Entrevista com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle
Richard Jellen: Como Marx nos ajuda a entender a crise atual melhor do que outros teóricos?
Ernst Lohoff: Para responder isso, primeiro temos que atentar para o debate sobre a crise atual, que se caracteriza por uma enorme discrepância. Por um lado, está bem estabelecido que esta é uma crise de “proporções históricas”, e a cada duas semanas há uma nova reunião que finaliza com os mais importantes chefes de Estado anunciando que acabaram de salvar a economia global da destruição. Por outro lado, as explicações que são oferecidas para este desenvolvimento dramático são extremamente insuficientes. O discurso oficial em torno da crise está sendo conduzido no nível do encanador amador, que conserta um cano aqui e outro acolá enquanto o porão é inundado. Todo tipo de manobra técnico-financeira está sendo discutida, mas ninguém sabe o que resultará delas, porque não existe uma boa análise teórica do processo de crise em curso.
Enquanto isso, os representantes mais reflexivos da teoria econômica estão admitindo abertamente a falência de sua disciplina. O professor de Harvard e ex-economista-chefe do FMI, por exemplo, disse recentemente ao jornal de negócios Handelsblatt que os modelos econômicos altamente elegantes que dominaram a academia por décadas foram, na prática, “muito, muito mal-sucedidos. Quando o grande choque chegou, eles se revelaram inúteis”.
RJ: O que causou este total fracasso?
EL: Pensamos que isso remete às próprias questões que eles fazem de início. A questão fundamental da nossa era de crise é na verdade bastante óbvia: por que uma sociedade com produtividade material absolutamente explosiva, que pode produzir riqueza material infinitamente, tem de concluir que está aparentemente “vivendo além de suas possibilidades”? Podemos encontrar a resposta a esta questão em Marx – desde que façamos uma leitura crítica, e não em linha com os modelos interpretativos do marxismo tradicional ou do assim chamado renascimento de Marx que estamos vivenciando agora.
O capital de Marx não começa contrastando capital e trabalho, mas com a “forma elementar” da sociedade capitalista: a mercadoria. Marx mostra que a contradição básica que explica a tendência do capitalismo à crise em geral e à crise atual em particular está imbricada na própria mercadoria. Trata-se da contradição entre duas formas de riqueza: riqueza material, como expressada na produção de bens, e riqueza abstrata, que é categorialmente representada como valor e reificada na forma do dinheiro.
Sob as condições da produção moderna de mercadorias, ou seja, em uma sociedade capitalista, a riqueza material somente é produzida na medida em que ela também possa ser representada como valor, ou seja, na medida em que contribui para a valorização do capital. Portanto, a produção de bens é sempre um meio para um fim externo: o fim em si mesmo de transformar dinheiro em mais dinheiro. Sempre que este fim não pode ser atingido porque a valorização do capital foi interrompida, a riqueza material também pára de ser produzida. Bens são até mesmo destruídos porque não podem ser vendidos, apesar do fato de que necessidades deixam de ser atendidas, em grande escala. Pessoas têm de viver em barracas enquanto suas casas estão vazias, por exemplo, simplesmente porque não podem mais pagar o seu financiamento.
RJ: O que caracteriza as crises econômicas na sociedade burguesa em comparação com outros tempos?
Norbert Trenkle: Basicamente, podemos dizer que as crises no capitalismo não surgem da escassez, mas da abundância, e em meio à abundância. Esta é uma insanidade básica que a economia não pode explicar, porque ela naturaliza a produção de riqueza abstrata: ela apresenta a produção de mercadorias como um tipo de forma inata da economia humana. Por esta razão, ela não presta nenhuma atenção às contradições internas entre a produção de riqueza material e abstrata, e ela é cega às causas mais profundas da crise em curso.
RJ: Que tipo de crise econômica é esta atual?
EL: Marx faz uma distinção entre crises gerais e crises específicas, dizendo que “em crises do mercado mundial, todas as contradições da produção burguesa emergem coletivamente; em crises específicas (específicas em seu conteúdo e extensão) as emergências são mais esporádicas, isoladas e unilaterais” . Nenhuma crise na história do capitalismo mereceu tanto ser chamada de crise geral quanto a que se tornou visível desde 2008. Ela consiste em todo um sistema de crises parciais, que disparam umas às outras, se sobrepõe e se acumulam mutuamente.
