níveis partidários” Gramsci dá a legitimação de uma necessidade de “divisão do trabalho”; ele, portanto, a compreende como uma divisão “antes técnica” (idem, p.115). Por isso, a subordinação nela contida teria um “caráter democrático”, pois, se “a origem do poder, que determina a subordinação” é “democrática”, se, portanto, a autoridade é uma função técnica específica e não uma ‘arbitrariedade’, então a disciplina é um elemento necessário da ordem e liberdade democráticas” (idem), que “não abole a liberdade nem a personalidade” (idem) – mas que, poderia ele ter acrescentado, esvazia esses conceitos e os transforma naquelas frases que são compatíveis com qualquer programa eleitoral. O conceito gramsciano de partido reflete a estrutura coisificada, mas não menos hierárquica, do moderno aparato de produção industrial, e sua postura completamente apologética em relação a ela lembra fatalmente aquele ditado hegeliano segundo o qual a liberdade é a consciência da necessidade.

Não mais o pertencimento a uma classe capitalista, entendida em termos personalistas, mas a competência técnica, deve legitimar a pretensão à liderança, e em função disso a abolição da “dominação da burguesia” é vista já como abolição do capitalismo. O que é historicamente novo no capitalismo permanece encoberto sob esse ponto de vista: a transformação da dominação pessoal em dominação formal ou coisificada, a subordinação de todas as esferas da vida sob a racionalidade da relação de valor. Elementos como “arbitrariedade” só atrapalham na execução de necessidades objetivas, que não se deixam reduzir à vontade e à ação consciente de sujeitos de classe. A forma-valor nas relações se materializa também na maquinaria capitalista e nas condições técnicas, que se apresentam às pessoas sob a forma de necessidades objetivas, fato pelo qual a questão do “pertencimento a uma classe” de um técnico que dá uma ordem a um trabalhador é secundária e fica sociologicamente na superfície da relação capitalista.

Em função do fato de ficarem presas no interior do horizonte da socialização pelo valor, suas aporias se reproduzem também dentro do partido comunista. Como a separação entre “líderes” e “liderados” não é possível de ser abolida sob as condições da modernização capitalista, a situação dos “liderados” não pode ser modificada substancialmente. Daí só restar a tentativa de “humanizar” os princípios burgueses de disciplina e subordinação, o que soa como o conceito de “cidadão uniformizado emancipado” ou como novos métodos de gerenciamento empresarial: “disciplina e unidade não devem ser impostas, mas brotar de discussões e debates gerais” (Caponi de Hernandez 1989, p.120); “os membros  não devem seguir mecanicamente ordens vindas de cima, mas devem … seguir estratégias e táticas que eles entenderam completamente e até ajudaram a formular” (idem, p.115). Não é novidade que esse conceito não tem muito a ver com a realidade histórica do partido comunista, para dizer o mínimo. O próprio Gramsci disse a verdade quando escreveu, sobre o PC italiano, que os membros individuais “tendem a pensar que ele realmente existe sobre os indivíduos, um ser fantasmagórico … uma espécie de divindade autônoma” (idem). Quem não reconheceria nessas palavras o caráter fetichista da forma-valor da relação dos “liderados” com seus “líderes”, que pelo visto se impôs mesmo contra a vontade desses últimos?

 

5.  A imposição da sociedade do trabalho e a identidade secreta entre fordismo, socialismo e fascismo

A contradição fundamental entre os interesses imediatos dos indivíduos e o interesse geral abstrato, criada pela forma-valor e que constitui a política como esfera isolada da vida social e que, além disso, se reproduz no “centralismo burocrático” dos partidos comunistas, não desaparece nem se o partido, para usar as palavras de Gramsci, “alcança sua completude” (apud Caponi de Hernandez 1989, p.112), quer dizer, se ele se torna Estado. O Estado socialista é por um lado apenas “um Estado burguês sem burguesia” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann 1981, p.143), mas deve tendencialmente transformar-se em um “Estado de novo tipo”, que tem como objetivo “a superação da diferenciação burguesa entre economia e política”, como Franco De Felice o formula (idem, p.151). O que soa como a abolição da divisão em esferas, examinado mais de perto se desmascara como reformulação do esquema base-superestrutura: Gramsci “subdivide … o conceito de Estado em aparato de poder estatal e em sistema de intercâmbio e produção” (idem, p. 144) e, enquanto que o Estado possa ser “preservado e desenvolvido como princípio de organização econômica industrial de um país”, ele, enquanto “princípio de exercício de poder”, “perecerá quanto mais rápido os trabalhadores estiverem disciplinados e incluídos na produção” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann 1981).[xix]

Até então, o “estado operário” deve ser visto ainda como o Estado no sentido moderno, pois, conforme Gramsci, ainda existe “a sociedade dividida em classes”, e daí também o Estado, “a forma característica de toda sociedade dividida em classes”, por muito tempo não poderia desaparecer. Entretanto, “o Estado que estivesse nas mãos dos trabalhadores e camponeses”, seria usado para “garantir sua liberdade de desenvolvimento, para extinguir completamente a burguesia da história e para consolidar as condições materiais, sob as quais nenhuma opressão de classe possa mais se formar” (Gramsci 1980, p.55). Quando essa promessa vaga será cumprida, entretanto, permanece completamente indeterminado (e até nisso Gramsci é ortodoxamente marxista).

