03.06.2018 

Acumulaçao de Capital sem acumulaçao de valor

O caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e o seu segredo
(Krisis 1/2014)

Ernst Lohoff

Texto original: Kapitalakkumulation ohne Wertakkumulation
Disponível em: http://www.krisis.org/2014/kapitalakkumulation-ohne-wertakkumulation/
Tradução: Javier Blank

Resumo

Tanto a economia política como o marxismo tradicional fracassam na tentativa de explicar a acumulação de capital dominada pelo mercado financeiro dos últimos trinta anos. A razão mais profunda para isso são os pressupostos teóricos básicos de ambas as abordagens que, a despeito de suas diferenças, chegam em última instância a resultados muito semelhantes. A economia política confunde riqueza capitalista com riqueza material, isto é, a riqueza de bens reais, e considera o dinheiro essencialmente como um mero meio refinado de mediação da divisão social do trabalho no processo da generalização da troca. Embora o marxismo tradicional dirija seu olhar para a valorização do capital, alega que este só pode se incrementar – considerando a sociedade como um todo – por meio da extração real de mais-valia. Esses dois pressupostos básicos têm uma consequência teórica  comum: os processos econômicos relevantes ocorrem somente na economia real, enquanto a função dos mercados do dinheiro e de capitais limita-se à redistribuição da riqueza já existente.

Tanto a economia política como o marxismo tradicional descrevem o desenvolvimento dos mercados financeiros empiricamente, em parte muito detalhadamente; mas não são capazes de analisá-lo teoricamente de maneira coerente. Essa contradição entre empiria e teoria é insuperável no contexto dos conceitos restritos de dinheiro e riqueza da economia política; ao contrário, a crítica da economia política pode muito bem superá-la. Mas para isso, a análise das leis de movimento específicas da mercadoria capital monetário deve ir um passo além ao dado por Marx na sua investigação fragmentária do capital portador de juros no livro III d’O Capital. A argumentação marxiana interrompe-se numa etapa da apresentação na qual a existência de títulos de dívida negociáveis, como títulos estatais, ações e derivativos, é ainda completamente abstraída. No entanto, se o capital fictício assume a forma dessas mercadorias de segunda ordem, então o valor futuro transforma-se em capital não só desde o ponto de vista individual dos credores, mas, durante o tempo de vida dessas mercadorias, resulta em capital adicional também no balanço social total. Segue-se que pode existir algo como uma acumulação de capital sem acumulação de valor, ainda que somente no interior de um horizonte temporal limitado estruturalmente.

Este artigo apresenta uma discussão aprofundada e detalhada das teses fundamentais da lógica do capital fictício que o autor desenvolveu de forma mais resumida na segunda parte do livro A grande desvalorização. Especialmente a delimitação mais minuciosa das afirmações marxianas sobre o capital portador de juros precisam porque, com a presença das mercadorias do mercado de capitais, o fetiche do capital adquire uma nova dimensão e a formação de capital descolada da extração de mais-valia passa de mera aparência ideológica a realidade social.

1. O inchaço dos mercados financeiros

O início dos anos de 1980 marcam uma virada na história do capitalismo. A fase do capitalismo que ali começou se diferencia de épocas anteriores sobretudo em um aspecto: o centro da acumulação de capital tem se deslocado duradouramente da chamada economia real para a indústria financeira. Abstraindo de fases muito curtas imediatamente anteriores às quedas das grandes crises, desde a primeira revolução industrial até os anos de 1970 o capital funcionante foi sempre o principal portador da acumulação de capital. Consequentemente, o crescimento do capital social total baseava-se na extração de uma massa cada vez maior de mais-valia dos trabalhadores na produção de bens. Nas últimas três décadas, no entanto, a acumulação de capital significou principalmente um aumento exorbitante de títulos financeiros como ações, títulos de dívida ou derivativos. Pode-se ver quão dramático ele foi inclusive nas estatísticas econômicas correntes, ainda que os indicadores da economia política reflitam esse deslocamento de forma incompleta. Em 1980, os ativos financeiros mundiais rondavam ainda os 12 trilhões de dólares, apenas por cima do produto interno bruto global (PIB) da época. Trinta anos depois, o Global Wealth Report estimou os ativos financeiros acumulados em 231 trilhões de dólares, quatro vezes o PIB global daquele momento[1]. Inclusive, o indicador nem sequer leva em consideração o maior item individual no incremento das mercadorias do mercado de capitais, isto é, o aumento explosivo de produtos “derivados” do mercado financeiro, conhecidos como derivativos. O volume total destas mercadorias do mercado de capitais, ainda praticamente desconhecidas na década de 1970, cresceu entre 1998 e 2008 de 72 para 673 trilhões de dólares – contabilizando sozinho portanto doze vezes o PIB global.

