Mosaico de uma desintegração feito com pedras desordenadas
Franz Schandl
O que faz uma sociedade quando se choca com os limites de seu desenvolvimento? Nossa tese é a seguinte: longe de atingir a satisfação plena, ela uma vez mais colocará em ação todas as suas forças destrutivas. Toda decadência libera uma energia destrutiva que realiza qualquer coisa menos converter-se automaticamente em emancipação.
Arruinado (Marod), nesse caso, significa simplesmente que algo ainda pode ter capacidade de existir, mas nenhuma capacidade de desenvolver-se, que algo tomado como um todo não consegue mais pensar e agir, sem no entanto ter se esgotado. Onde há muita coisa arruinada (marod), surgem em cena, nos mais diferentes ambientes, saqueadores (Marodeure). Eles estão interessados em se apropriar, com o mínimo esforço, dos bens ainda subsistentes (valores, votos, serviços etc.). Observa-se um alto grau de brutalidade na realização de seus objetivos. A marca distintiva do saquear é que essa atividade, antes de tudo, não quer destruir as forças destrutivas da sociedade, e nem se limita a adaptar-se a essas forças, mas faz uso delas contrariando as regras. Essa atividade as aceita, as organiza e as utiliza. Seu ideal pode ser tipificado como uma conduta absolutamente construtiva em relação à destrutividade.
Uma aliança de saqueadores com o objetivo de pilhar chama-se bando (gangue, quadrilha). O bando é a inversão prática da emancipação. Um bando pode corresponder assim a um agrupamento pós-político, a um bando juvenil, ao crime organizado, mas também a uma imprensa marrom futriqueira. Suas formas de manifestação são as mais variadas; o que o caracteriza é a manifestação imediata de sua natureza de clique informal, a qual o bando, ao contrário do Estado, não mais pretende esconder, mas exibir abertamente. Reunir um bando é algo que se esgota na satisfação imediata de seu objetivo, ainda que ele tenha de reunir-se repetidas vezes. O bando não é seletivo em relação aos meios dos quais lança mão. Sua meta não se diferencia da etapa. Ele se dá conta das conseqüências, mas não das perspectivas. O bando não deseja poder, ele faz pilhagens.
Os saqueadores são os últimos e mais recentes aproveitadores da aceleração do ímpeto capitalista, que não consegue mais, porém, funcionar convencionalmente. Auto-impelidos, eles são o mais puro modelo da flexibilização de direitos e da desregulamentação. Se o mais enxuto dos Estados é uma quadrilha de criminosos, como defende Gerhard Scheit, o respectivo “criminoso” é então o indivíduo completamente atomizado e flexibilizado que mesmo em sua impotência caminha rumo ao bando a fim de escapar de seu abandono pelo Estado – seja este o Estado Nacional, o Estado de Direito, o Estado de Bem-Estar Social.
Mas a quadrilha, embora expressão da desintegração nacional, não é per se nacionalista, ainda que os motivos para integrar suas fileiras sejam pintados com essas cores. Junto ao bando e junto ao Estado, trata-se de pertencer a uma forma seletiva de aliança. Uma carga nacional-popular para o bando é algo possível, mas não necessário. A intensidade com que o bando afirma-se em termos racistas ou nacionalistas não é dedutível de sua forma, mas resulta de suas relações específicas com a totalidade. Em certas situações, podem acontecer de fato alianças entre o Estado e o bando, e bandos podem ser incorporados à comunidade como componente essencial dela. Protótipos disso seriam figuras como Arkan e seu grupo paramilitar Tigres na Sérvia ou o Capitão Dragan na Croácia. Estes bandos comportam-se então como pontas-de-lança da autodeterminação nacional, sistematicamente até o horror. Primordialmente, o pano de fundo formado por crimes comuns transforma seus líderes em heróis nacionais.