Logo após a revolução socialista, algo totalmente diverso estará na ordem do dia: “a concorrência e as classes continuam a subsistir”, no entanto os conceitos de “concorrência e luta de classes” são “deslocados” para o plano internacional. “A ditadura do proletariado ainda é um Estado nacional e um Estado de classes”, que deve solucionar os mesmos problemas que o Estado burguês: defesa interna e externa”, pois o período após a Revolução será “a época de concorrência impiedosa entre economias nacionais comunistas e capitalistas” (idem, p.73).

O que Gramsci formula nesse contexto é evidentemente um programa de modernização de economias nacionais, o que é compreensível diante da situação histórica da Itália após a Primeira Guerra Mundial. A guerra havia acelerado mais ainda a formação do mercado mundial capitalista, e assim causado uma generalização e um acirramento da concorrência mundial, o que não tornava fácil a um país atrasado em termos europeus e fortemente dependente do mercado mundial como a Itália manter o passo com esse desenvolvimento. O que estava objetivamente  na ordem do dia para a Itália  dos anos vinte (objetivamente em relação à socialização pelo mercado mundial) era uma industrialização acelerada e uma socialização do país, combinada a uma mobilização das massas para esse objetivo.[xx] E isso, por sua vez, implicava em que a mônada do trabalho e o cidadão abstrato a ela logicamente ligado se tornassem a forma de existência geral da sociedade.[xxi]

Nesse sentido, não surpreende que Gramsci nos anos vinte essencialmente apenas afirmasse o “fordismo” incipiente. Ele é para Gramsci “um desenvolvimento racional e por isso generalizado” (apud Perspektiven 1988, p.59), que, conforme ele ressalta, surge “a partir da necessidade imediata da organização de uma economia planificada” (apud Priester 1989, p.13). Daí os imperativos do fordismo terem que ser impostos também contra a resistência das camadas tradicionais e se ligar à “composição demográfica racional da população”, na qual não poderão mais haver “classes sem função essencialmente produtiva, quer dizer, classes absolutamente parasitárias” (apud Perspektiven 1988, p.60), ou seja, camadas da população não incluídas no processo de criação do valor.

Em sua ânsia de elevar a mônada do trabalho à condição de forma de existência geral da sociedade, Gramsci perde a distância crítica perante a violência estrutural do aparelho de exploração na forma do valor. Ele reconhece com clareza que o fordismo implica na criação de um novo tipo de trabalhador fabril, que está à altura das condições produtivas da “racionalização taylorista” (Gramsci, apud Perspektiven 1988, p.60). Isso, por sua vez, exigiria “um treinamento geral, um processo de adaptação psicofísica a determinadas condições de trabalho, de alimentação, de moradia e dos hábitos, o que não é nada ‘naturalmente’ inato, mas que tem que ser adquirido” (idem, p.60). A racionalização psicofísica dos indivíduos não poderia, portanto, ficar limitada à esfera fabril, mas teria que englobar toda a vida, principalmente a esfera da reprodução, ou seja, âmbitos como a sexualidade e a alimentação, o uso moderado do álcool, a higiene corporal ou a repartição econômica do salário. “Os novos métodos exigem uma disciplina rígida dos instintos sexuais …, quer dizer, um reforço da ‘família’ em sentido amplo… assim como a regulamentação e estabilidade das relações sexuais” (idem, p.60). Resumindo: os indivíduos devem criar uma rígida “autodisciplina”, internalizar as necessidades objetivas do sistema do trabalho abstrato.[xxii]

Um verdadeiro “desenvolvimento orgânico” do fordismo, segundo Gramsci, só teria ocorrido nos EUA. Lá, o fordismo “não significa somente inovações tecnológicas e de eficiência do trabalho dentro da fábrica … mas, além disso, a participação do trabalhador na crescente riqueza do sistema capitalista na base de salários elevados e preços relativamente baixos para os produtos de massa” (Priester, 1989, p.13).  Isso deve possibilitar “nada menos do que a superação da luta de classes por uma nova imagem das relações das classes entre si”, uma vez que “ambas as partes … ganham com a elevação da disciplina de trabalho e da reestruturação das fábricas” (idem). No fordismo americano, “a coação … estaria combinada com a convicção e o consenso” (Gramsci, apud Perspektiven 1988, p.61); a “participação no consumo de massa”, intermediada pelo emprego,  significaria a possibilidade da “inclusão” das massas na “parceria social” (idem).

Nos países da Europa, em contrapartida, esse desenvolvimento foi imposto pela “fúria implacável” da economia norte-americana, que obrigou especialmente a Itália a “virar pelo avesso sua economia e base social excessivamente antiquada” (Gramsci, apud Perspektiven 1988, p.63). Nos países atrasados, portanto, o fordismo ganha para Gramsci sua significação de instrumento de uma modernização que “necessita de um impulso externo” (idem, p.62). Como instância que “conduz a partir de fora os desenvolvimentos necessários do aparato produtivo” (idem) só entra em consideração o Estado, e esse adquire na Itália uma forma corporativista ou fascista.

