por Norbert Trenkle
Traduzido por Marcos Barreira
Teses para o congresso: “O que resta da esquerda hoje?”.
Publicado em Widerspruch. Münchner Zeitschrift für Philosophie, Nr 61/ 2015.
1. Quando, há mais de 25 anos, o socialismo real entrou em colapso, o público liberal-democrático estava convencido de que o sistema social baseado na economia de mercado e na democracia triunfara na batalha histórica do “conflito de sistemas”. Francis Fukuyama decretou sua célebre sentença sobre o “fim da história”, que correu o mundo, enquanto a esquerda tradicional perdia o chão sob seus pés.
Poucas vozes críticas contrariaram esse clima de euforia. Alguém sugeriu com humor que, na verdade, o Ocidente não teria saído vitorioso, mas apenas viria a ser o último dos derrotados. Longe de promover um bem estar capitalista geral, o capitalismo desenfreado, sem oposição de um sistema antagônico, desenvolveu sua força destrutiva sem inibição. Na perspectiva crítica do valor, tal como era formulada no contexto da revista Krisis, a questão era colocada em termos muito diferentes. De acordo com nossa análise, o socialismo de Estado que chegou ao fim não era de modo algum um sistema social alternativo; foi somente um regime de modernização recuperadora sob o signo do autoritarismo estatal e que atingiu seus limites históricos, pois sua estrutura esclerosada e inerte não era capaz de acompanhar os novos padrões de produtividade da Terceira Revolução Industrial. Ao mesmo tempo, interpretamos o colapso daquele regime como o início de uma crise fundamental do modo de produção capitalista em geral, que sufocava a hiperprodutividade por ele mesmo desencadeada (cf. Stahlmann 1990; Kurz 1991). Esse diagnóstico foi amplamente questionado e, durante algum tempo, parecia refutado por um grandioso desenvolvimento social real. Mas agora, mesmo com o atraso de um quarto de século, o sistema mundial capitalista começou a desmoronar em uma velocidade incrível. Para compreender as causas e a natureza dessa dinâmica desenfreada é necessário, antes de tudo, lançar um olhar retrospectivo sobre esse desenvolvimento das últimas duas décadas e meia.
2. Pouco depois da ruptura histórica de 1989, o otimismo eufóricocomeçou a ser refreado. A invasão do Kuwait por Saddam Hussein abalou a arquitetura geopolítica do Oriente Próximo e Médio e assim a questão de uma “nova ordem mundial”, após o fim da confrontação entre blocos, voltou à ordem do dia; a intervenção subsequente por parte do Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, resultou numa estabilização muito precária e efêmera. Pouco depois, com a sangrenta desintegração da Iugoslávia, a guerra bateu diretamente às portas da União Européia, enquanto nacionalismo e separatismo começaram a prosperar em outros países da Europa e do mundo. Também economicamente a primeira metade da década de 1990 estava longe de ser promissora. O antigo bloco do Leste estava afundado, os países do Terceiro Mundo sofriam com o peso de uma dívida terrível e com as políticas de ajuste liberais impostas pelo FMI e o Banco Mundial, enquanto o desemprego estrutural em massa nos centros capitalistas aumentava. Ao mesmo tempo, os novos focos de conflito e guerra civil, associados ao ocaso econômico dos países do antigo bloco do Leste, causaram grandes movimentos migratórios que, por sua vez, conduziram a Europa a reações defensivas histéricas, preparando o caminho para uma brutal política de isolamento liderada pela Alemanha. Mais de um político liberal, dos que acabavam de celebrar a vitória do Ocidente, de repente ansiavam outra vez pela reconstrução do muro (cf. Trenkle, 1993).
3. Se no final dos anos 1990 e na década de 2000 a situação econômica pôde ser estabilizada, foi, sobretudo, graças a um gigantesco boom da economia mundial, para o qual foi determinante o inchaço dos mercados financeiros, i.e., a acumulação maciça de capital fictício. Esse boom parecia refutar de um modo grandioso todos os diagnósticos de um “colapso da modernização” como crise fundamental do sistema mundial capitalista. Também o fato desse crescimento econômico não estar limitado às metrópoles capitalistas tradicionais encorajou muitos dos chamados países emergentes. Especialmente na China, Brasil e Índia, bem como alguns países do Sudeste Asiático, cujos programas de desenvolvimento lançados nos anos 1960 e 1970 haviam naufragado, experimentaram um boom sem precedentes sob a nova bandeira da “acumulação impulsionada pelos mercados financeiros” e se converteram em gigantes econômicos. Mesmo certo número de países africanos e da América Latina que, no final dos anos 1990, foram considerados os grandes perdedores da globalização, conseguiram, após a virada do século, a partir dessa conjuntura econômica, vender suas matérias primas e produtos agrícolas, cuja demanda no mercado mundial disparou. Em virtude da exportação de matérias primas, até a Rússia pôde erguer-se, tanto econômica como politicamente e, sob o regime ditatorial de Putin, ampliar sua influência nos acontecimentos geopolíticos.
