Por que não há um ressurgimento do proletariado no processo de crise capitalista
Norbert Trenkle
Publicado em alemão em 2006 Deutsche Version
Da luta de classes à desclassificação
Enquanto as condições de vida e trabalho continuam a se precarizar, afetando mais e mais segmentos da população, mesmo nos países vitoriosos no mercado mundial, fala-se muito do retorno da sociedade de classe e da luta de classes, o que sugere o (re) nascimento de uma nova conjuntura histórica.[1] Tendo em vista o rápido crescimento da polarização social, esse discurso pode, à primeira vista, parecer plausível. No entanto, como de costume, recorrer às antigas formas de interpretação e explicação não leva ao esclarecimento, mas apenas a mais confusão. Apesar das aparências iniciais, o conceito de antagonismo de classes não pode explicar adequadamente o crescimento extremo das desigualdades sociais, nem as oposições e conflitos entre grupos de interesses que decorrem dela coincidem com o que historicamente foi chamado de luta de classes.
O grande conflito social que marcou todo o período histórico de afirmação da sociedade capitalista foi, como se sabe, o conflito entre capital e trabalho. Nesse conflito se expressa a oposição de interesses entre duas categorias imanentes à sociedade produtora de mercadorias: entre os representantes do capital que comandam e organizam o processo de produção com o objetivo de valorizar o capital e os trabalhadores assalariados que “criam” com seu trabalho a mais-valia necessária para isso. Em si mesmo, é um conflito puramente imanente que surge no interior do sistema comum de referências pressupostas pela moderna produção de mercadorias, um conflito que gira em torno do modo como se produz o valor (condições de trabalho, horas de trabalho, etc.) e da distribuição da massa de valor (salário, lucro, benefícios). Como tal, ele é impossível de ser superado enquanto existir o modo de produção capitalista, que se baseia no fim em si mesmo da valorização do valor. Isso não quer dizer que esse conflito deve se expressar sempre como antagonismo de classe. A oposição objetivada entre capital e trabalho só se tornou oposição de classe porque, em condições históricas muito particulares, se constituiu em sua fundação a generalização de um grande sujeito social: no curso da luta por seus interesses e reconhecimento os trabalhadores assalariados desenvolveram uma identidade e subjetividade coletivas como classe operária. A oposição de classe só se desdobrou numa oposição objetivada entre capital e trabalho porque se constituiu em suas próprias bases, a partir de condições históricas muito específicas, um grande sujeito: no curso das lutas pelos seus interesses e pelo reconhecimento social, os trabalhadores assalariados desenvolveram uma identidade coletiva e uma consciência como classe operária. Foi a constituição desse tipo de sujeito que permitiu aos vendedores da força de trabalho dar à sua luta a força e continuidade necessárias, mesmo através de recuos e derrotas.[2]
É claro que se a luta de classes perdeu sua dinâmica social na segunda metade do século XX não foi porque a sociedade capitalista passou de repente a subsistir sem a produção de mais-valia. A oposição objetivada das categorias funcionais capital e trabalho existe e continuará existindo, mesmo que sua manifestação concreta se altere no curso do desenvolvimento capitalista. A classe operária, no entanto, perde seu caráter de sujeito coletivo na medida em que é admitida a igualdade do trabalhador assalariado como cidadão e sujeito da mercadoria no universo da sociedade burguesa e a venda da força de trabalho se torna um modo generalizado de existência.
Com isso, se perdeu a aura revolucionária da classe operária, responsável por uma parte significativa daquilo que constituía o cimento de sua identidade coletiva. Portanto, mesmo quando a ideia de que a luta de classes tem um caráter antagônico e que vai para além da sociedade capitalista possa, em retrospectiva, ser decifrada como uma ilusão, ela jogou, porém, um importante papel na constituição de classe, dando ao movimento operário a consciência para agir no horizonte de uma missão histórica de longo alcance.
Em última instância, no entanto, a oposição entre capital e trabalho se revelou também subjetivamente um conflito de interesses imanente.[3] Apesar de ocasionais retóricas voltadas para o passado, a orientação das lutas trabalhistas atuais não tem mais como premissa a incompatibilidade entre os interesses dos vendedores da força e trabalho e os do capital. Pelo contrário: a ênfase é sempre colocada em sua compatibilidade, seja em nome da produtividade, da localização ou da demanda interna. Critica-se, no entanto, os “lucros excessivos”, o fechamento desnecessário de plantas (deslocalização) ou, numa versão ideologicamente carregada, os “gafanhotos do capital financeiro”.[4] Os sujeitos da mercadoria são pessoas formatadas que há muito consideram evidentes os lucros obtidos, o capital valorizado, o aumento da produtividade e o crescimento acelerado. Eles sabem que o seu (ainda que precário) bem-estar depende justamente disso e mal podem imaginar qualquer outra sociedade.