Acima de tudo, duas camadas principais devem ser analisadas separadamente. Primeiro, há uma crise estrutural de produção de valor real. Ela vem ocorrendo sob a superfície desde os anos 70, nunca foi superada, e na verdade não pode ser superada, porque ela se deve ao fato de que a produtividade desde então é alta demais para manter o processo de valorização do capital funcionando. O capital tem que se reproduzir, porque do contrário deixa de ser capital, e para isto uma força de trabalho continuamente crescente tem de ser utilizada para produzir mercadorias. Mas, ao mesmo tempo, a competição conduz uma incessante corrida pela produtividade, que em seu núcleo leva à substituição permanente do trabalho por capital imobilizado. Esta é a contradição interna fundamental no modo de produção capitalista, que ao final tem de se voltar contra o próprio modo de produção. Especificamente, se a produtividade é tão alta que grandes massas de força de trabalho se tornam supérfluas, isto coloca em perigo a própria base da valorização do capital. É precisamente isto o que está no núcleo da crise estrutural de fundamentos na qual o sistema capitalista global se encontra desde o fim do boom do pós-guerra.
RJ: Qual é o outro componente essencial da crise?
NT: A crise que acabamos de descrever foi abafada por décadas pelo inchaço dos mercados financeiros. No nível da sociedade como um todo, a acumulação de capital voltou ao seu curso depois das crises dos anos 70, e a economia global voltou a crescer. Porém, este crescimento não se baseava mais na produção real de valor através da exploração da força de trabalho, mas através do crescimento explosivo de capital na indústria financeira. Como a indústria financeira colocou cada vez mais títulos de propriedade em circulação (dívidas, ações, derivativos), ela conseguiu colocar em prática o truque de transformar valor futuro, isto é, valor que ainda não foi produzido e talvez nunca seja produzido, em riqueza abstrata.
Mas esta reprodução do capital através da antecipação de valor, que há muito atingiu proporções astronômicas, entrou ela própria em crise. Ainda que o crescimento contínuo dos títulos de propriedade, sem os quais o capitalismo não pode mais sobreviver, esteja operando da mesma forma de sempre e esteja mesmo em aceleração, isto ocorre apenas porque agora a tarefa está sendo feita por governos, e acima de tudo por bancos centrais. Os estados aumentam as suas dívidas e os bancos centrais garantem o excesso de crédito dos bancos privados a juro zero, enquanto simultaneamente compram títulos do governo que ninguém mais comprará. De fato, estamos lentamente atingindo os limites deste processo, e a crise do euro é um exemplo disso.
RJ: Como o papel dos bancos centrais mudou no curso da crise financeira?
EL: Acima de tudo, o termo “capital fictício” denota o capital fictício formado por atores do setor privado; créditos de bancos comerciais junto aos seus tomadores de empréstimo; e ações e títulos em posse de companhias de seguro, fundos de investimento ou investidores privados. Mas à medida que as moedas perderam o lastro do padrão-ouro, há outro ator que se tornou importante na criação de capital financeiro na indústria financeira: o banco central. A política monetária não é nada sem a influência dos zeladores da moeda sobre a extensão pela qual o capital-dinheiro fictício é criado. Isto pode acontecer indiretamente, por exemplo, ao definir o depósito compulsório que os bancos comerciais são obrigados a reter.
Mas há algo que é muito mais importante. Os próprios bancos centrais estão entrando nos mercados financeiro e de capitais como participantes do mercado, e acumulando capital fictício. A assim chamada “criação de dinheiro” consiste em bancos centrais garantindo o crédito a bancos comerciais, o que significa comprar promessas de pagamento. Quando os bancos centrais reduzem a taxa de juros sobre este crédito, ele abastece a criação de capital fictício. Aumentar a taxa prime tem o efeito inverso. Esta política de juros foi essencial para superar as crises anteriores na era do capital fictício. Com ela foi possível até mesmo detonar a acumulação privada de capital fictício durante a séria crise da nova economia na virada do milênio, com a drástica redução da taxa prime.