O enorme inchaço da superestrutura financeira não escapou evidentemente aos economistas de esquerda. Isso é ilustrado pela ampla disseminação da formulação inicialmente cunhada por François Chesnais de um “regime de acumulação dominado pelo mercado financeiro” enquanto classificação para o capitalismo contemporâneo (Chesnais, 2004). Tais denominações ao menos designam a característica principal da nossa época. Todavia, surge a questão de como uma tal noção pode ser preenchida em termos da teoria da acumulação. O que significa, afinal, para a acumulação social total de capital que ela tenha por conteúdo sobretudo a acumulação de ações, títulos de dívida e outras mercadorias do mercado de capitais?

2. O debate marxista entre empiria e teoria

Uma resposta fundamentada a essa questão requer evidentemente em primeiro lugar ter clareza sobre um problema teórico subjacente. Quem quiser decifrar o que significa para o processo de acumulação geral que por décadas a massa de mercadorias do mercado de capitais tenha crescido muito mais rapidamente que o capital funcionante, deve saber como se insere esse tipo de mercadorias no sistema da riqueza capitalista.

Mas o debate em curso tem seu ponto cego precisamente nessa questão. Embora se descreva o capitalismo contemporâneo como um “regime de acumulação dominado pelo mercado financeiro”, não se atenta para a falta de um fundamento teórico imprescindível para a análise desse tipo de capitalismo. Assim, não fica claro o que significa para a teoria da acumulação que o universo das mercadorias não inclua somente bens mas também mercadorias do mercado de capitais. Sobretudo, não é investigado como se integra, na base da crítica da economia política, a multiplicação das mercadorias do mercado de capitais na acumulação geral de capital.

Essa ignorância em relação aos problemas fundamentais deixa suas marcas no debate da esquerda. No tratamento da “acumulação dominada pelo mercado financeiro” ele enreda-se numa contradição flagrante. Vistos mais de perto, a descrição dos processos econômicos globais não se encaixa com o que se apresenta ao mesmo tempo como axioma irredutível inquestionavelmente aceito da teoria marxiana da acumulação e do valor. Dificilmente um economista de esquerda poderia evitar, de uma maneira ou outra, na descrição do desenvolvimento antes do estouro da crise de 2008, levar em consideração o que é palpável: que durante quase três décadas foi o inchaço dos mercados financeiros que fez o processo de acumulação andar e o manteve na corrida. Mas os próprios autores operam com um entendimento da teoria da acumulação de Marx que, se levado a sério, torna impensável um tal desenvolvimento.

Quando se trata de descrever o efeito dos mercados financeiros na promoção do crescimento, Marx pode depor ocasionalmente como testemunha. Especialmente aquelas passagens do livro III d’O Capital são frequentemente utilizadas para rastrear como o aumento da emissão de letras de câmbio[2] já no ciclo industrial do século XIX levou sempre ao adiamento dos inícios de crises manifestas. Contudo, a maior parte dos economistas de esquerda apoia-se antes no economista burguês Keynes e baseia o impulso de crescimento que resulta da expansão da “indústria financeira” em seu efeito na “oferta e demanda”. Nesse sentido, por exemplo, Lucas Zeise refere-se ao historiador econômico dos Estados Unidos, Kindleberger, e a respeito do boom da nova economia dos anos 1990 escreve que as esperanças de lucro colocadas nas supostas indústrias do futuro podem “atrair e aumentar a emissão de dinheiro” (Zeise, 2008, p. 11). No contexto da bolha do subprime dos anos 2000, Zeise destaca o efeito na demanda que resulta dos excessivos empréstimos privados. De acordo com seu argumento, eles têm contribuído substancialmente para o fechamento do hiato na demanda, ocasionado pela queda da renda do trabalho. Ainda que a força explicativa de tais descrições superficiais, presas no horizonte dos problemas da economia política, seja mantida dentro de limites estreitos, aparece ali a compreensão de que os desenvolvimentos nos mercados financeiros fornecem uma contribuição independente à acumulação de capital atual. Por outro lado, assim que os economistas de esquerda lembram do que eles consideram a quinta-essência da teoria marxista da acumulação e do valor, eles chegam a afirmações diametralmente contrárias. Eles explicam todo o jogo do mercado financeiro como um mero jogo de soma zero, no qual somente muda de mãos riqueza capitalista previamente existente. Em Lucas Zeise, esse afastamento do entendimento, oculto no palavreado da economia política do aumento da oferta e da demanda, segundo o qual o aumento das mercadorias do mercado de capitais representa uma fonte independente de geração de capital social geral, permanece comparativamente vago. Ele escreve: “O fato do excesso especulativo se desenvolver e conseguir arrastar a sociedade toda tem muito a ver com o fato de na fase do boom todos serem ganhadores. A sociedade num todo parece mais rica” (Zeise, 2008, p.11). Enquanto Zeise descreve os mecanismos econômicos concretos, ele mostra o crescimento da oferta e da demanda (os indicadores da riqueza capitalista no debate da economia política), na esteira, de fato, da dinâmica do mercado financeiro. No entanto, assim que recobra sua consciência marxista, somente deve parecer como se assim fosse.