É necessário dizer que o ponto central não é a intervenção estatal em si, que nos EUA do New Deal também ocorre, mas muito mais a forma específica de estatização, forçada pelo relativamente baixo nível de desenvolvimento da socialização pelo valor, que nas (como eu gostaria de denominar) “variantes totalitárias” do fordismo, ou seja, o fascismo italiano, o nacional-socialismo alemão e o bolchevismo russo assume um caráter de violência incomparavelmente maior. Nelas falha a fórmula mágica da síntese entre produção e consumo de massa, que permite desviar os conflitos da luta de classes para o âmbito dos ordenados conflitos de distribuição. As promessas consumistas lá são ficção científica: se uma Itália autônoma estiver forte o bastante para se desligar do mercado mundial …, se a Alemanha após a “vitória final” dominar o “espaço econômico europeu” …, se a indústria pesada soviética estiver tão avançada que até o desenvolvimento da indústria de bens de consumo for possível… Até lá, como se poderia dizer nas palavras de Gramsci, o fordismo é em primeiro lugar “uma luta prolongada contra o elemento ‘animalesco’ no homem, um … processo que muitas vezes é doloroso e sangrento, a subjugação dos instintos … a normas e hábitos sempre novos, cada vez mais complexos e rígidos em termos de ordem, de justiça, de precisão, que possibilitam formas de vida coletiva cada vez mais complexas, que são a conseqüência necessária do desenvolvimento do industrialismo” (Gramsci, apud Kebir 1989 II, p.56).

O caráter “objetivista” dessa citação dos “Cadernos do Cárcere”, na qual Gramsci ressalta a inevitabilidade da generalização da abstrata mônada do trabalho, está em evidente contradição com a disseminada avaliação de Gramsci como o representante de um “marxismo subjetivista-idealista” (Christian Riechers, apud Perspektiven 1988, p.63). O desaparecimento da perspectiva revolucionária e a forçada abstinência da práxis dos anos da prisão fizeram com que o lado “voluntarista” do período anterior fossem para segundo plano, um desenvolvimento teórico cuja aparente contradição serve para revelar a identidade secreta dos dois pontos de vista. De fato, o Gramsci do período do Ordine Nuovo dos anos vinte[xxiii] e sua demanda por um “estado social do trabalho”, que contrapusesse à  “liberdade liberal … do indivíduo burguês abstrato … uma outra liberdade, a do produtor” (apud Buci-Glucksmann 1981, p.124), já adiantava a posição do Gramsci da época da prisão em relação ao fordismo.[xxiv]

A adoção quase completa do fordismo por Gramsci foi interpretada por um de seus atuais seguidores, Sergio Bologna, no sentido de que “seu interesse … pelos programas de reeducação do fordismo”, assim como seu “conceito de poder”, foi “uma posição corretamente ‘esclarecida’ e … que teve pouco a ver com o exercício da violência”, mas com “cultura” e “educação” (Bologna 1989, p.21). Infelizmente, as relações entre esclarecimento e educação e o exercício de violência na prática não se deixam solucionar tão facilmente como na ideologia, apenas com a presença de aspas. Nas variantes “totalitárias” da imposição do fordismo sua violência estrutural se revelou sob formas variadas. O indivíduo não é definido aqui como o burguês consumidor com direito de escolha (também de escolha política), mas como o átomo producente no interior de um coletivo, cuja relação com a política permanece limitada a pura aclamação. A mobilização das massas vem acompanhada de sua militarização, da organização estatal de seus momentos de lazer, da racionalização de seus hábitos, da coação à eficiência e disciplina política; tudo isso baseado na destruição de formas de organização independentes e de condições de vida desviantes, na homogeneização da estrutura da população através de exclusão ou inclusão forçada na sociedade dominada pela incipiente ditadura da valorização do valor.[xxv] Essa engenharia social vem acompanhada e apoiada por ideologias que invocam a superioridade de uma raça ou a missão histórica de uma classe e que assim reconduzem as massas em movimento à condição de paralisia política.[xxvi]

Certamente não é por acaso que, como escreve Angelika Ebbinghaus, “Stalin, Hitler e Roosvelt .. no final das contas eram todos entusiasmados adeptos do fordismo” (Ebbinghaus 1983, p.221), assim como Mussolini e os social-democratas alemães e austríacos.[xxvii] Isso é um reflexo do impulso modernizante, que se impôs independentemente da vontade dos envolvidos, mas que nisso assumiu diversas roupagens ideológicas. Por isso, é possível afirmar que aquilo a que o fascismo italiano deu início (e a sociedade do trabalho fordista prosseguiu após a guerra) está estruturalmente de acordo com o que Gramsci havia desenhado anos antes sob outra marca ideológica. Baseado na teoria leninista do imperialismo, ele já nos anos 20 havia repetidamente ressaltado que a classe burguesa consistia então somente de parasitas vivendo de renda, “o capitalismo… se tornou plutocrático” (apud Buci-Glucksmann 1981, p.314) e o Estado italiano havia se degenerado a um “monopólio em mão estrangeiras” (idem, p.132). Gramsci via a Itália como transportada para a “época da luta pela unidade nacional” (idem), e ele tinha a forte convicção que “somente o Estado proletário” poderia “deter a dissolução da unidade nacional” (idem), uma vez que a classe operária teria se tornado a “única classe nacional” (idem).

Gramsci via a legitimação dessa afirmação na “posição econômica chave” (apud Schreiber 1982, p.47) do proletariado e em sua capacidade exclusiva de “continuar a desenvolver as capacidades produtivas”: “no que… os operários… aumentam o rendimento do aparato produtivo… eles demonstram que o governo da nação pode se basear em sua organização de classe” (apud Buci-Glucksmann 1981 p.130). O que deveria valer então era “o primado do trabalho, do produtor”, pois isso possibilitaria “pensar um Estado de novo tipo” (idem p.313), um “Estado do trabalho (Togliatti), Estado dos produtores (Gramsci)” (idem, p.122), que “deve ter como exemplo a organização econômica; seus membros não são mais cidadãos, mas produtores” (idem, p.123); seus princípios seriam “coerência, disciplina, unidade, organização, homogeneidade” (idem, p.150).