4. A recuperação da economia mundial, no entanto,teve um caráter completamente diferente do boom fordista do pós-guerra. Se o fordismo se baseou na valorização de capital mediada pela exploração em grande escala da força de trabalho na produção industrial em massa, ou seja, na apropriação de valor resultante do trabalho passado, a nova dinâmica econômica foi impulsionada pela antecipação maciça de valor futuro. Essa mudança de fundamento tem razões estruturais. A crise do modelo de acumulação fordista, nos anos 1970 e 1980, ocorreu porque a aplicação da ciência à produção, na esteira da Terceira Revolução Industrial, tornou-se a principal força produtiva, fazendo com que o mecanismo clássico de valorização do capital colidisse com seus limites históricos. Diante da expulsão massiva e absoluta de trabalho na produção imediata, a criação de valor na produção tornou-se insuficiente para manter vivo o fim em si mesmo do movimento permanente de multiplicação do dinheiro. Desse modo, foi afetado o mecanismo funcional de base do modo de produção capitalista (cf. Lohoff/Trenkle, 2012).
5. Uma saída temporária para essa crise foi encontrada graças à acumulação em grande escala de capital fictício. Há sempre uma produção de capital fictício quando títulos de propriedade, tais como títulos de dívida ou ações, são colocados em circulação ou quando ocorre uma subida de preço dos títulos que já circulavam. Esses títulos são promessas de pagamento negociáveis e representam um determinado tipo de mercadoria com características muito peculiares, as mercadorias de segunda ordem (cf. Lohoff/Trenkle, 2012). Por meio da sua venda é possível aumentar o capital investido, sem recurso à força de trabalho e sem se “desviar” pela produção de mercadorias no mercado de bens.
Como isso é possível? Como a aquisição de promessas de pagamento negociáveis o dinheiro não é simplesmente transferido da mão do vendedor para a do comprador. A transferência do credor ao devedor, i.e. do comprador par ao emissor das ações, é acompanhada da duplicação temporária do montante de dinheiro envolvido. Ao lado do capital inicial, agora nas mãos do emissor de crédito ou do destinatário das ações, entra em cena, sob a forma do título de propriedade, a sua imagem especular autonomizada, representando o valor futuro. Enquanto o título de propriedade é válido, ou seja, ao longo de sua duração, produz-se desse modo uma acumulação de capital sem acumulação de valor (Lohoff, 2014).
Longe de ser algo novo, esse estranho mecanismo de duplicação sempre foi um elemento da lógica funcional de base do modo de produção capitalista. Mas na crise fundamental da valorização, determinada pela eliminação absoluta da força de trabalho, na sequencia da Terceira Revolução Industrial, ele assumiu uma característica completamente nova, na qual todo o sistema se apoia: se converteu no motor da dinâmica da economia global. Há muitos anos que a opinião pública se escandaliza com o alarmante aumento do capital financeiro, considerando-o uma “aberração” (Fehlentwicklung) responsável pelos diversos fenômenos de crise. A realidade, no entanto, é que o sistema mundial de produção de mercadorias sem a acumulação de capital autonomizada nos mercados financeiros já teria agonizado há pelos menos três décadas. Sem a “produção” massiva de capital fictício não haveria nenhum boom industrial em países como China, Índia, Brasil etc., nem os antigos Estados do socialismo real teriam se reerguido e a Terceira Revolução Industrial teria se estrangulado em sua própria produtividade, tornando supérflua em grande escala a força de trabalho e destruindo os fundamentos da valorização do capital.