Esse desenvolvimento no nível subjetivo não pode ser atribuído somente à imposição generalizada da sociedade da mercadoria, na qual a lógica funcional do capitalismo aparece como uma irrevogável lei natural. Há também alterações muito específicas na relação entre capital e trabalho, mudanças introduzidas já na era fordista e que foram concluídas num ritmo acelerado após o fim do fordismo. Elas não levam de modo algum à superação dessa oposição funcional, mas sim a um estado de coisas em que não podem mais fornecer qualquer base para a constituição de uma renovada subjetividade de classe. Portanto, hoje não ocorre uma reclassificação da sociedade apesar – ou até mesmo por causa – do agravamento da desigualdade social; em vez disso, estamos lidando com um processo geral de “desclassificação” que se expressa em pelo menos quatro tendências.[5]
Em primeiro lugar, desde a fase final do fordismo, o trabalho direto sobre o produto foi reduzido em favor da supervisão e controle, além das funções pré e pós-produção. Isso significou não apenas o derretimento da classe trabalhadora no sentido da força de trabalho industrial produtora de valor, mas o aumento maciço de diversas categorias de trabalhadores assalariados (na circulação, no aparato estatal e nos vários “setores de serviços”, etc.), cuja atribuição de classe não é possível.[6] A integração de uma parte substancial da função de comando do capital diretamente no interior de várias atividades de trabalho deslocou a contradição entre trabalho e capital para os indivíduos (um processo eufemisticamente chamado de “responsabilidade pessoal”, “trabalho criativo”, “hierarquias horizontais” e assim por diante). Essa tendência foi agravada sob a pressão da concorrência de crise e no decurso da precarização geral das relações de trabalho. Isso é mais aparente nos muitos “empreendedores da força de trabalho” (Arbeitskraftunternehmern) e “autônomos”, cuja prosperidade e adversidade dependem de realizar atividades terceirizadas em determinadas empresas por sua conta e risco. Mesmo dentro das próprias empresas há uma tendência crescente em converter empregados em “gerentes” de si mesmos e de suas áreas de trabalho (como o estabelecimento do chamado Profitcenter). E, finalmente, essa tendência gera a ideologia cínica da administração dos desempregados como elogio da “auto-organização” e da “responsabilidade pessoal”, ficando claro que o mercado de trabalho não pode absorver novamente todos aqueles que foram cuspidos para fora.
Em segundo lugar, a mudança constante de empregos e a decorrente alternância entre uma enorme variedade de atividades tem se tornado a norma desde o fim do fordismo – uma norma que contribui substancialmente para a dissolução de toda a identificação dos indivíduos com suas funções. Assim, a relação dos indivíduos com a posição no processo de produção perdeu a ancoragem na sua biografia ou no mundo da vida e empiricamente se aproximou do seu conceito: uma relação externa.[7] No processo de crise, o imperativo categórico da flexibilidade exige obediência implacável. Hoje, não há pecado pior contra a lei do capitalismo do que permanecer fiel a uma única função ou atividade de trabalho. Não se trata apenas de uma pregação dos sacerdotes do mercado, mas de restrições objetivas da concorrência de dumping global. Quem quiser sobreviver deve estar preparado para a mudança permanente de emprego entre o trabalho assalariado e a atividade por conta própria, sem se identificar com elas – embora, é claro, isso não traga qualquer garantia.
Terceiro, as novas hierarquias e divisões atravessam as categorias funcionais do capitalismo ao invés de se sobreporem a elas. Em particular, elas não são determinadas pela oposição entre trabalho assalariado e capital, pois a disparidade no interior da categoria trabalho assalariado é tão grande quanto na sociedade como um todo. Isso se aplica em primeiro lugar ao (reduzido) núcleo de trabalhadores provisoriamente estáveis ou garantidos por acordos coletivos que realizam o mesmo trabalho ao lado de um crescente número de trabalhadores em tempo parcial ou temporários em condições totalmente diferentes. No entanto, as diferenças entre setores, ramos de produção e localizações regionais são ainda maiores, além da discrepância de renda, condições de trabalho e status, conforme a posição na hierarquia das cadeias globais de valorização.
Em quarto e ultimo lugar, desclassificação significa que mais e mais pessoas em todo o mundo estão caindo fora das categorias funcionais, pois não há mais lugar para elas num sistema produtor de mercadorias que pode explorar produtivamente cada vez menos força de trabalho. Elas são forçadas a descobrir não apenas que podem ser substituídas a qualquer momento, mas também que estão se tornando supérfluas em sentido capitalista. “Privilegiado” é quem consegue se agarrar a alguma função ou alterna diferentes funções sem despencar. No entanto, se tais funções se tornam precárias ou obsoletas, ficar na corda bamba é cada vez mais difícil. À medida que as estruturas funcionais se desintegram, também aumenta o número de indivíduos excluídos. A quantidade varia de acordo com a posição do país ou região na concorrência global, mas a ameaça de cair no vazio social paira sobre todos. A tendência é clara: em todo o mundo surgiu um segmento de camadas inferiores (Unterschichten), que nada tem a ver com o velho proletariado e nem constitui objetivamente (por sua função ou posição no processo produtivo) ou subjetivamente (em virtude de sua consciência) um novo grande sujeito social (algo como o “precariado”). A sua relação com o processo de valorização capitalista é antes de tudo negativa: não são mais necessários. Mas isso obriga a formular novamente a questão da possível formação de novos movimentos sociais emancipatórios.
Tentativa de resgatar um sujeito que deixou de existir[8]
O discurso de esquerda ressuscitando a luta de classes não ajuda em quase nada no esclarecimento dessa questão. Embora ele tenha respondido às convulsões e transformações sociais e tenha sofrido algumas transformações argumentativas, no final das contas não foi capaz de romper com os padrões metafísicos básicos da luta de classes do marxismo tradicional. Esse padrão se reproduz constantemente, mesmo quando o chamado (ou, antes, desejado) sujeito tenha se modificado. No último número da Krisis tratei de demonstrar isso, especialmente examinando Hardt, Negri e John Holloway.[9] Mas aqui o olhar se dirige em primeiro lugar a enfoques não tão claramente metafísicos, que argumentam de modo mais sociológico e se concentram na análise dos aspectos objetivos do desenvolvimento social. Mostra-se aqui que justamente os resultados empíricos das investigações negam o paradigma de classe aplicado. Na tentativa de salvar a “análise de classe” por meio de todos os tipos de agregados, os autores que vamos discutir se embaraçam em contradições e aporias que apontam claramente o fracasso da operação e demonstram que apenas o abandono da construção marxista tradicional pode abrir uma perspectiva renovada da ação emancipatória.