Também Mussolini havia exigido que “toda Itália” se tornasse “um estaleiro, uma fábrica” (Nolte 1966, p.23) e declara: “em 10 anos não será mais possível reconhecer a Itália” (idem). Para a realização desse programa, o fascismo, na esfera da produção, fez uso dos mesmos métodos que o bolchevismo: na União Soviética, segundo Trotsky, os sindicatos, deveriam se tornar “órgãos de militarização do trabalho”, que deveriam “defender não os interesses do trabalho, mas os do Estado” e que serviriam para “organizar a classe trabalhadora para fins produtivos, para educar, disciplinar, repartir, agrupar, designar os trabalhadores individuais a seus postos de trabalho por período determinado, – ou seja, conjuntamente com o Estado e de forma imperial adequar os trabalhadores ao plano econômico unificado” (apud Abosch 1984, p.64).[xxviii] Dessa forma foi que, sob o fascismo, as organizações independentes da classe trabalhadora foram esmagadas e substituídas por corporações profissionais controladas pelo Estado. Sua tarefa era controlar o mercado de trabalho: “a livre escolha do local de trabalho foi perdida e a intermediação de um emprego estava ligada à obrigação de uma residência fixa” (Kebir 1989 I, p.50).

Da mesma forma que Gramsci fala da necessidade de um poder que “seja capaz de criar para a classe trabalhadora tais condições de alimentação e prosperidade que permitam um certo desempenho e um aumento da produção” (Gramsci 1980, p.51), Mussolini entra com o programa de fertilização das terras improdutivas, de melhoramento da infra-estrutura nas regiões atrasadas e de industrialização da agricultura. Da mesma forma que Gramci exige a formação de um “exército socialista” (idem, p.75), que corresponda ao “caráter militar acentuado” do Estado operário (idem, p.73) e que seja formado pelos “batalhões de aço do proletariado consciente e disciplinado” (idem, p.72), o fascismo exige uma “nazione militarista”. E, finalmente, da mesma forma que a principal tarefa após a revolução socialista vitoriosa seria “a organização de um Estado socialista unido muito solidamente”, “que o quanto mais rápido possível contenha a dissolução e a falta de disciplina, que dê ao conjunto social uma forma concreta” (idem), o fascismo correspondeu a essa necessidade à sua maneira, com a criação de um “Estado corporativo”.

As acusações que Gramsci faz ao fascismo em seu núcleo se reduzem às de que o fascismo não tocava nas estruturas de exploração capitalistas (pensadas em termos sociologistas), e por isso não poderia realizar de forma consequente seu programa de homogeneização da sociedade e da destruição de resquícios feudais e tradicionais.[xxix] Isso, segundo Gramsci, só poderia ser desempenhado pela classe trabalhadora, ou melhor, o partido comunista colocado no papel de um sujeito transcendental, que “deve reassumir a educação do proletariado,  acostumar ele à idéia de que para uma abolição do estado … é necessário um tipo de estado que seja adequado à perseguição desse objetivo, de que para a abolição do militarismo pode ser necessário um novo tipo de exército. Isso significa, capacitar o proletariado ao exercício da ditadura, ao autogoverno” (Gramsci 1980, p.73).[xxx]

Essas formulações remetem à definição de Werner Hofmann do estalinismo como uma “ditadura interina” ou “ditadura pedagógica” (Hofmann 1984, p.48), cujo  defeito, no entanto, consistiria em que nela “o poder estatal se apresentava de forma alienada diante de seus reais detentores” (idem, p.49). Portanto, para ele não mais o Estado em si representa alienação, mas somente a falta de identificação dos “camaradas do povo” com o “Estado do povo”, causada por um “oportunismo do poder” (idem, p.48). A construção dessa identificação, o “autogoverno do proletariado”, assim se torna o lema de um modelo de socialização no qual a estatização do proletariado se apresenta como abolição do Estado. (31)[xxxi] Já a denominação de “Estado dos operários e camponeses” ou “estado dos produtores” deixa claro que as categorias sociais na forma do valor não são abolidas, mas, pelo contrário, afirmadas expressamente. A existência do produtor imediato como mônada de sacrifício do trabalho abstrato deve ser generalizada, e isso está necessariamente ligado a sua submissão ao interesse geral abstrato da valorização do capital, cujo representante político é o Estado. Dentro desses parâmetros, não é possível pensar em sua abolição da forma como Marx a procurou definir em A questão judaica: “somente quando o ser humano individual real reabsorver em si mesmo o cidadão abstrato e, enquanto ser humano individual, se tornar um ser do gênero em sua vida empírica, em seu trabalho individual, em suas condições individuais, … e, em função disso, não separar mais de si a força social na forma do poder político, somente então a emancipação humana estará completada” (apud Lenk 1981, p.120).

O socialismo, devido ao dilema de não encontrar os pré-requisitos para a abolição do Estado, tentou seguir o caminho inverso e dissolver o ser humano individual no cidadão abstrato, dissolver o povo no Estado; com isso, ele foi a expressão mais conseqüente da democracia, na medida em que “ele estava disposto a tornar realidade a última crença que havia surgido dentro do sistema partidário europeu” (Nolte 1966, p.184).