6. Essa dinâmica com base no capital fictício, no entanto, apresenta algumas diferenças significativas a partir do boom fordista do pós-guerra. A mais importante é que a acumulação de capital já não depende, em primeiro lugar, do dispêndio da força de trabalho, uma vez que o crescimento do dinheiro ocorre, em grande parte, diretamente nos mercados financeiros. Por isso, aqueles que vendem sua força de trabalho perderam muito o poder de negociação, que até agora se baseava na dependência da acumulação de capital em relação a eles. No plano estrutural, a posição do trabalho sempre foi mais fraca que a do capital, porque a sobrevivência dos assalariados depende apenas da venda permanente da força de trabalho. Essa situação podia ser atenuada, especialmente nos períodos de maior demanda, graças à organização sindical e política. Mas, na era do capital fictício, em que a acumulação de capital se baseia sobretudo na venda de promessas de pagamento negociáveis, i.e., mercadorias de segunda ordem, o sistema de coordenadas sociais das relações de força se modificou em benefício do capital. A razão disso é que hoje em dia o capital está na cômoda posição de quem pode “produzir” de maneira autônoma os produtos básicos para a acumulação nos mercados financeiros, de modo que resta à mercadoria força de trabalho apenas uma importância secundária em termos de contribuição ao incremento de capital (cf. Trenkle, 2015b).
A ampla racionalização nos setores-chave do mercado mundial e a simultânea globalização enfraqueceram sensivelmente o poder de negociação dos assalariados, que podem ser substituídos a qualquer momento por sistemas automatizados ou pelos baixos salários em qualquer parte do mundo. Precarização, pressão sobre os salários e uma crescente obcessão pela eficiência são as consequências lógicas.
Ao mesmo tempo, a produção de bens para o mercado, que durante o fordismo foi o meio principal do movimento de fim em si mesmo da multiplicação do dinheiro, passou por uma transformação funcional no interior do sistema. Decisivo para a valorização do capital era o dispêndio de força de trabalho na produção de automóveis, geladeiras, máquinas e ferramentas etc., enquanto a criação de capital fictício permanecia essencialmente vinculada à dinâmica de valorização. Ela poderia ser financiada com antecedência mediante empréstimos ou ações, por exemplo, grandes investimentos em fábricas e infraestruturas, aonde a antecipação do valor futuro vinha coberta graças ao emprego da força de trabalho na produção de bens para o mercado. Essa relação mudou na era do capital fictício. Agora a chamada economia real já não é o motor da multiplicação do dinheiro, já que esta depende no mais alto grau da acumulação de títulos de propriedade nos mercados financeiros. Quando tal dispositivo trava, como em 2008, também seca imediatamente o fluxo de dinheiro destinado ao investimento ou à aquisição de bens de consumo e a economia real ingressa em uma crise da qual ela só pode sair se a “produção” de capital fictício ganhar novo impulso. A produção de bens de mercado é sistemicamente funcional apenas na medida em que oferece um ponto de referência para as expectativas de lucro, para as quais os compradores de títulos de propriedade se orientam; por isso, proporciona uma sensação de materialidade ao “mercado de fantasia” sem a qual não ocorre a antecipação de valor futuro (cf. Lohoff/Trenkle, 2012).
7. A indiferença em relação ao conteúdo da produção, que é uma das características básicas do modo de produção capitalista, é levada assim ao extremo. Em nenhum outro momento isso ficou tão claro como na grande crise financeira, quando governos e bancos centrais colocaram a disposição centenas de bilhões para salvar os setores financeiro e bancário, considerados (de certa forma, com razão) de “importância sistêmica”, e quebrando, em seguida, os setores sociais e de saúde. Mas também o aumento exorbitante dos preços dos imóveis, que em muitos lugares transformam a habitação em um bem de luxo, se deve à dinâmica do capital fictício, que capitalizou as expectativas de lucros futuros; algo semelhante ocorreu com a valorização das matérias primas, recursos naturais e terras agrícolas (Lohoff, 2015). Não é coincidência que, nos últimos anos, muitas lutas sociais tenham sido desencadeadas por pessoas expulsas de seus bairros, por causa da mercantilização do espaço público, dos despejos de casas após a crise imobiliária e da apropriação da terra e dos recursos naturais por parte das corporações globais.
A era do capital fictício moldou a sociedade, não só economicamente, mas também em termos sociais e políticos. Ela foi inaugurada pelo desmantelamento da estrutura do Estado social e da regulação fordista, desde o ajuste neoliberal da sociedade com a sempre intensa pressão sobre o mundo do trabalho flexibilizado e a mercantilização de todas as relações sociais. O resultado previsível foi uma agudização da concorrência geral e uma progressiva atomização dos vínculos sociais. Não por acaso, tudo isso anda de mãos dadas com a revitalização geral de um nacionalismo que parece satisfazer o desejo regressivo de pertencimento a uma coletividade aparentemente capaz de oferecer proteção, se associando a ideologias racistas e social-darwinistas com base na exclusão ou a enfurecidos separatismos regionalistas em parte belicosos e sangrentos, em parte no plano da ação política. Por razões análogas, o fundamentalismo religioso proliferou por todo o mundo e sob diversas formas – não apenas no islamismo, embora este último, devido à natureza específica do fracasso da modernização recuperadora no Oriente Próximo e Médio tenha desenvolvido um potencial particularmente agressivo e brutal (Trenkle, 2015a).