Crime clássico
Certa vez Karl Marx descreveu as relações palpáveis entre a socialização burguesa e a criminalidade assim:
“Um filósofo produz idéias, um poeta, versos, um pastor, sermões, um professor, compêndios. Um criminoso produz crimes. Se olharmos mais de perto para a relação que existe entre este último ramo da produção e a sociedade como um todo, então corrigiremos muitos preconceitos. O criminoso não só produz crimes, mas também o direito criminal, e com este o professor que dá os cursos sobre direito criminal, e além disso o indefectível compêndio no qual este mesmo professor lança suas lições como ‘mercadoria’ no mercado geral. Assim, isto leva a um aumento da riqueza nacional.
O criminoso produz além do mais toda a polícia e a justiça criminal, juízes, carrascos, jurados etc.; e as diversas profissões que constituem as tantas categorias da divisão social do trabalho, que desenvolvem as diversas faculdades do espírito humano, criam novas necessidades e novos modos de satisfazê-las. Mesmo a tortura deu ocasião a invenções mecânicas as mais engenhosas e empregou uma massa de honestos artesãos na produção desses instrumentos.
O criminoso produz uma impressão, em parte moral, em parte trágica, e assim presta um “serviço” ao despertar os sentimentos morais e estéticos do público. Ele produz não só compêndios de direito criminal, não só códigos penais, mas também arte, literatura, romances e até mesmo tragédias, como Die Schuld [A Culpa] de Müllner e Die Räuber [Os Salteadores] de Schiller, mas até mesmo o Oedipus [de Sófocles] e Richard the Third [de Shakespeare].
O criminoso quebra a monotonia e a segurança cotidiana da vida burguesa. Assim, preserva-a da estagnação e provoca aquela tensão e mobilidade inquietantes, sem o que até mesmo o aguilhão da concorrência ficaria embotado. Estimula assim as forças produtivas. Enquanto o crime retira uma parte da população supérflua do mercado de trabalho e assim reduz a concorrência entre os trabalhadores, até um certo ponto prevenindo que os salários caiam abaixo do mínimo, absorve também uma outra parte dessa população na luta contra o crime. O criminoso surge como uma daquelas ‘compensações’ naturais que restabelece um nível adequado e abre toda uma perspectiva de ocupações ‘úteis’.
Até em detalhes podem ser comprovados os efeitos do criminoso na produtividade. Teriam as fechaduras atingido sua excelente qualidade atual se não houvesse ladrões? A fabricação de notas de banco teria chegado à perfeição atual se não houvesse falsificadores? O microscópio teria penetrado na esfera comercial ordinária sem a fraude no comércio? Não deve a química prática à falsificação de mercadorias e ao empenho de descobri-la tanto quanto ao zelo honesto de produzir? O crime, com os meios sempre novos de ataque à propriedade, gera meios sempre novos de defesa, atuando assim, tal como as greves, de modo bastante produtivo na invenção de máquinas.
E se deixarmos a esfera do crime privado: sem crimes nacionais, teria surgido o mercado mundial? Sim, até mesmo as nações?”[i]
New Criminal
Para Marx, o crime era um suplemento civilizatório, um propulsor da modernização, não um empecilho. Atualmente, questiona-se se o crime não ingressou em uma nova dimensão, se, ao invés de uma mera função, não se tornou uma superfunção, ao invés de um complemento, não se tornou, com uma frequência cada vez maior, um substituto das formas de funcionamento da sociedade.
Nossa tese agora é que a criminalidade adquire novas qualidades. Até agora, a criminalidade sempre equilibrou um déficit estrutural, sem se tornar ela própria estruturalmente determinante: ela é a anomalia que foge à norma, mas que ainda assim pertence à norma. Em geral, a criminalidade manteve-se à margem da existência social, mesmo quando afetou mais do que se quis acreditar. O aspecto que Marx ainda podia chamar de um espinho da sociedade acabou agora por expandir-se, tornou-se mais decisivo, atingiu novas dimensões. A criminalidade, assim, cresceu para além de sua moldura social. O que leva à pergunta: para onde a criminalidade escapa quando, em verdade, não consegue escapar para lugar nenhum?