Em Mario Candeias, cujos textos atravessam o mesmo dilema, a negação da visão empírica resulta claramente mais aguda. Também Candeias afirma inicialmente que “desde os anos de 1970 e a progressiva liberalização e integração global dos mercados financeiros, desenvolveram-se sempre novas inovações do mercado financeiro para enfrentar o problema da sobreacumulação” (Candeias, 2008, p.2). Até aqui, tudo bem. No entanto, tão logo Candeias abandona o nível puramente empírico e tenta uma classificação teórica, o voo aos mercados financeiros muda subitamente seu caráter. O que há pouco tinha sido compreendido como uma saída precária para o capital total, com o preço de novas contradições, é interpretado agora como uma mera solução especial para frações específicas do capital. De acordo com esse entendimento, a fuga para a superestrutura financeira abriu para os especuladores novo espaço para a acumulação de capital; mas desde o início e a qualquer momento deve ter sido a custa do capital funcionante e portanto do capital total. Para justificá-lo basta a Candeias uma única frase: “Tais atividades”, diz-se apodicticamente de todas as atividades do mercado financeiro, “não geram riqueza, em vez disso, baseiam sua remuneração na sua capacidade de assegurar para si uma parte da riqueza produzida em outro lugar” (Candeias, 2008, p.2). Evidentemente, os mercados financeiros não criam riqueza material-sensível. Mas isso se aplica da mesma maneira para a riqueza de capital? Candeias não compreende que se trata de farinha de outro saco.

Os escritos de François Chesnais fornecem uma imagem semelhante. Por um lado, ele enfatiza a “autonomia do setor financeiro” (Chesnais, 2004, p.225). No entanto, a despeito do que seria de esperar do autor de um termo como “regime de acumulação dominado pelas finanças”, essa autonomia não é compreendida nem rudimentarmente em termos da teoria da acumulação, mas interpretada em termos puramente sociológicos “como uma construção institucional forte” (idem). Portanto, Chesnais não se dedica a pensar em que medida a emissão bem-sucedida de ações ou títulos de dívida negociáveis significam a formação de capital social adicional, e como o capital criado dessa maneira se diferencia daquele baseado na utilização efetiva de trabalho e na produção de mais-valia. A “independência do setor financeiro” só pode consistir para ele, por definição, na possibilidade dos capitalistas monetários cortarem uma fatia cada vez maior do bolo capitalista global, a custas do capital funcionante. O aumento do capital monetário na superestrutura financeira é interpretado como o resultado da apropriação de mais-valia anterior e a independência relativa da indústria financeira em relação ao movimento do capital funcionante é negada explicitamente em termos da teoria da acumulação. Chesnais descarta categoricamente que possam existir formas de criação de capital que tenham outro conteúdo que a apropriação de mais-valia previamente produzida: “Por maiores que sejam os meios utilizados para garantir sua perenidade, a dominação dos mercados financeiros não pode transcender as restrições e as contradições das quais a esfera “real” é o terreno imediato. A ‘autonomia’ permite que o capital de aplicação financeira ou, ainda, a ‘poupança concentrada’ coloque-se diante do capital envolvido na produção e, portanto, diante do trabalho, para exigir e impor uma participação na repartição legitimada apenas pela posse patrimonial e cujos beneficiários determinam eles mesmos os termos. A forma imediata é uma punção nos lucros e a origem efetiva, uma taxa de mais-valia aumentada. Mas para que o valor e a mais-valia possam ser apropriados, estes devem ter sido previamente gerados em escala suficiente. Isso pressupõe que o ciclo do capital possa ter sido encerrado e a produção comercializada. Um dos principais limites da ‘autonomia’ reside justamente nisso” (Chesnais, 2004. p.225 [10-11, tradução ao português ligeiramente modificada]).