Veja-se a teoria gramsciana das classes de Frank Deppe: a “classe trabalhadora”, escreve ele na revista Fantômas, “não desapareceu, o capitalismo ainda é baseado na exploração do trabalho assalariado e das condições naturais, sociais e políticas de produção e apropriação da mais-valia. Entre 1970 e 2000, o número de trabalhadores dependentes do trabalho assalariado quase dobrou e inclui cerca de metade da população mundial. Isso é explicado pelo desenvolvimento na China e outros países asiáticos, onde grande parte da população rural foi ‘liberada’ em consequência da industrialização. Nos países capitalistas desenvolvidos, a proporção da população ocupada no trabalho assalariado alcançou 90% ou mais”.[10] O que imediatamente chama atenção nesse argumento é que ele usa um conceito de classe trabalhadora que oscila pelo menos entre dois significados diferentes. Primeiro, Deppe parece incluir de maneira tradicional na classe trabalhadora apenas os assalariados que produzem mais-valia em sentido estrito, o trabalho excedente retirado para a expansão do capital. No entanto, esse conceito de classe desliza para algo muito mais abrangente, abarcando todos os “trabalhadores dependentes”, ou seja, “metade da população”, e, nas metrópoles capitalistas, quase toda população (ou seja, mais de 90 %).
Essa argumentação oscilante expõe todo o dilema dos teóricos das classes. Se a teoria é interpretada no primeiro sentido (que corresponde à teoria de Marx, referida explicitamente por Deppe), teria que se admitir que é uma minoria global que se torna cada vez menos importante conforme avançam os processos de racionalização nos setores avançados da produção de valor e quanto mais o trabalho se torna supérfluo na produção imediata. No segundo sentido, no entanto, que é a expansão da categoria classe trabalhadora a todos os assalariados, ela se torna um não-conceito, pois já não consegue diferenciar nada. É, portanto, apenas outra palavra para o modo de existência e de vida generalizado na sociedade capitalista, cujas relações são mediadas pelo trabalho e pela produção de mercadorias, o que representa para a imensa maioria das pessoas a coerção de vender sua força de trabalho para poder sobreviver. Esse constrangimento geral é de fato o aspecto fundamental da sociedade capitalista, mas por isso mesmo não serve para determinar a “classe trabalhadora”, pois todos os homens são em princípio sujeitados a isso, independente da posição na hierarquia social, status e condição de vida.
As aporias da teoria das classes também ficaram evidentes nos escritos do historiador Marcel van der Linden, cujo conceito de classe é ainda mais amplo que o de Deppe. Segundo ele, “todo aquele cuja força de trabalho é vendida ou arrendada sob coerção econômica ou não-econômica a outra pessoa, pertence à classe trabalhadora. Não importa se a força de trabalho é oferecida pelos trabalhadores e trabalhadoras ou se eles ou elas são donos dos próprios meios de produção”.[11] Com esta definição, van der Linden quer explicar o fato de que, na sociedade mercantil globalizada, surgiu uma enorme multiplicidade de condições de trabalho diferenciadas e hierarquizadas que não se encaixam (mais) no esquema do trabalho assalariado. Entre estas ele inclui diferentes formas de transição entre escravidão, trabalho assalariado, trabalho por conta própria e subcontratação, mas também a subsistência não-remunerada – e o trabalho reprodutivo das mulheres. Consequentemente, van der Linden não fala mais da classe de “trabalhadores assalariados livres”, escolhendo o termo mais amplo de “trabalhadores subalternos”.[12] No entanto, isso não resolve o problema, embora dê um passo além de Deppe, inflando o conceito de classe para que ele se torne uma metacategoria que em princípio engloba toda a sociedade capitalista.
É lógico que um conceito de classe como esse perde todo o poder de determinação. Ele representa o paradoxo de um conceito de totalidade capitalista no qual precisamente a totalidade desliza por entre as mãos. Por um lado, ele explica de forma indireta o trabalho como princípio geral – ou, mais precisamente: o principio mediador da sociedade burguesa; por outro lado, é isso que fica encoberto pela fixação na categoria social particular da classe. O marxismo tradicional sempre considerou a mediação do contexto social por meio do trabalho como uma constante transistórica de todas as sociedades e não reconheceu que se tratava de categoriais historicamente específicas essenciais à formação capitalista, que é inseparável da generalização da produção mercantil e da valorização do valor como um fim em si mesmo.[13] O que o marxismo considera específico do capitalismo é a maneira pela qual o trabalho excedente é retirado sob a forma da mais-valia e a mediação através do mercado e da propriedade privada dos meios de produção, características que podem ser reunidas no conceito de dominação de classe ou na oposição entre classe capitalista e classe trabalhadora. Essa perspectiva era de fato ideologicamente compatível com a luta de um segmento particular dos proprietários de mercadorias pelo reconhecimento dentro da sociedade burguesa. Mas quem quiser prosseguir nessa perspectiva e ao mesmo tempo levar em conta as enormes diferenciações nas relações de trabalho nas condições das relações de capital globalizadas, cairá necessariamente em contradições insolúveis.