A bolha imobiliária, que também reascendeu a enfraquecida economia real, foi alimentada por crédito barato. Mas a crise atual parece diferente. Para evitar o colapso do sistema financeiro, os bancos centrais têm que adquirir cada vez mais ativos tóxicos e garantir crédito em grande escala onde ninguém mais iria fazê-lo, além de manter uma política de juro zero que fornecerá a matéria-prima para novas bolhas. Durante a fase de crise aguda no outono de 2008 [primavera no Brasil], isto se limitou a substituir o mercado interbancário paralisado. Normalmente os bancos internacionais emprestam uns aos outros o dinheiro que não estão usando em um piscar de olhos, mas eles tinham tão pouca confiança uns nos outros após a quebra do Lehman Brothers que aquela forma de liquidez secou, e os bancos privados receberam crédito apenas dos bancos centrais.
O que é ainda mais sério do que este resgate de curto prazo é o fato de que, enquanto isso, os bancos centrais têm de comprar títulos do governo em grande escala para evitar que o mercado destes valores mobiliários entre em colapso, começando uma reação em cadeia de insolvências governamentais. Mas a crise bancária ainda está latente, e os bancos centrais estão assumindo este risco, assim como estão fornecendo crédito de longo prazo a bancos comerciais em apuros, que obviamente seria perdido em caso de quebra.
Seja no Fed nos Estados Unidos ou nos bancos centrais europeus, isto está transformando todos os bancos centrais em bancos podres. Eles estão injetando capital-dinheiro loucamente no sistema bancário, enquanto a qualidade de suas reservas de moeda está se deteriorando rapidamente, porque elas são cada vez mais compostas por ativos tóxicos inegociáveis. De fato, a negociação de notas promissórias dos últimos quatro anos pode ter evitado o colapso do sistema financeiro, mas elas apenas adiaram a necessidade de desvalorização e, ao mesmo tempo, a socializaram.
RJ: Qual a probabilidade de haver inflação?
NT: A estabilidade monetária é ameaçada de dois lados: de uma parte, os bancos centrais estão injetando mais e mais capital-dinheiro no sistema bancário. Enquanto os bancos e seus clientes reutilizarem esse capital-dinheiro como capital, ou seja, enquanto comprarem títulos de propriedade ou o investirem produtivamente, não há consequências sérias para a estabilidade monetária. Isto muda, porém, quando ele flui para mercados de bens, sendo tratado apenas como dinheiro extra contra as mercadorias que estão sendo comercializadas. Quando isto ocorre em grande escala, porque há escassez de investimentos de capital, o inchaço na superestrutura financeira terá de ser transformada em desvalorização da moeda, o que significa inflação. Ao mesmo tempo, como já indicamos, mais cedo ou mais tarde isto levará a uma desvalorização aberta das reservas monetárias. Assim, uma oferta superestendida de dinheiro se encontrará com uma demanda reduzida.
Neste contexto, a questão não é se haverá inflação, mas quando ela começará e que caminho tomará. Até aqui, a inflação, ao menos aqui na Alemanha, se limitou a metais preciosos e terrenos, que funcionam como investimentos seguros no mundo dos bens materiais. No dia-a-dia isto já é visível na forma de aluguéis crescentes. Mas dificilmente isto parará aí.
De certa forma, isto implica um retorno ao estado da economia global de antes da real decolagem do capital fictício. Nos anos 70, os países capitalistas centrais foram caracterizados por um fenômeno que os economistas chamaram de “estagflação”: o crescimento fraco foi acompanhado por uma inflação anual de cerca de 10%. Mas as coisas ficaram muito maiores em comparação com aquele período. O crescimento fraco pode levar a uma recessão aberta, e a inflação à hiperinflação. Adiar a crise tem um preço.
RJ: O que causou a crise atual?
NT: Quando olhamos para as causas, temos que distinguir entre as duas camadas da crise. A crise de base da valorização do valor é, como já dito, o resultado da aceleração do desenvolvimento da produtividade, que torna o trabalho cada vez mais supérfluo. A terceira revolução industrial está tendo um papel crítico nisso. Enquanto também houve fortes impulsos para a racionalização em fases anteriores do desenvolvimento capitalista, por exemplo nos anos 20 e 30, quando os métodos de produção fordista foram introduzidos, novos setores da produção industrial de massa estavam sendo explorados ao mesmo tempo, e eles exigiam trabalho adicional em massa. A expansão da produção de mercadorias a novos campos compensava os efeitos da racionalização, de forma que em última instância mais trabalho era utilizado do que antes.