8. Ao mesmo tempo, despontou uma nova força de esquerda, sob a forma de um movimento crítico da globalização, diferente em dois aspectos da esquerda que o precedeu. Por um lado, suas estruturas transnacionais em rede, não hierárquicas, refletem outra vez as mudanças na forma do mundo, o que, sem dúvida, representa um avanço em relação ao “internacionalismo” ultrapassado, que ainda mantinha a nação como referência. Mas, por outro lado, as críticas e objetivos do movimento crítico da globalização, pelo menos em suas tendências principais, permanecem presos ao sistema de referências da lógica capitalista. A crítica foi dirigida principalmente ao neoliberalismo e à dominação do capital financeiro, que foram responsabilizados pela crise e pelas distorções socioeconômicas; portanto, a alternativa era o mito de um retorno ao capitalismo regulado de bem-estar, no qual a “economia real” voltaria a ter um papel central.
A pesar dessa crítica redutora (ou talvez por causa dela) o movimento de crítica da globalização contribuiu para uma modificação do clima social: o discurso hegemônico neoliberal foi sendo cada vez mais questionado e ainda foi possível deter, pelo menos em parte, o desmantelamento do Estado social e as privatizações ou mesmo cancelar algumas medidas. Em muitos países da América Latina, na primeira década do milênio, partidos de esquerda conseguiram até mesmo chegar ao governo e utilizaram a margem de distribuição aberta pelo boom do capital fictício numa série de melhorias sociais, legais e políticas para as populações até então marginalizadas e desprotegidas.
9. Com a crise financeira de 2008, no entanto, foi atingido o limite da era do capital fictício. O grande colapso do sistema financeiro internacional e da economia mundial que se baseia nele só foi evitado por meio de uma grande quantidade de pacotes de salvamento estatais em favor do setor bancário e financeiro e da inundação do mercado com crédito barato dos bancos centrais. Foi nessa situação que a esquerda crítica da globalização se mostrou totalmente impotente. Depois da crise a demanda por mais controle sobre os mercados financeiros e o fortalecimento da economia real se fez ouvir nos principais meios de comunicação oficiais e isso foi implementado pelos governos; paralelamente, verificou-se uma mudança no clima social: o neoliberalismo, na defensiva, perdeu sua hegemonia para um novo tipo de keynesianismo. Na realidade, tratava-se apenas da música de fundo ideológica global dos programas de estímulo estatais, que tinha como objetivo, antes de tudo, sanear os bancos e retomar a acumulação fictícia a qualquer custo. As ideias políticas da esquerda crítica da globalização revelaram-se, assim, totalmente ilusórias. De modo algum ocorreu uma contenção do capital financeiro e nem o fantástico “retorno à economia real”, ainda que isso fosse evocado como um mantra por todos os espectros políticos. A razão não era falta de vontade política: simplesmente não havia qualquer base econômica para tal retorno. Devido ao nível exorbitante de produtividade que, por sua vez, resulta da dinâmica contraditória do capitalismo, o processo autorreferencial do capital não pode continuar por meio do emprego de força de trabalho na produção, mas depende a qualquer preço da acumulação de capital fictício.
10. Do mesmo modo, os partidos de esquerda se viram obrigados a aceitar o plano de resgate para o setor bancário e financeiro ou mesmo a colaborar ativamente em sua execução, de modo a evitar o colapso da economia mundial. Só então eles perceberam que o desenvolvimento econômico tornou-se cada vez mais dependente da intervenção do banco central, que, por sua vez, não teve alternativa a não ser inundar o mercado financeiro comum fluxo gigantesco de dinheiro quase sem juros. Isso porque, após 2008, a acumulação de capital fictício no setor privado não engatou e desde então, na prática, teve de ser subsidiada permanentemente na forma da política monetária (ver Lohoff/ Trenkle 2012, S. 258 ff.). A capacidade dos governos de controlar a política econômica, por outro lado, era extremamente limitada.
Além disso, o crescimento da dívida estatal, que alcançou níveis estratosféricos, especialmente nos países mais afetados pela crise, tendo em vista a socialização das perdas dos setores bancário e financeiro, confirmou mais uma vez a insanidade da linha dura neoliberal e sua política de austeridade. A situação mais grave ocorreu na Europa, onde alguns países, especialmente a Alemanha, emergiram como ganhadores na crise e agora impõe uma austeridade brutal e insensata aos países do sul europeu. O tratamento dado à Grécia foi especialmente amargo, onde mesmo o governo do Syriza, eleito em reação a esse estado de coisas, ante a chantagem dos sádicos da austeridade alemães, se transformou em executor das políticas contra as quais haviam lutado ativamente.