A ideia de que a oposição de classes caracteriza a essência do capitalismo ao invés de representar uma relação derivada é tão profundamente arraigada que obscurece a visão do contexto formal da sociedade, mesmo quando a cada passo ela se revela analiticamente incapaz.[14] As tentativas de fundamentar essa ideia com mais precisão deixam isso claro. Um exemplo é fornecido pela tentativa de van der Linden de delinear seu conceito de classe, o que, evidentemente, mesmo ele vê como insatisfatória, quando pergunta-se “o que efetivamente todos esses subalternos completamente diferentes têm em comum”, apenas para responder “que todos os trabalhadores subalternos vivem em um status de ‘heteronomia institucionalizada’”.[15] O que se quer dizer com isso ele explica com uma referência a Cornelius Castoriadis: “heteronomia institucionalizada expressa uma ‘divisão antagônica na sociedade e com ela a dominação de uma categoria social particular sobre o todo […] A economia capitalista nos aliena na medida em que coincide com a divisão em proletários e capitalistas’”.[16]
É visível que Castoriadis deduz, sem mediação, a “heteronomia institucionalizada” da posição de classe dos trabalhadores. Essa definição, simplista como é, faz algum sentido no contexto da teoria das classes do marxismo tradicional, com sua fixação no bom e velho proletariado. Mas o que resta dela se, como em van der Linden, o conceito de classe é alargado ao infinito e subsume mais ou menos toda a humanidade? Implicitamente, van der Linden diz apenas que a alienação é uma característica universal da sociedade burguesa. Mas ele não pode fornecer uma justificativa teórica plausível para essa afirmação porque ele não se liberta do paradigma marxista tradicional. Mesmo aqui, o esforço para salvar o paradigma pelo alargamento revela suas contradições e limitações, que o processo histórico havia inicialmente obscurecido. A alienação ou fetichismo não pode ser atribuída diretamente à dominação de classe, mas ambos são aspectos essenciais de uma sociedade cegamente mediada pela produção de mercadorias e pelo trabalho, como foi mostrado por Marx. Isso pode ter aparecido como uma especulação ociosa para o movimento operário em suas lutas pelo reconhecimento no interior da sociedade burguesa. Hoje, no entanto, permanecer nesse caminho nada mais é do que uma fixação anacrônica no paradigma das classes, que constantemente desmente a si mesmo.
A “Classe” como Totalidade positiva
Os protagonistas dos mais recentes discursos sobre as classes não levam essa autonegação a sério. De fato, o reconhecimento implícito do esvaziamento do conceito de classe não contribui para uma mudança de perspectiva na crítica do capitalismo, mas os leva antes a fazer todos os tipos de manobras de evasão e de apagamento de seus próprios rastros. Acima de tudo, o deslocamento do foco de investigação para o nível empírico consegue a proeza de eliminar e de manter a fixação na oposição de classe como essência do capitalismo e centro de gravidade (“contradição principal”) de toda crítica radical: manter porque o conceito de classe é elevado a metanível da relação social, ganhando vida como uma abstração desprovida de conteúdo que, precisamente por isso, pode ser imunizada da crítica; e ser eliminado, porque já não desempenha qualquer papel real nas análises empíricas, apresentando apenas uma difusa, pressuposta, instância de invocação – que, como tal, no entanto, molda a perspectiva de investigação e influencia os resultados de um modo particular.
Soa como uma auto-ironia inconsciente quando van der Linden termina o ensaio com a observação: “mas ele [o conceito de classe] continua a alertar contra cada grande teoria empiricamente vazia”.[17] Isso é justamente o que caracteriza sua abordagem e a de todos os protagonistas mais recentes do discurso de classe: sua teoria permanece empiricamente vazia e seu empirismo fica teoricamente exposto; sustentam o mito da luta de classes, embora não se possa mais encontrar na realidade social nenhum sujeito ou movimento ao qual possam se fixar sem maiores contorções. Quando Deppe e van der Linden descrevem as hierarquias e desigualdades sociais criadas e agravadas no contexto da crise do capitalismo global, isso é empiricamente verdadeiro em muitos aspectos esclarecedores, mas sob a rubrica “fragmentação da classe trabalhadora” torna-se uma linguagem incorreta. É assumida aqui uma unidade fundamental prévia a todas essas “fragmentações”, mesmo quando não é possível explicá-la. O fato de que todos os grupos e todas as pessoas a que se refere a análise estão de alguma forma obrigados a vender sua força de trabalho não constitui nenhuma base comum além do fato de que todos participam da concorrência no mercado de trabalho. Deppe e van der Linden, no entanto, pressupõem de modo implícito um sujeito coletivo, que posteriormente se “fragmentou”; ou seja, segundo eles, existe algo como uma unidade substancial de classe, essencialmente anticapitalista, que mesmo não aparecendo no nível empírico, pode e deve ser reconstituída.[18]
Deppe inclusive expande esse constructo essencialista quando fala, com referência a Gramsci, de um “novo bloco de subalternos” que, ao lado da “classe trabalhadora”, supostamente também abrangeria todos os movimentos sociais dos últimos anos (“protestos de camponeses ‘sem terra’ no Brasil, o levante em Chiapas, demonstrações globais de massa contra a guerra e a ameaça de guerra”). Este bloco, ele admite, “ainda não se articula como bloco, porque falta um programa alternativo e a capacidade de agir contra o neoliberalismo, por meio da qual as suas frações poderiam se juntar”.[19] O “bloco” já existe “em si”, mas ainda não está “politicamente articulado”. Não por acaso, esse reaparecimento lembra a construção forçada da “consciência de classe atribuída”, em uma versão francamente reduzida – em contraste com Lukács – não porque Deppe dispense uma fundamentação metafísica, mas porque ela é carregada de forma não-tematizada.[20] É só porque a atribuição fica implícita e portanto pressupõe algo como uma congruência objetiva fundamental (de interesses) de todas as partes, que ele pode reduzir o problema à questão superficial do “programa alternativo” com o qual se imagina que as diferentes “facções” do bloco se juntariam.