Mas na terceira revolução industrial, este mecanismo compensatório não está mais funcionando, porque a reestruturação do processo de produção baseada na tecnologia da informação implica transferir a força produtiva de uma sociedade para o nível do conhecimento, ou, mais precisamente, para a aplicação do conhecimento na produção. Os fundamentos da valorização do capital, em consequência, são colocados em xeque, porque isto leva ao deslocamento absoluto da força de trabalho em todos os setores da produção de valor, o que não pode mais ser compensado pelo desenvolvimento de novos setores.
RJ: Então o que é capital fictício, e qual o seu papel na crise atual?
EL: O capital fictício é essencial para o entendimento da segunda camada da crise. Trata-se de um conceito que Marx introduziu para distingui-lo de capital produtivo. Ele mostrou que o capital, em seu curso de desenvolvimento, não apenas transforma a produção de batatas, aço, têxteis, etc. em produção de mercadorias, mas que o próprio capital-dinheiro também se torna uma mercadoria comercializável.
O que acontece neste processo é espantoso. O capital inicial subitamente ganha uma existência dupla como resultado de sua venda. Por um lado, o capital inicial é agora possuído por um tomador de empréstimo ou companhia emissora de ações, mas ao mesmo tempo o emprestador ou acionista possui um espelho do capital inicial, ou um título de propriedade (título de dívida, ação, etc.), que representa um crédito pecuniário. Esta duplicação não é uma mera ficção, como o termo “capital fictício” parece sugerir. Ela não existe apenas na cabeça das pessoas. Ela adquire uma existência social objetiva na forma de valores mobiliários, enquanto o título de crédito parecer resgatável. Este é um crédito para um valor futuro, e representa a riqueza capitalista, exatamente da mesma forma que o valor que é extraído da força de trabalho pelo capital produtivo.
No tempo de Marx, Este tipo de aumento de capital através da capitalização antecipada de valor futuro era marginal, a ponto de ser irrelevante, para o desenvolvimento de longo prazo da acumulação de capital, mas ao longo dos últimos 30 anos, ela se tornou uma fonte real de riqueza capitalista. Para manter a produção capitalista apesar do fato de que o trabalho está se tornando cada vez mais supérfluo devido aos ganhos de produtividade, porções cada vez maiores de valor futuro, fictício, foram injetadas no presente. Como resultado, a crise estrutural da valorização foi adiada, por enquanto.
RJ: E qual é o cerne da questão?
EL: Infelizmente, um sistema baseado na antecipação de produção de valor futuro só pode funcionar como um esquema de pirâmide, e como tal ele é pressionado de dois lados: de uma parte, quanto mais tempo esta forma insana de capitalismo continua reprocessando a si mesma, mais rápido os ativos tóxicos de um futuro capitalista que já foi consumido serão empilhados até o céu. As dívidas do passado não podem desaparecer sem consequências. Ou elas são refinanciadas, ou o capital social será destruído pela nulificação do capital fictício.
Por outro lado, a maré crescente dos títulos de propriedade só pode encontrar mercado se de alguma forma parecer plausível que a promessa de pagamento e a perspectiva de lucros de parte dos tomadores de empréstimo e de outros vendedores de títulos de propriedade possa ser cumprida. Quanto isto não pode mais ser garantido, a bolha estoura, e parece haver uma “crise financeira”, quando na realidade a única coisa que fracassou é o mecanismo que tornou possível que a crise estrutural da valorização fosse adiada por décadas. Se você entende isto, você sabe que a crise atual é muito mais dramática do que geralmente se percebe. Trata-se de uma crise sistêmica no sentido mais estrito do termo: uma crise que genuinamente coloca em questão o sistema capitalista de produção de riqueza.
RJ: Quais serão as consequências das políticas de austeridade que estão sendo implementadas pelas classes política e financeira como solução para a crise?