11. Os dissidentes de esquerda que criticam essa guinada tiraram, no entanto, consequências quase tão ruins em termos ideológicos: estão aumentando a fantasia de que a solução consiste no retorno à “soberania nacional”, abandonando a zona do euro, a UE e outros contextos supranacionais. Essa ideia é, de fato, completamente ilusória, pois, de um lado, uma separação da rede de conexões globais é simplesmente impossível; de outro, teriam apenas consequências catastróficas para os países que se esforçassem para implementá-la. No entanto, ela reflete a tendência perigosa e cada vez mais acentuada de isolamento nacionalista, que, após a crise do euro – e agora também por causa das políticas díspares sobre o problema dos refugiados – corre o risco de desintegrar a União Europeia. A consequência dessa política “radical de esquerda” (propagada pelos dissidentes do Syriza, o grupo Lafontaine-Wagenknecht e outras esquerdas na Europa) não seria a restauração da soberania econômica e social dos países, mas um isolamento agressivo juntamente com o empobrecimento interno, que abriria caminho para regimes autoritários de crise semelhantes aos já vistos na Rússia e na Hungria; a Polônia também parece ter seguido o mesmo caminho.
Ao mesmo tempo, esse nacionalismo regressivo se mistura sistematicamente com os piores tipos de teoria da conspiração, nas quais sempre os poderes misteriosos externos e forças secretas sabotam as políticas em defesa do “trabalho honesto” e contra a especulação. É a outra face de uma ilusão política totalmente infundada que só pode explicar seu fracasso através de personificações projetivas obscuras. Não por acaso, todos os estrategistas de frentes transversais podem facilmente construir a partir disso uma ponte para o antissemitismo aberto e o extremismo de direita.
12. Essa oscilação entre submeter-se aos ditames de austeridade e a regressão nacionalista alimentada por teorias da conspiração é o resultado da fixação na lógica básica da sociedade produtora de mercadorias. A esquerda que aceita sem pestanejar que a riqueza é produzida na forma de mercadorias, que por sua vez é apenas um meio para o fim da acumulação capitalista, pode ter apenas um programa para influenciar e controlar politicamente a dinâmica capitalista, de modo que de modo que a riqueza produzida nessa forma capitalista seja redistribuída de forma socialmente justa. Durante o boom do fordismo, essa política contava com uma legitimidade relativa e, em essência, ajudou a melhorar consideravelmente, pelo menos em alguns aspectos, as condições de vida e de trabalho de grande parte da população nos centros capitalistas. Na era do capital fictício, porém, ela se tornou uma perversa caricatura de si mesma. Isso porque, como já mencionei, é necessária uma quantidade crescente de recursos para manter em movimento a acumulação de capital, enquanto declina a quantidade de riqueza na forma de mercadorias que pode ser redistribuída socialmente. Em outras palavras: o que “realmente conta” é quase ridículo em comparação com os recursos e meios financeiros que devem ser gastos no funcionamento e manutenção da máquina capitalista.
No entanto, enquanto for possível manter em movimento a acumulação de capital fictício, que além de induzir um crescimento mais ou menos forte na economia real (Lohoff, Trenkle, 2012, S. 147 ff.), provoca um maior influxo de taxas e impostos, que eventualmente dão uma nova margem de manobra financeira ao Estado – e de modo alguém é irrelevante o modo como ela é usada. Na disputa política, no entanto, a atual resposta da esquerda é extremamente limitada. Ela se orienta pelos padrões keynesianos clássicos: estimulo conjuntural mediante a ampliação do poder aquisitivo das massas, programas públicos de investimento e, ao mesmo tempo, uma distribuição mais justa da riqueza. Comparada ao fanatismo da austeridade neoliberal, essa alternativa é sem dúvida melhor, porque o seu objetivo é a melhoria ou pelo menos a estabilização das condições sociais de grande parte da população. No entanto, ela é precária em ao menos dois aspectos.