Ainda não há análises embasadas a respeito desse desenvolvimento. Uma teoria sócio-crítica da desintegração da sociedade burguesa existe apenas em seus primeiros esboços. A maior parte das publicações, que não ultrapassa o puro empiricismo, denuncia exclusivamente os perigos para a democracia, a qual, por sua vez, considera ilimitada (ver p.ex. Jean Ziegler[ii]), ou, adotando a postura contrária, celebra a necessidade da máfia para a expansão da economia. Edward Luttwak, que trabalha no Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais em Nova York, escreve, de forma admiravelmente ingênua, em um artigo intitulado reveladoramente “Hat die russische Mafia den Nobelpreis für Ökonomie verdient?”[iii]: “A ameaça política é de fato real; no entanto, do ponto de vista econômico, esse truísmo revela-se um grande erro. Primeiramente, a tese ignora a evolução natural do animal capitalista. As vacas gordas, que povoam o sistema econômico desenvolvido – empresas estáveis e altamente capitalizadas que oferecem postos de trabalho seguros, pagam toda a sua miríade de impostos, investem em novos negócios, desenvolvem novas tecnologias e contribuem para entidades de assistência social e para empreendimentos culturais –, essas vacas não nasceram assim. Elas eram lobos magros e famintos quando inicialmente acumularam capital, e na verdade assim o fizeram por meio da conquista de oportunidades rentáveis de mercado, não raramente eliminando os concorrentes com instrumentos que as atuais comissões de combate aos monopólios não mais tolerariam; e por meio do corte de custos dos modos os mais variados, incluindo inúmeros ardis de sonegação fiscal, por meio dos quais se sobrevivia a todo preço”.[iv] “Caso as forças policiais de então tivessem sido eficazes o suficiente para reunir em um local e prender as hienas, então a recuperação econômica da Alemanha Ocidental, da Itália e do Japão teria ocorrido de forma muito mais lenta, e muitas das empresas bem-sucedidas dos anos 50 e 60 nunca haveriam tido condições de se estabelecerem. Tudo isso vale também para a economia russa”[v]
Luttwak vê a criminalidade unicamente do ponto de vista da teoria da modernização, ou seja, como desenvolvimento recuperador retardatário; conseqüentemente não como um aspecto da desintegração, e sim como um aspecto de avanço. Opinião semelhante é defendida por Viktor Timtschenko, que escreveu um livro interessante sobre a máfia russa e suas maquinações: “O que é bom objetivamente pode ser ruim para o indivíduo. Objetivamente, é bom para o futuro da Rússia que os bens concentrem-se rapidamente e em grande quantidade nas mãos de poucos”[vi]. O que significa dizer também: “A privatização, um processo marcadamente precipitado, representa francamente uma mina de ouro para o crime organizado e significa uma renovada criminalização do setor privado de negócios na Rússia, já em grande medida criminoso”[vii]
Showdown social
O Estado não é um abrigo quentinho para os sem-teto, argumentam os que elevaram o frio social ao status de programa. Os que não conseguem vestir-se com roupas quentes vão passar frio. Quando as pessoas encasquetam como intransigente palavra de ordem a frase: “Cada um forja a sua sorte”, quais planos alguém conseguiria forjar que não fossem propícios ao mercado? A psique burguesa, expurgada de todas as ilusões social-estatistas ou socialistas, só consegue reconhecer sua lei na arbitrariedade. O que também significa: cada um é sua melhor arma! Cada um é seu próprio juiz! Cada um pode ser chefe! Pensamento positivo! A liberdade burguesa, em seu estágio final, não passa da lei do mais forte a favorecer os mais fortes. Essa liberdade é o despotismo coercitivo do mercado.
A disposição para agir de forma “associal” aumenta com a decadência social, que, de resto, não deve ser vista como posicionamento social das classes. Não se trata do ordenamento das classes, mas da desclassificação, o que significa que as pessoas caem para fora de suas estruturas, quando, p. ex., não conseguem trabalho, mas continuam a ser mônadas de trabalho, quando não têm dinheiro, mas precisam ser sujeitos monetários. Basta pensar nisso para que surjam sentimentos de medo e terror, que então, por sua vez, se deseja superar. A desclassificação não diz respeito somente ao chamado proletariado, ela é geral, mesmo que grupos específicos (por exemplo os servidores públicos do Ocidente) possam estar, por enquanto, mais bem protegidos do que outros. O que medra agora, nos tempos da globalização galopante, é o canibalismo da economia de mercado: todos contra todos!