A maneira quase acidental com que a fragmentação produzida pelo capitalismo é rebaixada como problema secundário ou derivado em relação à “classe” pressuposta indica uma aporia maior, resultante da adesão forçada ao paradigma do marxismo tradicional. Para este, a classe trabalhadora representa, pela sua essência, o ponto de vista da universalidade social – que foi pensado como idêntico ao ponto de vista do trabalho. Assim, os trabalhadores deveriam herdar o legado da burguesia, que reclamou para si esse ponto de vista no tempo da revolução burguesa, antes de traí-lo em nome do interesse egoísta no lucro privado. O objetivo revolucionário da classe trabalhadora, portanto, consistia em criar uma totalidade social – uma totalidade mediada de forma “consciente” pelo trabalho. Como Moishe Postone mostrou em detalhes, essa ideia levou, em dois sentidos, a uma projeção ideológica distorcida das relações capitalistas. Por um lado, é uma contradição em si querer estabelecer como “consciente” a mediação através do trabalho (e, portanto, da mercadoria), pois ela é, em sua essência, autorreferente e autonomizada – ou seja, tem suas próprias leis reificadas, que as pessoas são forçadas a seguir como uma lei natural. Por outro lado, a constituição do contexto social como totalidade é igualmente uma característica histórica muito específica da sociedade capitalista, que em contraste com as demais sociedades, é mediada por um princípio único, e, por isso, naturalmente, não pode ser um ponto de fuga para a emancipação: “a formação social capitalista, segundo Marx, é única porque é constituída por uma “substância” social qualitativamente homogênea: por isso ela existe como uma totalidade social. Outras formações sociais não são tão totalizadas: suas relações sociais fundamentais não são qualitativamente homogêneas. Não podem ser apreendidas pelo conceito de “substância”, não podem ser desdobradas de um único princípio estruturador e não desenvolvem uma lógica histórica imanente e necessária”.[21] A partir dessa ideia se desprende que “a negação histórica do capitalismo não implicaria a realização, mas a abolição da totalidade”.[22]
Ainda que o discurso mais recente de classe alegue criticar as falsas uniformizações do marxismo tradicional, ele se contradiz por causa da fixação na classe e na sua dilatação em metacategoria, que tende a envolver toda a sociedade. O apelo à totalidade – e a afirmação inconsciente da forma de mediação capitalista contida nela – do marxismo tradicional é, assim, suplantado e ao mesmo tempo reduzido ao absurdo. Se “a classe” (ou “bloco subalterno”, ou o que for) é imputada a quase todas as pessoas, o horizonte da universalidade social que o marxismo tradicional descreve já estaria potencialmente realizado. Mas, com isso, perde-se a perspectiva teoricamente fundamentada da crítica. A totalidade constituída em termos capitalistas não poderia ser criticada, tendo apenas que tomar consciência de si mesma. Somente alguns dizem isso explicitamente, como Hardt e Negri, que já enxergam o comunismo em todos os lugares, à espreita, sob a fina camada do capitalismo, o que não é só um equívoco isolado e sim a consequência lógica da abordagem teórica que eles compartilham no fundamental com o conjunto do discurso de classe.
Esse discurso certamente acredita que vai além do marxismo tradicional, porque se desprendeu da idéia de um sujeito unificado, evocando, ao contrário, a heterogeneidade de uma suposta classe trabalhadora. Mas isso reflete basicamente o conflito interno da sociedade da mercadoria, por definição uma socialização associal, que desintegrada em inúmeras particularidades. Se essa totalidade fragmentada é imediatamente positivada e identificada com a “classe trabalhadora”, faltam, em última análise, os critérios para uma tematização adequada da crescente libertação de potenciais destrutivos no curso do processo de decadência da subjetividade burguesa. Isso vale para a violência racista e sexista tanto quando para o delírio antissemita e os fundamentalismos étnicos e religiosos que estão se tornando correntes. Do ponto de vista de classe, não se pode decodificá-los como formas inerentes à subjetividade da sociedade mercantil, independente dos momentos da dinâmica de crise capitalista, porque senão a fixação no “sujeito-classe fragmentado” seria posta em questão. É basicamente por essa razão que eles são vistos como fenômenos externos, como um fator perturbador capaz de dividir o contexto de classe, mas não uma preocupação central. Portanto, continua a ser uma questão de preferência pessoal decidir se movimentos regressivos, sejam eles correntes étnico-nacionalistas (como na Espanha) ou organizações fundamentalistas como o Hamas, podem ou não ser incluídos no grande consenso das lutas anticapitalistas. A divisão entre as partes refletidas do novo discurso de classe e as formas regressivas de decadência do marxismo tradicional é muito tênue porque, no essencial, ambas possuem a mesma fundamentação teórica.