 

 

Necrológio    

Em relação ao populismo do pós-guerra, que para ele foi um “recurso comum da direita no gerenciamento de crises”, e cuja “estrutura básica” seria “vestir política de direita com roupas de esquerda” (Kebir 1989 I, p.41), Gramsci traçou o seguinte resumo otimista: “pode-se ver nisso algo do que Vico chama de ‘esperteza da natureza’, ou seja, um impulso social, que realiza exatamente o contrário de seu objetivo” (apud Kebir 1989 I, p.42). O populismo é entendido como “um episódio de ‘educação popular’ indireta” (idem), de uma educação na direção do socialismo.[xxxii]

Tal “esperteza da natureza” mencionada por Gianbattista Vico, que Hegel chamou de “astúcia da razão” e que no final das contas nada mais é que a lógica da “segunda natureza” fetichista e na forma do valor também conseguiu utilizar o socialismo para seus fins, como tentei demonstrar; um desenvolvimento que uma contemporânea de Gramsci, a teórica francesa Simone Weil, compreendeu com clareza: “a história do movimento operário se mostra sob uma luz cruel e especialmente forte. É possível resumi-la completamente sob a fórmula segundo a qual o movimento operário demonstrou sua maior força quando serviu a algo diverso de uma revolução proletária. O movimento operário pode criar a ilusão de poder enquanto contribuiu para extinguir os resquícios do feudalismo e instituir a ordem capitalista, seja sob a forma do capitalismo privado ou do capitalismo de Estado na Rússia” (Weil 1934, p.52).

Tal veredito, que, em sentido amplo, também cabe a Gramsci, ainda hoje parece ser ininteligível a muitos de seus adeptos. Ele relativiza em larga medida seu significado teórico para a atual época de crise do sistema mundial produtor de mercadorias. Pois se compreendermos Gramsci como teórico da modernização da sociedade burguesa, então isso significa que ele nada nos tem a dizer sobre uma época em que a modernização capitalista entrou no estágio de sua dissolução. É verdade que podemos adotar abstratamente sua idéia de que todo movimento de oposição que almeja a uma transformação fundamental da sociedade de alguma forma tem que conquistar a “hegemonia social”. No entanto, se se livra tal idéia de todas as implicações marxistas e de teorias da modernização que ela ainda tinha em Gramsci (queda da dominação de classe, criação da unidade nacional, imposição de um “Estado do trabalho” etc.), então não resta muito mais do que trivialidades. Desta forma, podemos conceder a Gramsci o merecimento de em suas reflexões ter estado à altura de seu tempo. Mas, à medida que hoje autores e políticos de esquerda ou de direita se referem a sua teoria (ou partes dela) de forma positiva, eles apenas comprovam que uma época de decadência não se liberta automaticamente dos pesos mortos de seu passado, e que o esforço da crítica permanece necessário.

 

 

Tradução de Pedro Lavigne

Original: “Die wundersame Renaissance des Antonio Gramsci”, Krisis 13

http://www.krisis.org/1993/die-wundersame-renaissance-des-antonio-gramsci

Tradução publicada em Sinal de Menos 11 (2) http://sinaldemenos.org/2015/05/05/sinal-de-menos-11-vol-2/

 

 

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[i] É importante frisar que marxismo é compreendido aqui como ideologia de legitimação do movimento operário e não é igualado à teoria marxiana, que oferece pontos de apoio para o aparato sociologista de luta de classes, mas que de forma alguma se resume a ele.

[ii] v. os artigos de Ernst Lohoff e Norbert Trenkle na Krisis 10, Erlangen 1991. Ernst Lohoff: Das Ende des Proletariats als Anfang der Revolution: über den logischen Zusammenhang von Krisen- und Revolutionstheorie [O fim do proletariado como início da revolução: sobre a concatenação lógica da teoria das crises com a teoria da revolução], p. 74-116. Norbert Trenkle: Die vergebliche Suche nach dem unverdinglichten Rest: oder warum das subjektaprioristische Denken in der Sackgasse des Kulturpessimismus enden muss [ A vã procura pelo resto não coisificado ou: Por que o pensamento que parte do sujeito como categoria a priori tem de acabar no beco sem saída do pessimismo cultural], p. 118-139. O primeiro está disponível em  http://www.krisis.org/1991/das-ende-des-proletariats-als-anfang-der-revolution

[iii] Também aqui ele segue o exemplo de Engels: “é uma interação de todos esses momentos na qual … o movimento econômico se impõe” (Engels, apud Perspectiven 1988, p.68); v. também Kramer 1975, p.72

[iv] Buci-Glucksmann considera isso “a rejeição de um modelo simples: reprodução/reflexo” da relação base-superestrutura, como o “economicismo” o defende, “a favor de um modelo mais (!) dialético, que se apoia no primado do desenvolvimento de classes e da luta de classes” (idem, p.255)

[v] Nisso já é dada a condição para a adoção de Gramsci pela direita.

[vi] O “estruturalista marxista” Louis Althusser, cujo conceito de “aparatos ideológicos do Estado” é compatível com os “aparatos de hegemonia”, cinqüenta anos após não está nenhum passo à frente: “os aparatos ideológicos do Estado são necessariamente o lugar e o emprego da luta de classes, que dá prosseguimento, nos aparatos da ideologia dominante, à luta de classes geral, que domina a formação social” (Althusser 1977, p.156).

[vii] Assim, por exemplo, Schreiber (1982, p.130): “a originalidade de Gramsci consiste em ter ele, como primeiro teórico marxista, examinado a função estatal de hegemonia”, em ter ele encarado o Estado “como forma”, “na qual a conformidade de grandes partes da população com o programa político e econômico e com a visão de mundo das classes dominantes é gerada”.