Acima de tudo, o showdown social [a luta social final] revela-se – principalmente no Oriente, mas talvez em breve também no Ocidente – como intensificador da energia criminosa. A disposição generalizada para a violência amplia-se onde fazem água os mecanismos políticos, sociais e jurídico-estatais. Essa disposição para a violência não é subversiva; ela contém um caráter usurpatório. Ela não quer mais meramente ganhar dinheiro e valor somente por meio de negócios e de contratos, mas também, e muitas vezes primariamente, por meio da pilhagem. A usurpação não carece de nenhuma legitimação especial. Trata-se de um simples self-service.
A respeito da desintegração do poder estatal no ex-bloco do Leste, Ernst Lohoff, em seu estudo novamente tornado extremamente atual sobre a Iugoslávia, escreve: “Quando os funcionários públicos não podem mais contar com um salário considerável tirado da arrecadação fiscal vêem-se obrigados a garantir sua renda por meio de outras fontes. Deparam-se então com a escolha entre realizar obedientemente seu trabalho atual como ocupação secundária, afastar-se desse serviço que não oferece mais nenhuma remuneração ou lançar mão da posição ocupada para enriquecer-se de forma irregular. Liberado da relação idealmente simbiótica com a sociedade, mas como antes dotado de direitos soberanos e dos correspondentes instrumentos para fazê-los implementar, fica fácil para parte do aparato estatal converter-se à pilhagem da sociedade. Tal rapinagem assume, de um lado, a conhecida forma de corrupção individual ou frouxamente organizada. Nos países do Terceiro Mundo, onde a instalação do aparato estatal deu-se na maior parte dos casos de forma não muito mais que incipiente, esses fenômenos desempenham um papel cada vez maior. Com a crise estrutural da valorização do valor e do aparato estado, esse papel generaliza-se mundialmente.”[viii]
Fair is foul, and foul is fair
Uma intensificação do logro da economia de mercado encontra-se na falsificação. Com razão, fala-se hoje sobre uma conjuntura regular dela. Nós distinguimos neste ponto afalsificação de mercadorias, a falsificação de dinheiro e a falsificação de opções de investimento (p. ex. no caso dos esquemas de pirâmide). A respeito da primeira e da última modalidade, gostaríamos de acrescentar algo rapidamente.
O objetivo da falsificação de mercadorias não é outro que a simulação dupla. Se a marca simula um produto melhor, então a falsificação simula o nome da marca. O objetivo é o lucro rápido. Trata-se de faturar. A falsificação representa unicamente a consequência lógica da troca e da propaganda. Ela realiza em uma camada ilegal o que a troca e a propaganda realizam legalmente. Se o valor de uso do produto concreto não precisa ser de todo pior do que o de seu modelo, então a falsificação da marca, na maior parte dos casos, também pode equivaler à falsificação do valor de uso. A imitação compensa então por sua desvantagem publicitária ao assumir insolentemente uma marca falsa (p. ex. a vodca russa que, em diversas lojas da fronteira tcheca, é vendida aos turistas como original e pelo preço de originais).