Em primeiro lugar, tais programas de estímulo econômico só podem ter êxito, pelo menos no curto prazo, caso ganhem a famigerada confiança dos atores do mercado financeiro, para que o dinheiro não seja retirado nos respectivos países. Não há dúvida de que os atores do mercado são, em geral, mais pragmáticos do que os ideólogos neoliberais na esfera política, uma vez que eles só se interessam pelo dinheiro, quaisquer que sejam os meios; apesar disso, a dependência imediata do capital fictício reduz fortemente o alcance da ação política. Basicamente, são implementadas apenas medidas que prometem ou que pelo menos não impedem os êxitos econômicos de curto prazo e no menor tempo possível. Por exemplo, as medidas de política social ou de saúde, que se dirigem “apenas” às necessidades da população, levam rapidamente à redução da credibilidade do país, colocando em xeque todo o projeto de política econômica. Mesmo os governos “de esquerda” com frequência têm as suas preocupações sociais e ecológicas quebradas quando surgem oportunidades para a criação de novos campos de investimento de capital.1
Em segundo lugar, mesmo esses projetos neokeynesianos encontrarão brutalmente seus limites o mais tardar com o próximo grande impulso da crise no mercado financeiro. Ninguém pode dizer exatamente quando isso vai acontecer, mas é certo ele é inevitável e que será muito mais grave do que a crise financeira e econômica de 2008. Como o ciclo atual do capital fictício alimenta os mercados com dinheiro sem custos dos bancos centrais, é bastante provável que este seja massivamente desvalorizado e que se produza uma hiperinflação global. Mas mesmo se tal cenário não ocorre de imediato, para os bancos centrais, eles mesmos apoiados em montanhas de dívidas irrecuperáveis com outros bancos e Estados, será muito difícil absorver o impulso da crise com os meio adotados até aqui. E os próprios governos já não poderão lançar programas de estímulo colossais como da última vez, já que estão, pela mesma razão, endividados até o pescoço. Além disso, em uma situação crítica, seria difícil um acordo de intervenção de crise global por parte dos grandes Estados; as forças nacionalistas prevaleceriam, colocando em marcha uma dinâmica centrífuga de corrida pela delimitação e incitação mútua, que dissolveria não apenas as alianças internacionais, mas igualmente a associação supranacional da União Européia. Com uma concorrência política negativa do salve-se quem puder, como se pode ver no fluxo de refugiados e no processo de desintegração armada no Oriente Médio, foi alcançada uma etapa qualitativamente nova e com dimensões extremamente perigosas do processo de crise.
13. A situação é ainda mais dramática para a continuidade de uma esquerda que apregoa seus conceitos keynesianos como se fossem a última novidade e não quer ver que desse modo ela amarra suas próprias mãos. Novas possibilidades de ação só serão abertas com a perspectiva de superação do modo de produção e de vida capitalista, que já não pode ter nada em comum com o merecidamente extinto “socialismo real”. Seu conteúdo pode ser apenas a produção, apropriação e distribuição da riqueza material-sensível e a reorganização das condições da vida social para além da produção de mercadorias, da valorização do capital e da administração estatal. No entanto, isso requer novas formas, procedimentos e instituições para discussão e planejamento social, nas quais os indivíduos livremente associados podem decidir sobre o que lhes diz respeito, sem que seu horizonte de ação seja ditado pelas restrições reificadas e cada vez mais destrutivas da lógica da mercadoria e da “financiabilidade”. É claro que tais formas de associação livre de indivíduos em cooperação não podem surgir do dia para a noite, mas devem ser desenvolvidas e testadas em um processo de transformação social mais amplo. A questão que se coloca é onde identificar os possíveis pontos de partida que teriam relação com esse processo.
No que diz respeito ao desenvolvimento das forças produtivas e do conhecimento social, há possibilidades de um modo de produção descentralizado, mas conectado em termos globais e tecnicamente eficiente, organizado de acordo com critérios da razão sensível-material e compatível com a preservação dos fundamentos da natureza. Alguns exemplos já existem atualmente, tal como o fornecimento descentralizado de energia a partir de fontes renováveis; sob as condições atuais, porém, tais potenciais não podem se desenvolver porque a lógica capitalista tende a centralizar e formar grandes unidades de valorização, de modo que os projetos poupadores de recursos e a produção ecológica são compensados pelo aumento da produção voltada para a acumulação de capital (efeito rebote). Algo semelhante também ocorre com as tecnologias modernas de informação e comunicação que, em virtude de sua capacidade de poupar trabalho, impulsionam o processo fundamental de crise do capitalismo, tornando cada vez mais pessoas “supérfluas” e destruindo as estruturas da vida social. Se fossem utilizados no sentido da produção da riqueza material e da satisfação das necessidades concretas-sensíveis, por outro lado, ajudariam a realizar um velho sonho da humanidade: o de uma sociedade onde todos têm o suficiente para levar uma boa vida e dispor do tempo.