NT: Duas coisas têm que ser mantidas separadas quando falamos sobre medidas de austeridade. Austeridade no sentido de estabelecer metas oficiais, especificamente como um caminho para o equilíbrio orçamentário, é uma Fada Morgana. Assim, novas dívidas têm de ser geradas, porque os estados ficaram sem escolha, a não ser injetar continuamente muitos bilhões no sistema bancário e financeiro para adiar o seu colapso o mais que puderem. Eles fazem isso porque haverá consequências catastróficas caso não o façam. Mas estes bilhões não podem vir da criação de valor real. Eles só podem sair da repetida antecipação de valor futuro.
Então os estados têm que fazer tudo o que está ao seu alcance para assegurar a sua credibilidade, e para fazê-lo como se o seu interesse fosse o de equilibrar os seus orçamentos no longo prazo. E é exatamente isto o que eles estão demonstrando, através de políticas brutais de austeridade em relação a toda esfera social que seja considerada puro estorvo da perspectiva do capital fictício: sistemas de bem-estar social, serviços públicos, educação, etc. A versão oficial deste relato se revela bastante bem nas distinções que eles fazem entre setores que são “sistemicamente relevantes” e “sistemicamente irrelevantes”. Não é necessário explicar que as consequências para a maior parte da população e para a produção de riqueza material são devastadoras. Basta olhar para a Grécia e a Espanha, onde o que está sendo implementado é exatamente o que mais cedo ou mais tarde ameaçará os países que ainda não foram tão seriamente afetados pelas consequências da crise.
RJ: Por que eles estão optando por esta política de empobrecimento?
NT: Eles não estão fazendo isto, por exemplo, para criar uma sociedade “sustentável”, ou para evitar deixar dívidas excessivas para “nossos filhos”, como coloca o jargão político hipócrita, pateticamente falso. Eles o fazem apenas para continuar a acumulação de capital fictício. O preço disso continua aumentando, entretanto, porque não se trata mais de uma questão de manter funcionando a máquina de produção de riqueza abstrata sugando valor futuro, mesmo quando a máquina é paralisada pela alta produtividade. Acima de tudo, ao contrário, o que tem que ser evitado é o colapso das montanhas de promessas de pagamento irresgatáveis. Por isto, a maior parte do capital fictício recém criado flui diretamente de volta para o setor financeiro, e cada vez menos entra em circulação na economia real.
Como consequência, fica claro que a política de austeridade está atingindo um ponto onde ela está se tornando contraprodutiva mesmo para o objetivo estreito de acumular capital fictício. Onde ela é levada ao extremo, como agora na Grécia e na Espanha, ela está conduzindo diretamente à depressão econômica – e isto também afeta o sistema bancário e financeiro. Lentamente, isto está ficando claro até mesmo entre os linha-dura da austeridade alemã e europeia. Por isto, e, é claro, por causa dos protestos de massa, novos programas de crescimento e estímulo estão sendo discutidos, mas resta saber se estes programas serão implementados a tempo, antes do começo da derrocada. Espera-se que eles percebam que podem pelo menos desacelerar a corrida para o empobrecimento.
É claro que mesmo no melhor dos casos isto serviria apenas para ganhar tempo, porque estes programas são subsidiados pelo mesmo capital fictício. Isto implica, então, que os seus apoiadores, como o presidente francês Hollande, não estão de maneira nenhuma desafiando a austeridade em si. Eles apenas querem dar-lhe uma forma ligeiramente diferente. Eles também estão perseguindo a ilusão de um orçamento equilibrado, e em último caso estão dispostos a demandar que a população faça todo o sacrifício possível por esta ficção. A partir desta perspectiva, podemos esperar muita carga de crueldade de uma possível coalizão verde-vermelha na Alemanha no próximo ano.
RJ: Em seu livro, vocês dizem que “Mais cedo ou mais tarde deve chegar o ponto no qual o nível das forças produtivas não é mais compatível com a forma capitalista da riqueza”. Mas não há sempre tendências que compensam a crise enquanto ela se desenvolve, ou depois?