Especialmente pérfidos são os esquemas de pirâmide, o negócio especulativo para o “homens de poucas posses”. Timtschenko descreve desta maneira o negócio das pirâmides na Rússia: “Os primeiros e poucos investidores surgidos na Rússia conseguiram ver o pagamento dos juros sobre seu dinheiro, e isso com o capital levado pela segunda onda de investidores. Os primeiros investidores então falaram sobre aquela maravilha com seus colegas de trabalho, os quais por sua vez regressaram a seus lares e surpreenderam suas famílias: ‘No capitalismo o dinheiro está nas ruas. A gente só precisa ser corajoso e estar pronto para correr riscos. […] Amanhã eu também vou investir’. Na manhã seguinte, na frente da casa de câmbio, havia filas de pessoas que trocaram o velho e bom dinheiro russo por títulos de investimento. Decorreu um outro mês. A segunda onda de investidores também recebeu seu dinheiro. Os enormes fundos pagavam e pagavam, juros e juros sobre juros, de 20, 30, 40 por cento ao mês! Deus do céu, os senhores conseguem imaginar um retorno de 500 por cento ao ano? Os senhores conseguiriam se conter quando os senhores recebessem com 1 dólar, ao final do ano, 5? A corrida às casas de câmbio foi tão grande que as pessoas passavam a noite toda às portas delas a fim de entregar-lhes seu dinheiro”[ix]. A terceira onda (que não dirá das subsequentes) não viu as coisas de forma menos brilhante.
O esquema de pirâmide precisa sem dúvida de ignorantes adultos como clientes e vítimas. De fato, quando o homem de pequenas posses sonha com um grande negócio já não se pode garantir a racionalidade de suas decisões. “Nesse ínterim, ficou claro para todo mundo que aquilo não poderia continuar mais. Todos tinham percebido havia tempos que, no final, ocorreria um despertar doloroso. Todos sabiam que não seria possível obter retornos assim tão vultosos, que o negócio funcionaria de alguma maneira escusa, não totalmente legal, não totalmente segundo os princípios da economia mas segundo outros princípios… Ninguém, porém, quer acreditar que a coisa diz-lhe respeito”.[x]
Mas os esquemas de pirâmide tampouco são tão contrários à economia de mercado como parece a Timtschenko: o que os diferencia substancialmente da especulação inevitávelalém do fato de que ocorrem em pseudofirmas de má reputação e não em bolsas respeitáveis? E não há também por estes lados tantos esquemas de pirâmide legais, por exemplo na distribuição e venda de certos produtos com os quais, em um sistema do tipo bola de neve, principalmente empresas norte-americanas atraem pessoas (ignorando todos os padrões sociais legais) na qualidade de pequenos agentes de distribuição cujo sucesso depende da quantidade de indivíduos ainda mais ignorantes que conseguirão arrebanhar atrás de si?
A perversão da empresa capitalista pode surgir nas pirâmides como algo óbvio demais, mas estejamos certos: também essa perversão é uma versão! As pirâmides, de toda forma, adaptam-se bastante bem à simulação generalizada de dinheiro. O fato de essa simulação ter celebrado suas mais selvagens orgias exatamente na Albânia e na Rússia não permite concluir que os albaneses e os russos são mais estúpidos do que outros povos, mas que o sistema capitalista ali, na qualidade de forma não-funcional, precisou encenar suas mais loucas loucuras. No caso concreto, isso permite retirar das ruas os simuladores de dinheiro, suas vítimas. Essa arapuca é uma pilhagem por excelência. Na verdade, é a superstição em relação às grandes forças do mercado que conduz tais pessoas diretamente ao obscurantismo. Os que se deixam enredar por isso não estão, certamente, imunes amais nada.
O obscurantismo colocado em prática floresce em todos os cantos; em momento nenhum, depois de seu fracasso, se estará imune a ele. Mesmo algumas das empresas moscovitas de auxílio para a recuperação do dinheiro perdido acabaram por ser organizadas pela própria máfia[xi]. Sim, os prejudicados realizaram protestos até mesmo contra Iéltsin, exigindo dele seu dinheiro. Movimentos obscurantistas semelhantes surgiram igualmente na Áustria, por exemplo quando bancos duvidosos (?) quebraram e grandes investidores passaram a temer por seu dinheiro. Então, esses “inimigos do Estado” tarados pelo mercado dirigiram-se ao Estado e exigiram em alto e bom som a cobertura de seus salários perdidos.