[viii] É tal pensamento superficial e sociologista que Gramsci torna instrumentalizável para os mais diferentes conteúdos. Nesse sentido, não é de surpreender que a idéia de Gramsci da “luta ideológica” por conceitos possam ser “deturpados” pelo social-democrata Peter Glotz para uma modernização do capitalismo e pelos novos nazistas em torno de Alain de Benoist até mesmo no sentido de um “estado étnico”. Se a estrutural conformidade com o valor de conceitos como “Estado”, “nação” ou “povo” permanecer incompreendida e a esquerda acreditar que tais conceitos possam ser “determinados hegemonicamente”, ela, com tal desamparo teórico, nada mais do que confirma que ela própria é supérflua.

[ix] Entretanto, essa visão sociologista se encontra até mesmo em Marx e Engels e é defendida explicitamente especialmente pelo último em certos textos.

[x] “Essa relação de direito, cuja forma é o contrato, …, é uma relação de vontade, na qual a relação econômica se reflete.” (Marx 1890, p.99)

[xi] O conceito de “guerra de posições” Gramsci utiliza aqui como contrário ao de “guerra de movimentos”, como ele denomina o processo revolucionário na Rússia; v. também o segmento n. 4 e meu texto.

[xii] O que na Revolução Francesa coube aos jacobinos, criar “a unidade compacta da nação … moderna” (Gramsci, apud Buci-Glucksmann 1981, p.62), Gramsci vê como função do proletariado no caso italiano. A fraqueza da burguesia italiana, sua dependência econômica do Estado e a consequente ausência de um “partido jacobino” (Gramsci 1980, p.300) fez com que o Risorgimento (o “renascimento” da Itália, ou seja, o movimento de unificação de 1815-70) se tornasse “uma revolução sem revolução”, na qual a burguesia se contentou em ser “dominante” mas não “dirigente”. A consequência disso seria que o novo Estado italiano “praticamente não era autônomo, pois em seu interior ele estava sendo corroído pelo papado e pela passividade das massas”.

[xiii] O quão pouco crítico Gramsci se comporta em relação ao “bom senso” burguês também se torna claro no seguinte trecho, onde ele escreve que estaria na ordem do dia se ligar aos “sentimentos ‘espontâneos’ das massas”, desenvolver o “buon senso” (o “núcleo saudável”) da razão cotidiana, e o modelar de forma “homogênea e coerente” (apud Kramer 1975, p.103). Também aqui Gramsci afirma o pensamento nacional sem hesitar: “as exigências da cultura nacional estão ligadas ao conceito de hegemonia” (apud Kramer 1975, p.104).

[xiv] E, pode-se acrescentar, como ele pode assegurar sua dominação: “em função disso um príncipe inteligente deveria fazer com que seus cidadãos necessitem dele e do Estado em todos os momentos e sob todas as circunstâncias: então eles sempre lhes serão fiéis” (Machiavelli 1513, p.58).

[xv] No caso do “Duce” Mussolini tratava-se de um verdadeiro “príncipe do povo”. Esse último relampejar de “dominação carismática” (Max Weber) na época de definitiva racionalização e capitalização do contexto social colocou ainda mais uma vez um único indivíduo como forma-fetiche da generalidade abstrata (Hitler e Stalin são fenômenos análogos).

[xvi] Que a chamada “sociedade civil”, da forma como ela é invocada há anos no discurso político, de forma alguma marca o “final da história”, mas em primeiro lugar apenas representa o lado saboroso do capitalismo desenvolvido e em segundo lugar é um fenômeno histórico limitado, cujos melhores tempos já se passaram, no mais tardar se tornou uma certeza banal após os ataques neo-nazistas de Hoyerswerda e Rostock-Lichtenhagen. Também aqui a crítica prática das circunstâncias confirmou de forma sinistra o trabalho da crítica teórica.

[xvii] Caponi de Hernandez reconhece “limites fundamentais” no conceito de partido de Gramsci, mas reduz essa crítica ao “descuido de Gramsci em apontar regras e procedimentos especiais para a participação ativa e continuada das massas dentro do partido e do Estado” (Caponi de Hernandez 1989, p.118). Dessa forma, ela permanece em sua crítica no âmbito das técnicas de procedimento e deixa de lado a forma do partido em si. Em Gramsci, já em 1919 surgia o fruto de um desenvolvimento no qual “o papel do partido na revolução daria suporte à afirmação de que tal aparato de fato assumiu uma forma rígida, de que o sistema de controle das massas em movimento se tornou rígido em formas mecânicas de poder imediato, forçando o processo revolucionário para dentro das formas do partido” (idem). Gramsci era demasiadamente um revolucionário leninista para enxergar que esse desenvolvimento obrigatoriamente “resulta de um sistema de controle das massas em movimento”.