No more Making of the working class
Em contraste com as tentativas de salvar a classe trabalhadora pela ampliação excessiva das suas determinações objetivas estão aqueles cujos argumentos procedem principalmente do lado subjetivo. De acordo com essas abordagens, a classe não é definida pela posição no processo de produção e valorização, mas está sempre se constituindo e está sujeita a mudanças permanentes que são um resultado essencial da dinâmica das lutas de classes. Essa perspectiva tem a vantagem inicial de chamar atenção para os momentos ativos do conflito social, seu caráter processual e as possibilidades de desenvolvimento subjetivo que estão contidos dentro dele, porque a categoria “classe” se mantém aberta e não codificada em uma definição. Mas tal abertura é enganosa. Ela está limitada por um axioma que sempre se antepõe a qualquer análise específica e limita sua perspectiva. A luta de classes é pressuposta como um princípio transhistórico válido, como algo evidente, a partir do qual a classe, por seu turno, pode ser derivada. “Sempre já presente em todas as relações sociais, a luta de classes precede as classes históricas”, diz o editorial da revista Fantômas, citado várias vezes neste artigo.[23] O argumento torna-se circular. Tanto o conceito de classe quanto a luta de classes são definidos de modo arbitrário. Todos os conflitos podem ser, sem diferenciação, enobrecidos como luta de classes e seus atores como sujeitos de classe, sem ficar claro os critérios de distinção entre os diferentes tipos de lutas e subjetividades.
Desse modo, o conceito subjetivista de classe alcança o mesmo resultado que o seu homólogo objetivista. Como existem lutas de todo tipo em cada momento nas várias partes do mundo, fala-se de uma dinâmica permanente de “luta de classes” e, portanto, de “formação de classe”. O conceito aplicado é tão amplo que de alguma forma sempre pode ser supostamente confirmado. Mas essa “verificação empírica” está desde sempre determinada pelo axioma que a precede. O resultado é conhecido de antemão: o conjunto social não é outra coisa senão uma totalidade de lutas de classes. Por isso, não é motivo de espanto quando esses ex-adversários teóricos se reconciliam cada vez mais e passam a coexistir pacificamente (como é o caso dessa publicação de Fantômas). Assim, onde o conceito perde toda precisão e a “classe” pode ser qualquer coisa, as antigas diferenças não mais desempenham um papel decisivo.
O problema consiste em que o conceito de luta de classes, uma vez separado do contexto histórico específico do movimento operário, único contexto em que ele fazia algum sentido, pode muito facilmente entrar em curto-circuito com um conceito generalizante de luta, o que corresponde mais à “guerra de todos contra todos” (Hobbes) do que a uma luta contra as condições e imposições do capitalismo. Novamente, isso é evidente em Hardt e Negri, para quem até mesmo a luta diária pela sobrevivência é transfigurada numa forma de expressão da luta de classes e não há mais qualquer critério para diferenciá-la dos surtos de violência regressiva ou de movimentos fundamentalistas. A “luta de classes” se converte assim em abstração e, finalmente, numa fórmula vazia afirmativa que contém tanto o estado interno de guerra permanente da sociedade capitalista e sua desintegração em crise quanto os esforços que se opõem a ele.
É verdade que muitos partidários do ponto de vista subjetivista distinguem vários tipos de luta em suas análises empíricas; no entanto, esses esforços pairam no ar, sem coincidir com sua base teórica. A concepção de luta de classes descontextualizada não tem um conjunto de ferramentas conceituais útil para distinguir entre a mera ação da subjetividade burguesa em suas facetas mais repulsivas (individuais e coletivas) e a tentativa de superá-las (p.e. em movimentos sociais de base). Para salvar o conceito de luta de classes, são necessários todos os tipos de argumentos adicionais (a exemplo do recurso à teoria do discurso), mostrando apenas o quão pouco ele pode contribuir para esclarecer as dinâmicas sociais desencadeadas pela crise global do sistema produtor de mercadorias.
Um dos principais legitimadores das teorias subjetivistas de classe é o historiador social inglês E.P. Thompson, que sempre enfatizou o momento ativo na origem da classe operária. No prefácio de seu estudo histórico mais importante, que leva o título programático de The Making of the English Working Class, ele escreve: “Formação, porque é o estudo de um processo ativo, que deve tanto à ação humana quanto às condições históricas. A classe operária não se levantou como o sol numa hora determinada. Ela estava envolvida em sua própria criação”.[24] No entanto, a análise de Thompson se refere – como ele mesmo ressalta – a uma situação histórica muito específica: o processo de afirmação do capitalismo inglês durante o último terço do século XVIII e o primeiro terço do século XIX. Mas essa situação é, obviamente, diferente da atual de um modo muito fundamental. Ela foi marcada pela repressão e destruição das condições pré e protocapitalistas de vida e trabalho relativamente heterogêneas sob uma pressão cada vez mais forte da padronização das condições capitalistas de produção e de vida; o que significa, por sua vez, a criação em massa de “trabalhadores assalariados duplamente livres” forçados a vender sua força de trabalho para sobreviver. A investigação de Thompson se concentrou nas revoltas e lutas de resistência provocadas por esse processo, mostrando como no seu curso (também pela experiência da derrota) algo como uma consciência de classe começou a tomar forma.