Uma tarefa muito difícil será desenvolver novas formas não hierárquicas de discussão e deliberação social, necessárias para realmente desenvolver essas possibilidades (para essa discussão, veja também Meretz 2005). Tal tarefa só pode ser efetivada no contexto de um amplo setor alternativo e auto-organizado que rompa conscientemente com a lógica da produção de mercadorias. Tentativas nessa direção já existem e se formam eventualmente no contexto das lutas sociais, especialmente em situações de crise. Há exemplos na Grécia, onde surgiu em todos os âmbitos da vida social (saúde, habitação, cultura, produção etc.) um grande número de iniciativas e redes auto-organizadas em resposta à crise e à política brutal de empobrecimento. Essas tentativas (tanto na Grécia como na Espanha, Argentina e outros lugares) sempre sofrem com pouco acesso a recursos sociais; além disso, sua ação é limitada por regulações legais e burocráticas e pela repressão estatal. Como não podem se desenvolver como uma alternativa social vigorosa, elas parecem um “linha de defesa” improvisada para lidar com as consequências da política de austeridade. É aqui que se abrem novas alternativas de ação para uma esquerda que entende a si mesma como força emancipatória à altura do tempo: ela deve fazer o possível para melhorar as condições materiais, legais e sociais para novas formas de solidariedade auto-organizada e emancipatória, a fim de criar as bases para uma alternativa ao modo de produção e de vida capitalista e com a perspectiva da sua superação.
14. A este respeito, alianças eleitorais como Syriza e Podemos, surgidas nos movimentos de protesto social, poderiam desempenhar um papel importante e se destacar como alternativa real à política convencional dos partidos da esquerda. Isso, no entanto, requer uma mudança radical de perspectiva e uma nova autocompreensão. Tanto Syriza quanto Podemos estão prestes a se transformar em partidos perfeitamente convencionais, que procuram colher o legado da velha socialdemocracia. Muito rapidamente, reproduziu-se a divisão clássica do trabalho, que caracterizou os últimos 150 anos, entre movimento social e partido político, que consiste essencialmente em o primeiro se deixar reduzir a um estado de inferioridade e de impotência em relação ao segundo. O plano da generalidade social é, portanto, deixado à representação parlamentar, que começa com a promessa de traduzir as demandas dos movimentos sociais em projetos de reforma política, programas de ação estatais e regulamentos legais. Em última análise, isso é o mesmo que reconhecer a produção da riqueza capitalista não só como uma forma social geral, mas também que os partidos, como “candidatos ao governo”, seriam cada vez mais obrigados a se acomodar, enquanto os movimentos sociais se dissolvem ou se retiram da cena.
Na época do movimento de ascensão capitalista, a autolimitação dos movimentos sociais e o abandono dos rudimentos de auto-organização ainda estavam em sintonia com as reformas sociais ou jurídicas que, até certo ponto, conduziram a melhorias nas condições de vida ou, pelo menos, faziam com que a sua promessa fosse plausível. Hoje, no entanto, quando o reformismo, no antigo sentido do termo, já não tem perspectiva, é necessária uma mudança radical de perspectiva. Os movimentos sociais emancipatórios já não devem enxergar a si mesmos como uma etapa de transição para a construção de partidos ou como organizações de base das suas representações parlamentares, aceitando que se tome em seu nome as decisões socialmente relevantes no plano político. Pelo contrário, devem se enxergar como atores sociais relevantes, lutando com todos os meios para ampliar as estruturas solidárias, a auto-organização social, reduzir gradualmente a condição de inferioridade que leva, por um lado, à delegação de todas as tarefas públicas essenciais ao Estado e, por outro lado, à economificação de quase todas as relações sociais.
15. Precisamente nas condições do processo de crise capitalista, um movimento emancipatório não pode simplesmente abandonar e ignorar o plano da política e do Estado. A orientação de conteúdo das lutas nesse terreno, apesar disso, deve ser completamente diferente do que tem sido até agora. Por um lado, é necessário canalizar o máximo de recursos materiais e financeiros para o setor auto-organizado (edifícios, meios de produção etc.) e melhorar as condições básicas para que este se consolide e se desenvolva; mas, ao mesmo tempo, é essencial defender o padrão existente de direitos sociais contra aqueles que pretendem eliminá-los. Mesmo que o setor de auto-organização social cresça e se fortaleça, o Estado ainda será um ator central por algum tempo, com capacidade para definir e garantir as condições gerais de vida no capitalismo de crise. Portanto, é claro que a luta contra a privatização dos serviços públicos, contra a redução dos benefícios sociais ou das medidas estatais de controle será de extrema importância.