Decadência de valores como decadência do valor
Com a decadência do valor decaem também os negócios e os compromissos. É exatamente isso o que hoje se descreve como falta de qualidade na tomada de compromissos (e não somente na economia). A moral, no entanto, terá de simplesmente se esmigalhar já que, em muitos casos, ela simplesmente não é mais factível. Um empreendimento necessário que simplesmente asse pães, costure roupas e fabrique tijolos – coisas para serem vendidas na sequência – não é capaz de estar no mercado por sua mera existência e utilidade, mas deverá cumprir determinadas condições adicionais. Somente o marketing apropriado garante a penetração no mercado. O (de toda forma falso) idílio dos pequenos e pacíficos capitais passou definitivamente para a história e não há mais como regressar a esses tempos. Deve-se inventar alguma coisa especial a fim de obter-se sucesso. Marcas, nichos, propaganda tornam-se cada vez mais indispensáveis.
Todavia, algumas vezes, nem mesmo essas estratégias são suficientes para garantir a sobrevivência de uma empresa. O que significa dizer, então, que aqueles esforços devem ser muitas vezes complementados por uma energia criminosa (e isso inicia-se com a evasão fiscal tolerada oficialmente) ou até mesmo substituídos por ela. No entanto, o que se manifesta superficialmente como uma avidez excepcional é a expressão da atormentação fundamental experimentada pelos sujeitos empresariais. A eficiência nos negócios precisa sempre e de forma cada vez mais marcada tender à mentalidade do espoliador; há pouco espaço para os investidores honestos em um mundo de ficcionalização constante. Empresas sérias são cada vez menos frequentes. Mesmo os grandes lucros são obtidos cada vez mais no mercado financeiro e não no mercado de produtos materiais.
A ameaça não é voltarmos para aquém do Estado de direito, mas cairmos além dele, e isso porque uma superação sintética desse Estado, por um lado, não se encontra no terreno das possibilidades e, por outro, porque sua manutenção depara-se com dificuldades cada vez maiores.
Do monopólio da violência aos pólos de violência
Se o pagamento de propina ainda evoca um certo ar de arbítrio e liberalidade, o pagamento de proteção está sempre vinculado a uma coerção factual. Se no caso das propinas a situação ainda é dominada pelos compradores (de serviços, mercadorias, opções de investimento), isso não é mais o que se verifica no caso do pagamento de proteção. Aqui cabe ao vendedor, que pode ser também um chantagista como outro qualquer, estipular os termos. Se o pagamento de propina pode ser pensado inicialmente como uma melhora convencional das condições, como algo que não pode ser extorquido, o pagamento de proteção é uma condição de funcionamento das transações. O pagamento de propina significa, portanto, adição ou suplemento; o de proteção, por sua vez, substituição.
Porém, o pagamento de proteção significa igualmente a privatização dos impostos e dos serviços públicos. No lugar do monopólio fiscal temos pólos fiscais, no lugar do monopólio da violência, pólos de violência. Diferentemente do que ocorre com o Estado, ao qual se pertence por meio da simples cidadania, pode-se, nesse pluralismo de pólos, tomar decisões bastante “livres” sobre a afiliação. A oferta e a procura não serão mais regidos somente pelo dinheiro, mas igualmente pela força bruta. “Na Rússia, entre os empresários, é comum surgir a gramaticalmente meio duvidosa pergunta: ‘Sob quem você está?’ ou ‘Quem é o seu teto?'”[xii] Onde o teto do Estado apresenta goteiras, é preciso buscar abrigo sob outros tetos.
Na qualidade de pólo de violência, o bando pode funcionar internamente segundo regras que de fato lembram as de seu irmão mais velho, o monopólio da violência.
“O ladrão precisa ser honesto em relação aos outros ladrões e tem permissão para fazer tudo o que for necessário a fim de garantir a autoridade da sociedade de ladrões. Nos estabelecimentos prisionais, os ladrões pertencentes ao grupo precisam seguir a disciplina na versão dos ladrões.”[xiii] O bando ou o clã não é somente o núcleo do Estado, mas também seu arremate franzino e emaciado. Como no caso de outras atividades estatais, momentos específicos de violência podem se manifestar. A violência do Estado, porém, não desaparece por completo, concentrando-se simplesmente em recursos repressivos específicos, cuja regulamentação real quase não pode constar dos interesses do setor privado (proteção das fronteiras, serviço de imigração, combate a extremistas etc.). O que resta do Estado torna-se, ele próprio, um pólo segmentado da violência em meio a vários outros, um pólo que assume determinadas funções específicas.