Se isso era importante para enfatizar o alcance dos processos subjetivos ignorados pelo marxismo ortodoxo, também é importante que os conhecimentos assim adquiridos não sejam retirados do contexto histórico e que não se tornem, num mau sentido, abstratos. A formação da consciência de classe não é um resultado automático da imposição do processo de valorização do capital, mas essa unificação subjetiva na classe operária corresponde a um processo objetivo de subordinação das relações sociais ao princípio unificador do trabalho abstrato e da produção de mercadorias. Os momentos objetivos e subjetivos se ligam numa relação dialética. O próprio Thompson ressalta: “a experiência de classe é em grande parte determinada pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias, formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe”.[25]
Se aplicarmos essa afirmação à situação atual, o que chama atenção é que o marco objetivo, dentro do qual acontecem as experiências e conflitos sociais, é fundamentalmente diferente do contexto histórico analisando por Thompson. Não estamos hoje numa situação em que o modo de produção e de vida capitalista começa a se impor violentamente, destruindo um tecido heterogêneo de formas de vida tradicionais e regidas por normas totalmente diferentes (o que Thompson chama de “economia moral”). Ao contrário: o sistema produtor de mercadorias se generalizou mundialmente e submeteu todas as relações sociais aos seus princípios universalistas; no entanto, entrou em um processo de crise global – uma crise que não é somente econômica, mas também dos fundamentos da sociedade baseada na valorização do capital e que coloca em marcha uma enorme dinâmica de desintegração social. Essa tendência é oposta aos processos que, no século XIX, desembocaram na formação da sociedade capitalista. A crescente precarização das condições de trabalho e da vida não indica a existência de um exército industrial de reserva que mais adiante será integrado na produção em massa em função da acumulação do capital. Ao contrário, nela se reflete o fato de que cada vez mais pessoas se tornam supérfluas para a produção de valor e, portanto, são excluídas em sentido econômico, social e político. Desse modo, não estamos diante da reconstituição da classe trabalhadora global e sim da crescente decomposição de uma sociedade baseada no trabalho abstrato. Não está se impondo uma forma social universalista frente a uma pluralidade de modos de vida pré-capitalistas; é a forma universalista que se desintegra por meio de uma multiplicidade de conflitos e enfrentamentos muitas vezes violentos e faz com que os indivíduos atomizados percam a base sólida sob seus pés. Essa tendência é universal somente no sentido de que equivale a uma desclassificação geral, mas esse é um processo meramente negativo que não gera uma nova síntese social de lutas solidárias.
Os movimentos sociais da primeira metade do século XIX na Inglaterra analisados por Thompson surgiram a partir da experiência do confronto com a marginalização das condições de vida não capitalistas ou protocapitalistas, incompatíveis com o modo de produção do capitalismo industrial. Frente a essa experiência coletiva e ante a imposição do trabalho nas fábricas, desenvolveram-se formas de solidariedade prática e padrões culturais comuns e, ao mesmo tempo, se constituiu uma identidade coletiva de classe trabalhadora. No entanto, um processo como esse já não pode acontecer, pois falta o centro de gravitação para focalizar e unificar as lutas heterogêneas. Mas essa descentralização do campo social não só abriu o caminho para uma pluralidade de movimentos emancipatórios para além do tema do trabalho, como movimentos feministas e ecológicos, mas fomentou também a massiva proliferação de correntes sectárias, fundamentalistas e reacionárias de todos os tipos. São justamente essas correntes que, a nível global, ganharam enorme atratividade, pois além do apoio material oferecido à sua clientela, há toda uma sustentação subjetiva para os indivíduos expostos à concorrência total ou marginalizados como supérfluos para o capitalismo.[26] Mas esse apoio não é emancipatório. Ele reproduz e reforça os momentos mais regressivos e repressivos da subjetividade moderna ao invés de superá-los. Aqui não surge uma nova “classe trabalhadora”, mas grupos sociais que fornecem um marco dentro do qual os indivíduos formatados segundo as condições da sociedade capitalista podem seguir funcionando precariamente, sem qualquer tipo de autoreflexão crítica.[27]
A fragmentação causada pela crise capitalista não libera apenas movimentos regressivos da forma-sujeito, mas ativa uma multiplicidade de impulsos e aspirações emancipatórios. Como, no entanto, estes perderam o centro de gravidade historicamente constituído pela luta de classes, estão continuamente expostos ao perigo de reproduzir por sua conta as tendências centrífugas do processo de crise capitalista. Assim se dá o desafio de reformular uma perspectiva de luta anticapitalista global, que seja capaz de vincular todas as diferentes lutas de caráter emancipatório sem falsas unificações ou hierarquias, para além de todas as fronteiras. Um ponto comum tem que ser, sem dúvida, o enfrentamento das tendências de desagregação social causadas pela crise e das correntes e movimentos regressivos gerados por esse processo. Mas essa vinculação não se deduz de determinações objetivas ou subjetivas pressupostas (como o ponto de vista de classe ou a luta de classes). Só pode emergir da cooperação consciente de movimentos sociais que aspiram a abolição da dominação em todas as suas manifestações – e não só como uma meta abstrata e distante, mas também dentro de suas estruturas e relações internas.
O que pode contribuir para a teoria crítica e a análise da crise global é nomear possíveis pontos de partida para realizar essas vinculações. Podemos aprender com as investigações de Thompson a importância da experiência prática/concreta para a constituição dos movimentos sociais. Por isso são especialmente importantes aqueles processos nos quais tem lugar a resistência às imposições do capitalismo, eliminando-se as tentativas hierárquicas, populistas e autoritárias de integração, assim como as lutas reivindicativas que tem como objetivo gerar estruturas auto-organizadas. Tais movimentos (como os zapatistas, a corrente autônoma dos piqueteros e outros movimentos de base) são sem dúvida minoritários a nível mundial e estão constantemente ameaçados pela marginalização e cooptação.[28] No entanto, ainda que sejam contraditórios em muitos aspectos, neles se encontram os elementos embrionários que apontam a perspectiva da libertação em relação à totalidade capitalista. O futuro não pertence à luta de classes, mas à luta emancipatória sem classes.
Tradução de Marcos Barreira
[1]
É de se salientar que o texto se refere ao discurso marxista na Alemanha e na Europa, onde o conceito de luta de classes havia perdido a importância por quase vinte anos, ressurgindo parcialmente na primeira década do novo século. O texto se contrapõe a essa tendência e apela a uma redefinição da crítica anticapitalista para além do enfoque tradicional.
[2]
Sobre a constituição e o papel dos sujeitos coletivos na sociedade burguesa ver Ernst Lohoff em Krisis 29 (2005), “Die Verzauberung der Welt” [O encantamento do mundo].