EL: A teoria marxiana da crise une dois elementos. Por um lado, Marx sustenta a teoria de que o capital está indo em direção a um limite histórico insuperável, devido ao desenvolvimento das forças produtivas. Por outro lado, ele também examinou o curso das crises periódicas, que repetidamente interrompem a progressão da acumulação de capital. Em sua teoria da crise, ambos os elementos estão unidos, pois o problema básico do capitalismo, a subordinação da produção de riqueza material ao objetivo sem sentido da valorização do valor, sempre surge durante estas crises periódicas.
Ainda mais do que em outras esferas da sociedade, a discussão na esquerda é dominada por uma forte tendência a subestimar a crise atual. Consequentemente, o problema das crises periódicas é visto de forma isolada, e a possibilidade de um limite histórico é simplesmente ignorada. O resultado é uma maneira budista de entender as crises, segundo a qual as crises são apenas “crises autocorretivas”. Elas vêm e vão eternamente, e em última instância apenas fortalecem o capital. Isto também surge em Marx – onde ele tem algo completamente diferente a dizer sobre as crises periódicas. “As crises são sempre apenas soluções momentâneas e forçosas para as contradições existentes. Elas são erupções violentas, que por um tempo restauram o equilíbrio perturbado” . Para ele, o essencial é a constante intensificação e acumulação de novas contradições.
O nosso argumento no livro toma diretamente a ideia marxiana de um limite histórico, e o localiza na terceira revolução industrial. O fato de que a destruição de capital em tempos de crise restaura a lucratividade do capital remanescente, e portanto pode se tornar o ponto de partida para um impulso renovado de acumulação, não é uma resposta ao problema do limite histórico, mas estritamente para as crises periódicas. Ele assume que um novo impulso sustentável de valorização de capital pode começar depois que a supercapacidade for corrigida. Mas isto é exatamente o que é fundamentalmente descartado sob as condições da terceira revolução industrial.
RJ: Vocês fazem a correspondência das respectivas vitórias do keynesianismo e do neoliberalismo com diferentes fases da dinâmica da valorização econômica no capitalismo. Vocês podem explicar isso?
NT: O relativo sucesso do keynesianismo durante o boom do pós-guerra estava ligado a condições estruturais específicas que estavam fora do seu controle, o que significa que ele não as criou, e não poderia criá-las. As políticas de regulação e de redistribuição eram inteiramente funcionais, à medida que o emprego industrial massivo se expandiu e atuou como o motor de um boom autossustentável na valorização do capital. A expansão de sistemas de bem-estar social e o aumento real dos salários não apenas contribuíram para a pacificação social, mas também estabilizaram a escalada econômica, porque fortaleceram o consumo de massa. A expansão da infraestrutura pública teve importância no mínimo equivalente. Sem isso, a industrialização total e a mercantilização de tudo na sociedade não poderiam funcionar. Não se poderia dirigir automóveis sem uma densa rede de estradas, a eletrificação das casas exigia o fornecimento de energia, e um sistema educacional de boa qualidade e amplo era necessário para educar uma força de trabalho qualificada.
Então, o Estado exerceu um papel central, e isto alimentou a ideia de que ele também estava na posição de manter o desenvolvimento econômico, guiá-lo, e estabilizá-lo no longo prazo. Mas quando o boom fordista do pós-guerra chegou ao fim, isto se mostrou uma ilusão, porque, à medida que a valorização do capital foi paralisada, quando cada vez mais trabalhadores foram demitidos devido ao rápido aumento da produtividade, não foram apenas as fontes financeiras que secaram. Ainda mais sério foi o fato de que ele não conseguiria iniciar um novo surto sustentado de valorização de capital, apesar do massivo estímulo dos financiamentos e pacotes de crescimento.
Da nossa perspectiva, não há nada de notável nisso, porque, se o Estado pode intervir nos mecanismos de mercado até um certo ponto, ele não tem acesso ao processo fundamental que é determinado pela contradição interna do capitalismo. Para colocar de outra forma, o keynesianismo tornou-se inútil frente à racionalização geral que se seguiu à terceira revolução industrial, que em última instância erodiu os fundamentos da valorização do capital. Toda tentativa de tirar a economia real da estagflação fracassou miseravelmente.