[xviii] A categoria de “intelectual orgânico” desempenha um importante papel na teoria de Gramsci. Para ele, o significado dos intelectuais está em que eles são os “transmissores da dominação”, na medida em que eles garantem “a coesão ideológica e política da sociedade” e assim realizam “a unidade orgânica, que Gramsci denomina ‘bloco histórico’” (Kramer 1975, p.101). O próprio Gramsci escreve: “toda classe social, que se forma porque desempenha um papel essencial dentro do mundo da produção econômica, cria ao mesmo tempo organicamente … camadas de intelectuais, que lhes dão homogeneidade e consciência das próprias funções não somente no âmbito econômico como também no político e social” (Gramsci, apud Schreiber 1982, p.56). Segundo Gramsci, os intelectuais têm portanto “a função de organizar a hegemonia social de um grupo e sua dominação estatal” (apud Buci-Glucksmann 1981, p.46), no que há de se fazer a diferença entre “os intelectuais orgânicos de um determinado grupo, o grupo dominante e os intelectuais tradicionais” (idem, p.49). Sob os últimos devem ser compreendidos “os intelectuais orgânicos da classe em declínio”, e é “uma das características mais evidentes de qualquer grupo que está a caminho de se tornar o grupo dominante” que ele inicie “a luta pela assimilação ‘ideológica’ e conquista dos intelectuais tradicionais” (idem, p.58).

[xix] Para Gramsci, o Estado se tornou “no imperialismo, enquanto estágio mais alto do capitalismo”, o “único proprietário do meio de trabalho” e desta forma erigiu “um sistema de fábricas” (apud Buci-Glucksmann 1981, p.127) que só está à espera de ser transferido das mãos da burguesia, a “classe morta”, para as mãos do proletariado.

[xx] Os fascistas dão conta desse desenvolvimento ao definir a Itália como “nação proletária” e assim transferir o conceito de exploração, para utilizar as palavras de Ernst Nolte, da luta de classes para o âmbito da luta entre nações: “o conceito de Marx (deve) ser aplicado à luta da Itália contra os outros Estados capitalistas …, não à luta do proletariado italiano contra o capitalismo italiano” (Kebir 1989, p.43), assim o tenor dos fascistas, quando eles ainda eram marxistas dentro do Partido Socialista. A expulsão de Mussolini do PSI se deu em 1914 em função de sua crítica à postura de “neutralidade absoluta” do partido em relação à guerra, uma posição pela qual ironicamente Gramsci o defendeu em sua estréia jornalística.

[xxi] Com o liberalismo, a generalidade abstrata da forma-valor já está colocada como a priori, e enquano tal é totalitária, pois é pressuposta a qualquer conteúdo político. Entretanto, ela teve que se generalizar através de impulsos históricos específicos e por ideologias correspondentes. Em função disso, o fascismo e o socialismo contêm o liberalismo dentro de si como momento suspenso, apesar de toda a oposição.

[xxii] Para Gramsci, “o moderno produtor tem que ser primeiramente ‘educado’” (Kebir 1989 II, p.57); uma educação, que se deixa descrever com os conceitos de Max Weber de “ética protestante de trabalho e de modo de vida racional” (idem, p.56), e que, “nos países protestantes, ao contrário dos católicos e ortodoxos”, se deu de uma forma que “Gramsci chamaria de ‘orgânica” (idem), enquanto que na Itália ainda resta por realizar uma reforma como a protestante” (idem, p.57). Essa reforma Gramsci liga ao fordismo.

[xxiii] A revista Ordine Nuovo (Nova Ordem) era o órgão dos comunistas dos conselhos populares em torno de Gramsci e Togliatti na Turim dos anos 20, que em função das fábricas da Fiat era o bastião do então movimento operário.

[xxiv] Nesse sentido, há de se concordar com Christine Buci-Glucksmann quando ela se volta contra uma “divisão entre os escritos do período militante (até 1926) e os cadernos do cárcere” (Buci-Glucksmann 1981, p.16).

[xxv]  Aqui seria o caso de perguntar, se não há uma certa razão nas teses defendidas por Ernst Nolte na “briga dos historiadores” de uma comparabilidade do “assassinato de raça” nazista com o “assassinato de classe” bolchevista. Entretanto, essa razão não se dá em função da tendência evidente à relativização dos crimes nazistas com fins à promoção de identidade nacional por idéias como as do arquipélago Gulag como um “antecessor lógico e fático” de Auschwitz, ou dele como um “crime asiático” (Nolte 1986, p.36), mas da analogia entre o arquipélago Gulag e o extermínio dos kulaks e o extermínio dos judeus como momentos bárbaros do processo de totalização da socialização na forma do valor. O nazismo como o bolchevismo se apresentavam aos agentes envolvidos como expressão da superação revolucionária do capitalismo, mas que nada muda no fato de que suas ações e suas construções ideológicas possam ser decifradas como reflexos afirmativos da crise de modernização capitalista, a qual – sob condições diversas – fez surgir formas de superação pseudo-revolucionárias. O potencial revolucionário, sob o qual as massas em movimento se apresentavam, necessitava de uma válvula de escape e essa função era desempenhada pelos conceitos de “raça” e “classe”. Eles possibilitaram definir aquele “inimigo objetivo”, o qual para Hannah Arendt é um conceito central da forma de dominação totalitária. Os “racialmente inferiores” são “inimigos objetivos” da sociedade racial, assim como as ‘classes moribundas’ e seus representantes … são inimigos objetivos da sociedade sem classes e ajudantes objetivos da burguesia” (Arendt 1966, p.654). Assim como a famosa declaração de Karl Lueger, exemplo de Hitler – “quem é judeu sou eu que determino” – já possibilitava prever que, atrás da aparente concretitude dos conceitos de “raça” e “classe”, em última instância há a arbitrariedade abstrata da forma-valor – indiferente a qualquer conteúdo, ela possibilita uma relação de identidade essencialista, como a que está na base de conceitos como “raça” e “classe”, apenas através da aniquilação do heterogêneo. Nos “judeus”, “ciganos”, “kulaks” ou na “burguesia”, tal abstração parecia ter se tornado palpável e à qual a consciência cotidiana, com sua exigência de um “culpado” imediato, é necessariamente insuportável, e a qual, entretanto, estava obrigada a reproduzir essa exigência no processo da aniquilação, o que se expressou em que os nazistas como os bolcheviques desumanizaram suas vítimas naqueles estereótipos cuja aniquilação era apenas uma conseqüência lógica. A lógica abstrata do valor é nisso a lógica da aniquilação, a qual reúne em si fenômenos aparentemente contraditórios e, desta forma, permite a singularidade de Auschwitz como a realização de suas possibilidades mais gerais. Os traços “asiáticos” que Nolte crê ter descoberto em Auschwitz se mostram muito mais no arquipélago gulag, que fica muito atrás daquela modernidade das fábricas da morte nazistas, a qual deve se apresentar ao racionalismo ocidental como um irracionalismo inexplicável (a questão de até que ponto a aniquilação dos kulaks, ligada à coletivizarão forçada, tem traços da política populacional nazista, o que recentemente é analisado por Aly/Heim, deveria ser tratado separadamente).