[3]
Sem dúvida, esse processo de emergência não era sem contradição, não em último lugar porque a convicção dos participantes de que a luta de classes era um conflito com potencial para explodir o próprio sistema persistiu por muito tempo, e situações históricas particulares até investiram a luta de classes de uma dinâmica que poderia ter sido capaz de romper o desenvolvimento objetivado. Nesse sentido, os momentos subjetivos não são redutíveis ou simplesmente idênticos ao desenvolvimento objetivo.
[4]
É trágico ver como o processo de crise e a concorrência cada vez maior por preços baixos no mercado mundial reforçam essas atitudes de forma extrema e como nas lutas em sua maioria sem esperança contra o fechamento – como no caso da AEG em Nuremberg – o argumento principal é que o cálculo econômico dos gestores está errado.
[5]
Tomo o termo “desclassificação” de Franz Schandl, mas minha interpretação vai além. Schandl escreveu: “regressão social não pode mais ser descrita primeiramente em referência à posição social das classes. O que está em jogo não é a determinação da identidade de classe, mas a desclassificação, o que significa que as pessoas estão caindo fora das suas estruturas sociais, p.e. perdendo o emprego, mas continuando a ser mônadas de trabalho, não ter dinheiro mas ter que ser um sujeito monetário. A desclassificação afeta não só o proletariado, mas abarca tudo. Mesmo com a agudização das contradições sociais, as contradições de classe estão sendo desativadas”. “Desinteresse und Deklassierung” [Desinteresse e Desclassificação], in: Streifzüge Nr. 3/2002.
[6]
Grande parte da discussão da sociologia industrial dos anos 60 e 70 girava em torno da questão “ainda existe uma classe operária?”. Na esquerda, foi em primeira instância Andre Gorz, em seu livro Adeus ao proletariado, quem abriu uma brecha no discurso moldado pelo mito da luta de classes.
[7]
“O indivíduo capitalista não é mais um indivíduo de classe, o ‘conjunto das relações sociais’ (Marx) forma-se nele e por ele de um modo mais complicado e diversificado. A sua atitude não pode ser atribuída ao modo de produção, mesmo que se estenda a investigação à circulação e ao consumo, incluindo a reprodução. O conceito de classe derrete entre os dedos. É um conceito que concebe cada vez menos. O comportamento comunicativo das pessoas não pode ser reduzido a uma situação de classe e sua análise não pode sequer ser focada nesta situação”. Franz Schandl. “Kommunismus oder Klassenkampf” [Comunismo ou luta de classes], Streifzüge Nr. 3/2002.
[8]
Literalmente, um “Sujeito morto” (toten Subjekt). NdT
[9]
“As sutilezas metafísicas da luta de classes”. Krisis 29 (2005).
[10]
Frank Deppe, “Der postmoderne Fürst. Arbeiterklasse und Arbeiterbewegung im 21. Jahrhundert,” Fantômas 4 (Hamburg: 2003) 11.
[11]
Marcel van der Linden, “Das vielköpfige Ungeheuer. Zum Begriff der WeltarbeiterInnenklasse,” Fantômas 4 (Hamburg: 2003) 34.
[12]
Van der Linden, “Ungeheuer” 31-33.
[13]
Sobre isso ver Moishe Postone, Tempo, trabalho e dominação social particularmente 148-57.[na edição original]
[14]
Sobre a crítica dessa ideia em geral ver Tempo… 314 e seguintes.
[15]
“Ungeheuer” 33.
[16]
ibid.
[17]
“Ungeheuer” 34.
[18]
Na versão alemã o final do parágrafo aparece resumido assim: “Desse modo, a criação de uma ponte entre oposição de interesses e posições na concorrência, tendo em vista uma formação anticapitalista, aparece colocada como um princípio”. [NdT]
[19]
Deppe, “Fürst” 11.
[20]
Ver “As sutilezas metafísicas da luta de classes” em Krisis 29 (2005).
[21]
Postone, p. 79.
[22]
Idem, p. 156-7.
[23]
Redaktion Fantômas, “Klasse Arbeit,” Fantômas 4 (Hamburg: 2003
[24]
E. P. Thompson, The Making of the English Working Class (London: Pantheon, 1963).
[25]
Thompson, English Working Class 9-10.
[26]
Para uma discussão mais ampla sobre isso, ver Lohoff “Die Verzauberung der Welt.”
[27]
É, portanto, um absurdo quando Karl Heinz Roth, em referência explícita a Thompson, reconhece os precursores de uma nova subjetividade da classe proletária no ressurgimento desenfreado de movimentos neoreligiosos. Nesse contexto, ele descreve as comunidades fundamentalistas pentecostais como “as maiores comunidades de auto-organização das camadas baixas no mundo, que na América latina e na África subsaariana com tem 100 milhões de seguidores” (65) e, em seguida, continua: “como sabemos a partir da The Making of the English Working Class de E. P. Thompson, as seitas milenaristas foram um importante momento constitutivo no processo em que a classe operária inglesa e seus movimentos radicais se encontraram. Nos portanto não precisamos necessariamente nos desanimar com as mensagens ambíguas que encontram seu caminho até nós vindas dos segmentos mais baixos das subclasses globais (69). Ver Karl Heinz Roth, “Der Zustand der Welt. Gegenperspektiven” (Hamburg: Verlag, 2005).
[28]
Ver Marco Fernandes Krisis 30 (2006), “Piqueteros oder Wenn Arbeitslosigkeit adelt” [Piqueteros ou: Se o desemprego enobrece].