Esta foi a razão mais profunda da vitória do neoliberalismo. Se tampouco tinha um plano para ressuscitar a valorização do capital, ele estabeleceu as bases para que a dinâmica econômica se transferisse para a “indústria financeira”, e consequentemente para adiar a crise pelas três décadas seguintes. O fatores críticos aqui foram, de um lado, a liberalização consistente dos mercados financeiros e, de outro, o aumento da dívida pública do governo Reagan, que de certa forma serviu como financiamento inicial para a acumulação de capital fictício em enorme escala. A destruição de estruturas fordistas através da desestruturação de sindicatos, etc. fez o resto, porque ao mesmo tempo a privatização do setor público abriu novos campos para o investimento financeiro, por exemplo a privatização de sistemas de previdência.
RJ: Qual o papel da revolução da tecnologia da informação nisso tudo?
NT: Da mesma maneira que o keynesianismo apoiou a expansão da produção industrial em massa, o neoliberalismo se tornou o padrinho da “indústria financeira”. É uma ironia da história que, como resultado, isto simultaneamente tenha ajudado no desabrochar da terceira revolução industrial. Por si mesma, ela teria se sufocado em sua própria produtividade. Mas a acumulação de capital fictício criou o cenário necessário para a ampla instalação da tecnologia da informação. Tornou-se possível suplantar temporariamente os poderosos efeitos da racionalização, que levaram a um massivo deslocamento do trabalho vivo de setores do núcleo da valorização, tomando valor futuro. O resultado, porém, é a progressiva erosão da produção de valor que só agora começa a ser perceptível em toda a sua extensão, na crise do capital fictício.
RJ: Em seu livro, vocês comparam a economia a uma “escola de arte que prescreve a borracha como a única ferramenta para a confecção de retratos”. O que isso significa?
EL: Isto nos leva de volta à questão do início da entrevista. A economia, não importa a escola, não pode entender a crise, porque ela oblitera a distinção básica entre as duas formas de riqueza: riqueza material e riqueza abstrata. Os capítulos iniciais dos livros de teoria econômica sempre dizem que o objetivo da economia é a satisfação das necessidades e a ótima provisão de bens para as pessoas, e que somente a economia de mercado sob condições avançadas de divisão do trabalho pode atingir este objetivo.
Então, o funcionamento da economia de mercado é descrito de acordo com o princípio da troca simples de mercadorias, da mesma maneira que em uma praça do mercado em uma vila idealizada, onde sapatos são trocados por porcos e ovos por novelos de lã. Isto sistematicamente exclui o que é totalmente óbvio, ou seja, que sob as condições capitalistas, produz-se apenas o que transformará dinheiro em mais dinheiro, e que o objetivo da produção é a reprodução de riqueza abstrata, e a mercadoria é simplesmente um meio para manter este sistema autorreferente em operação. Para colocar em outros termos: a economia usa a borracha logo no nível de suas premissas básicas, e apaga o que é específico sobre o modo capitalista de produção. Não surpreende, portanto, que seja incapaz de reconhecer as causas da crise.
RJ: Vocês consideram a crítica personificada dos especuladores e banqueiros como mecanismos antissemitas e racistas. Por quê? A crítica dirigida a banqueiros desde 2008 não foi construída sobre chavões antissemitas, ao contrário dos anos 20, quando caricaturas eram ilustradas com imagens antissemitas. Ou algo está me escapando?
NT: Para começar, nos distanciamos fundamentalmente de toda crítica personificada, que atualmente está fora de controle de todas as formas possíveis. A crise do capital fictício é também uma crise do euro. E como ela vem sendo considerada? Ela é causada pelos “gregos preguiçosos”, que teriam desperdiçado o nosso dinheiro “suado”. Esta personificação não apenas ignora de maneira insana o fato de que uma sociedade foi empobrecida em meio à abundância, simplesmente porque toda riqueza tem de passar pelo buraco de agulha da produção de mercadorias. O que é pior é que a raiva em relação a essa situação miserável é projetada sobre sujeitos coletivos específicos, construídos, de forma que agora se abriu uma temporada de caça.