De outro lado, não nos esqueçamos do seguinte: a prontidão para contribuir com um monopólio da violência convencional, prontidão essa não apenas ditada repressivamente como também imposta ideologicamente, pode ser comprada também em qualquer esquina. Os serviços sociais são pagamentos para a proteção estatal não só para a proteção doscidadãos, mas também para a proteção contra os cidadãos.
O fator da criminalidade econômica, que vai da contumaz evasão fiscal ao disseminado complô econômico, irá então aumentar se o desempenho das empresas cada vez menos conseguir garantir o necessário acúmulo de capital de investimentos individuais por meio da acumulação regida pela lei do valor. Com o declínio de sua capacidade de valorização, essas empresas não conseguem sobreviver no mercado se não tiverem acesso a fundos que não venham da acumulação imediata.
A forma civilizada foi o apelo do mercado ao Estado, sempre sob a condição de que o dinheiro público ajudasse as forças de mercado a avançar. Os argumentos a esse respeito (posição da empresa, postos de trabalho) podem ser encontrados, de fato, com mais freqüência do que os fundos necessários para tal. A forma barbarizada é o salvamento dos negócios sem condições de sobrevivência por meio do afastamento em relação às práticas empresariais sérias, o que significa: acordos ilegais, apropriação indébita e, até mesmo, crimes elementares. A lei da força dessa barbarização secundária poderia ser esta (e o mesmo vale também para o direito, a política, a democracia, a liberdade etc.): se o valor perde poder (Gewalt), a violência (Gewalt) ganha valor.
[Dica de leitura: Viktor Timtschenko, Rußland nach Jelzin. Die Entwicklung einer kriminellen Supermacht. Hamburg, Rasch und Röhring, 1998. Útil como primeiro contato com o assunto, ainda que, de um ponto de vista analítico, deixe a desejar e seja, em sua linha crítica, obviamente questionável.]
* Schandl, Franz. “Gesellschaftliches marodieren” [1999], Krisis nº 24, 2001. http://www.krisis.org/1999/gesellschaftliches-marodieren (Tradução: Rodrigo Campos Castro e Cláudio R. Duarte.)
Tradução publicada em Sinal de Menos 1 http://sinaldemenos.org/2011/02/22/sinal-de-menos-1/ [xiv]
[i] Karl Marx, Theorien über den Mehrwert, MEW, Bd.26.1, pp.365-366. [Trad.: Karl Marx, Teorias da Mais-Valia, Vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, pp. 382-3.]
[ii] Jean Ziegler, Die Barbaren kommen. Kapitalismus und organisiertes Verbrechen. [Os bárbaros estão chegando: capitalismo e crime organizado]. München, 1998.
[iii] “A máfia russa mereceria ganhar o Nobel de economia?”, Freibeuter 67, março de 1996, pp.47-54.
[iv] Ibidem, p.48.
[v] Ibidem, p.49.
[vi] Viktor Timtschenko, Russland nach Jelzin. Die Entwicklung einer kriminellen Supermacht. [A Rússia pós-Iéltsin. O desenvolvimento de um superpoder criminoso.] Hamburg, 1990, p.80.
[vii] Ibidem, p. 88.
[viii] Ernst Lohoff, Der Dritte Weg in den Bürgerkrieg. Jugoslawien und das Ende der nachholenden Modernisierung. [A Terceira Via na Guerra Civil. A Iugoslávia e o fim da modernização retardatária.]Unkel/Rhein, Bad Honnef, 1996, p. 163.
[ix] Viktor Timtschenko, Russland nach Jelzin, op.cit., p. 90.
[x] Ibidem, p. 91.
[xi] Ibidem, p.103
[xii] Ibidem, p.118.
[xiii] Ibidem, p.72.