[xxvi] Uma paralisia que se reflete no paternalismo da relação entre “líder” (“Führer”) e massa; apesar de os “líderes” à la Hitler, Stalin e Mussolini se apresentarem como os últimos indivíduos em uma sociedade coletivista, eles são somente projeções desindividualizadas das necessidades infantilizadas das massas, o que também explica o grotesco culto à personalidade que surge ao seu redor.

[xxvii] Karl Lewin escreve em 1921 que “o taylorismo e também a moderna psicologia industrial … (poderiam) servir a um sistema socialista, porque ela concede às pessoas suas respectivas funções não devido a sua educação, dependente da classe, mas devido a sua capacidade” (Priester 1989, p.15); e Otto Bauer por um lado vê surgir na União Soviética “um novo e terrível despotismo …  que subjuga os indivíduos em todas as relações de sua vida e não deixa ao indivíduo mais nenhuma esfera de ação fora do Estado” (apud Albers 1983, p.75), mas por outro lado crê reconhecer nesse “despotismo de uma minoria progressista uma necessidade transitória, um instrumento temporariamente imprescindível do progresso histórico” (idem, p.171).  O governo de Mussolini, por seu lado, havia “dado muito valor” a que Roma “fosse escolhida como sede do terceiro congresso mundial dos ‘tayloristas’” (Bologna 1989, p.25).

[xxviii] Nesse contexto, Trotsky faz uma formulação, da qual não é possível saber se trata-se de ingenuidade ou cinismo: “conosco, a coação do poder dos trabalhadores e camponeses é realizada em nome dos interesses das massas trabalhadoras” (apud Abosch 1984, p.65). Em Lenin isso é formulado da seguinte forma: “no Estado capitalista, o capitalismo de Estado significa que o capitalismo é reconhecido e controlado pelo Estado em proveito da burguesia, contra o proletariado. No Estado proletário o mesmo ocorre em proveito dos trabalhadores” (apud Rosenberg 1933, p.182).

[xxix] “Na Europa, as diferentes tentativas de introduzir alguns aspectos do americanismo (sob esse nome Gramsci identifica o “american way of life”) e fordismo partem da antiga camada plutocrática, que gostaria de reconciliar o que permanece inconciliável até a prova do contrário: a antiga estrutura social-democrática anacrônica e as altamente modernas formas de produção e modo de trabalho, das quais a indústria de Henry Ford representa o tipo perfeito americano” (Gramsci, apud Perspektiven 1988, p. 60). Da mesma forma, Gramsci compreende o fascismo como uma “revolução passiva”: “dentro das relações sociais imediatas italianas, isso (a “revolução passiva” do fascismo; R.B) poderia ser a única possibilidade de continuar a desenvolver as forças produtivas da indústria sob a liderança das classes tradicionalmente dominantes, em concorrência às indústrias avançadas dos países com um monopólio de matéria prima e imponentes massas de capital acumulado” (apud Albers 1983, p.63).

[xxx] Nesse contexto, logo Gramsci vê a necessidade de refletir sobre a “‘função policial progressista’, no sentido dos interesses históricos do movimento operário” (Albers 1983, p. 82), a qual deve ser exercida pelo partido comunista tornado dominante.

[xxxi] Infelizmente, aqui não há mais a possibilidade de honrar o antepassado fático do politicismo marxista, Jean Jacques Rousseou. Eu gostaria de me limitar a uma menção a Lucio Colletti, que ressaltou que “no que toca a teoria ‘política’ em sentido estrito, Marx e Lenin nada acrescentaram a Rousseau, a não ser a análise … das ‘bases econômicas’ para a morte do Estado” (Colletti 1977, p.130). Colletti, entretanto, não tem olhos para o Marx “crítico do fetichismo”, que de forma alguma se resume à questão da luta de classe.

[xxxii] O quão pouco crítico Gramsci é em relação ao populismo se mostra em que “o conceito de populismo, dotado de um ponto de interrogação positivo, … é invertido para o negativo quando relacionado ao fascismo” (Kebir 1989, I, p.42). Em epígonos como Wieland Elfferding falta até mesmo o dubioso ponto de interrogação: ali é exigido de forma despudorada e estúpida o “populismo de esquerda” (Perspektiven 1988, p.34), o qual deve fazer “propostas de esquerda” para conceitos como “nação”, “povo” ou “pátria” (idem, p.35) (vide o artigo de Elfferding em “Wiederspruch” n. 13/1987).