Colocar a culpa em banqueiros e especuladores em si mesmo é “apenas” mais uma forma desta personificação. Mas nisso há algo mais que ressoa, que muitas vezes permanece inconsciente. Esta personificação particular é em grande medida congruente com um modelo básico de antissemitismo, que constrói uma oposição entre capital “produtivo” e capital “acumulador de dinheiro” – e o último é identificado com os judeus. Podemos ver novamente este modelo hoje na ideia generalizada de que a economia real foi destruída por alguns especuladores gananciosos, e de que o que importa é que limites lhes sejam impostos.
Isto não significa que todos os que atacam os banqueiros e especuladores sejam antissemitas. O que significa é que este modelo projetivo de processar a crise é totalmente compatível com a mania antissemita. Não é coincidência, portanto, que a linguagem metafórica deslize para esta direção repetidamente, por exemplo no notório termo “gafanhoto”, que o político social-democrata alemão Franz Müntefering popularizou, colocando-se como um crítico do capitalismo. A frase “eles nos atacam como gafanhotos” vem do filme de propaganda nazista Jud Süß, e não é necessário explicar que eles eram animais gananciosos. Outras imagens também são recorrentes, como a popular representação do capital financeiro como um polvo com o mundo em seus tentáculos. Ela também aparece de forma quase idêntica na propaganda antissemita dos nazistas. Temos que ser muito cuidadosos com isso. Ainda há um tabu na Alemanha contra adentrar na agitação antissemita aberta, mas a tendência é que isto se torne perceptível, e isto é muito perigoso.
RJ: Que tipo de praxis política e social emerge, concretamente, do seu modelo teórico?
NT: Bem, antes de mais nada uma totalmente fundamental rejeição da política de austeridade. É completamente insano afirmar que vivemos além de nossas possibilidades e que temos que apertar os cintos, frente aos níveis de produtividade altíssimos. O contrário é verdadeiro. Se fizéssemos uso integral das possibilidades das forças produtivas modernas, toda pessoa do mundo poderia ter uma boa vida, e teria de gastar apenas uma fração de seu tempo de vida produzindo bens materiais.
A única razão pela qual isto não ocorre é porque a empresa capitalista, obviamente, obedece a sua compulsão para criar riqueza abstrata, porque ela adere à noção de que a riqueza material só é reconhecida quando representa “valor”. E isso não é simplesmente algum tipo de oportunidade perdida ou uma possibilidade que passou despercebida. A aderência à lógica da produção de valor no estado atual da produtividade é simplesmente catastrófica, porque leva à exclusão de um enorme número de pessoas “supérfluas”, que são sacrificadas no altar do imperativo sistêmico de manter o fluxo de capital fictício do futuro para o presente.
Mas se nos livrarmos da ideia aparentemente óbvia de que os bens materiais só podem ser produzidos como mercadorias, então se abrem perspectivas totalmente novas. Especificamente, poderíamos perguntar como e em que forma o potencial existente poderia ser usado de maneira racional em favor da riqueza geral, sem ter de pensar sobre viabilidade financeira, viabilidade de mercado ou lucratividade. Ao contrário, teríamos que reivindicar a perspectiva da riqueza material e das necessidades concretas. Isto já acontece nas práticas dos movimentos sociais, por exemplo quando ações de despejo são evitadas porque as pessoas não vêem por que alguém teria que viver na rua ou em uma barraca simplesmente porque não pode mais pagar a sua prestação ou aluguel, ou quando as pessoas simplesmente dizem não à privatização de instituições públicas na esfera social e cultural. São passos iniciais que apontam na direção correta. Quando eles estão ligados a uma crítica radical da forma abstrata da riqueza, abrem-se perspectivas totalmente novas de emancipação social.
Publicado originalmente em Telepolis, em três partes, em 1o, 2 e 6 de agosto de 2012. Traduzido por Daniel Cunha a partir da versão inglesa traduzida por Joe Keady (www.krisis.org). O original alemão foi consultado como referência. Títulos originais: “Alle Zentralbanken sind dabei, sich in Bad Banks zu verwandeln” (parte 1); “Die Wirtschaftskrise und das fiktive Kapital” (parte 2) e “Der Neoliberalismus wurde zum Paten der Finanzindustrie” (parte 3).
Tradução publicada em Sinal de Menos 9
http://sinaldemenos.org/2013/01/21/sinal-de-menos-9/