Além disso, os pressupostos dessa luta mudam fundamentalmente quando se combinam com uma nova perspectiva emancipatória de superação da sociedade capitalista. Antes de tudo, porque dessa forma perderia seu caráter puramente defensivo, que o caracterizará enquanto as bandeiras sejam apenas a renovação do venerável Estado social e regulatório, ainda que não se acredite nele. Mesmo que siga como luta defensiva, ela pode ser mais efetiva se colocar de modo consistente a satisfação geral das necessidades concretas-sensíveis no centro, em vez de ser justificada a partir de considerações de política econômica oriundas de um keynesianismo mofado. Ela ganha, assim, em capacidade de propagação, tornando-se mais fácil superar a fragmentação particularista de diferentes lutas de interesses muitas vezes concorrentes e, ao invés disso, une forças. Em segundo lugar, um setor de auto-organização social fortalecido é também uma base prática para disputar os conflitos sociais, pois oferece não apenas uma garantia material, mas também sua própria infraestrutura de apoio solidário, bem como espaços de refugio contra a repressão. Isso significa que as lutas salariais e trabalhistas, que permanecem importantes enquanto a maioria da população continuar a depender, de uma forma ou de outra, da venda da força de trabalho, podem se tornar novamente mais solidárias e exitosas do que as atuais.
16. Esta orientação da emancipação social implica uma relação com o Estado e com a política completamente diferente da que prevaleceu na esquerda tradicional. O leninismo, em particular, acreditava que qualquer forma de auto-organização se subordinava ao objetivo da conquista do poder do Estado para, em seguia, desaparecer ou dissolver-se pela força. Hoje em dia, pelo contrário, o centro das ações políticas deve ser a criação e o desenvolvimento do setor auto-organizado como base da superação do modo de produção e de vida capitalista. É nessa perspectiva que as lutas devem ser conduzidas no plano político-estatal. Para Lenin e o marxismo tradicional, a morte do Estado era apenas um sonho distante. Hoje, no entanto, o conteúdo da emancipação social consiste na retração gradual do Estado na sociedade.
Tal orientação decorre diretamente da situação nossa histórica. No início do século XX, o Estado estava iniciando um desenvolvimento que se afirmaria em muitas partes do mundo como a universalidade abstrata que regulava quase todas as áreas e interesses da vida social. Desse modo, ainda podia parecer decisivo conquistar o poder de Estado por meio de eleições ou de uma revolução e, a partir dele, transformar a sociedade.
Hoje, no entanto, sabemos não só que essa estratégia fortaleceu o domínio capitalista, como muitas vezes teve consequências terríveis. Nas condições da crise fundamental do capitalismo, ademais, o que ocorre diante dos nossos olhos é a perda do caráter de universalidade abstrata do Estado. Em alguns casos, ele se desintegra e deixa o campo livre para o domínio de organizações criminosas e gangues, com as quais, pelo menos uma parte do aparelho estatal forma alianças rentáveis; ou abdica de todas as tarefas que são necessárias para a garantia das condições gerais de vida, preservando apenas as funções repressivas que são usadas para organizar a exclusão social. Os dois processos tendem a se confundir e, no pior dos casos, conduzem a uma dinâmica centrífuga entre forças regressivas concorrentes, que, por sua vez, se transforma em guerra civil latente ou aberta. Portanto, a luta atual pela emancipação social é essencialmente uma luta por alternativas à crescente destruição dos fundamentos materiais da vida e contra a desintegração regressiva da sociedade no processo de crise capitalista. Ser de esquerda hoje significa lutar pela deposição emancipatória do Estado e da produção de riqueza capitalista.
Bibliografia:
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Trenkle, Norbert (2015b): Arbeit in Zeiten des fiktiven Kapitals
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1 O exemplo do governo dos Kirchner na Argentina é instrutivo. Tirou o país da miséria econômica antes de tudo e com razão ao se recusar a pagar os empréstimos acumulados de investidores financeiros privados. Em segundo lugar, isso só foi possível porque uma grande parte do enorme e escassamente povoado país foi transformada em plantações de monocultura de soja e outros produtos, a fim de gerar as receitas cambiais necessárias por meio da exportação. Embora isso tenha ajudado a estimular a economia do país e a melhorar o sistema social, as consequências são catastróficas do ponto de vista ecológico e da saúde da população rural. Além disso, essa estratégia de política econômica está chegando agora ao seu limite, o que é provavelmente uma das razões para a derrota do partido dos Kirchner.