A suposição de que cada aumento do capital social total pode ser sempre atribuído a uma prévia utilização efetiva de trabalho está longe de definir a característica principal da nossa época e somente à força é tornada compatível com o desenvolvimento empírico das últimas três décadas. As proporções falam de fato uma linguagem muito clara. Que incremento gigantesco da produção de mais-valia global teria acontecido nas últimas três décadas para fornecer o material para o aumento acentuado dos ativos financeiros globais de 12 para 231 trilhões de dólares? Como pode o “valor” total dos derivativos em circulação chegar a doze vezes o PIB global quando eles só deveriam representar mais-valia redistribuída? Ainda, a massa de mais-valia é sempre significativamente menor que o PIB, que adiciona todo tipo de ganhos e rendimentos. É o mesmo que assumir que podem ser feitos 100 kg de queijo com um litro de leite.

3. A economia política e a sua visão antinômica da indústria financeira

A vulgata marxista argumenta desde o ponto de vista de uma teoria do valor-trabalho positiva, tal como representada por Adam Smith e David Ricardo, e a coloca equivocadamente junto com a critica do valor marxiana. Há tempos a economia política se despediu da teoria do valor-trabalho assim como da distinção entre valor e preço. Fixada na superfície aparente, segundo a sua compreensão tudo o que tem preço também tem valor. Portanto, para a economia política, “valor agregado” não significa outra coisa que a soma dos ganhos obtidos na venda de mercadorias e serviços, assim como juros e rendimentos (Cf. i.e. Stobbe 1994, p. 96). Todo dinheiro ganho, independentemente de onde e como foi gerado, representa igualmente, nesse entendimento, a emergência de nova riqueza capitalista. A noção predominante de valor agregado não só aplana todas as diferenças dentro da chamada economia real, mas também apaga completamente a distinção entre economia real e indústria financeira. Tanto se a Daimler produz carros ou se o Deutsche Bank está ativo no negócio dos empréstimos, os salários pagos aos funcionários e os lucros obtidos são considerados, em ambos casos, como parte da criação de valor capitalista global e fazem parte da nova riqueza social gerada.

A noção predominante de valor agregado mistura evidentemente maçãs com peras. Para uma teoria séria, isso a torna já desde o início inapta enquanto ponto de partida para uma análise do estatuto específico das mercadorias do mercado de capitais no sistema da riqueza capitalista; no entanto, diante de uma acumulação de capital predominantemente carregada pela indústria financeira, a economia política fornece uma certa vantagem em relação ao marxismo tradicional. Quem, como este último, com base na teoria do valor-trabalho, mantém a identidade entre acumulação de capital e acumulação real de valor, defende um ponto de vista refutado na prática pelo desenvolvimento capitalista. Por outro lado, o caráter turvo e sem conteúdo da noção de valor agregado da economia política a resguarda de ser refutada pela mudança dramática da acumulação de capital da economia real para a indústria financeira.

No entanto, dois pressupostos básicos da economia política moderna revelam-se muito menos resistentes: tanto o conceito fundamental de riqueza, quanto a noção de dinheiro como mero signo, aceita amplamente nas últimas décadas, são incompatíveis com a suposição de que poderia haver formação de capital fora da economia real. Mantenhamo-nos no primeiro axioma. Nos seus  capítulos introdutórios, os livros de economia política interpretam a riqueza de mercadorias como mera riqueza de bens, e o modo de produção predominante como um sistema econômico orientado para o aumento da riqueza de bens e a satisfação de necessidades humanas. Os modelos da economia política – é só pensar nesse contexto na teoria da utilidade marginal – juntam persistentemente riqueza capitalista com riqueza material-sensíve[3]. Mas se a riqueza capitalista é identificada com a riqueza material, fica incompreensível como o aumento de mercadorias que não têm nenhuma dimensão material-sensível, podem ao mesmo tempo contribuir diretamente para um acréscimo da riqueza social geral. Ou a indústria financeira enquanto fonte separada da acumulação capitalista é uma miragem, ou a noção de riqueza da economia é insustentável.

E também o conceito nominalista de dinheiro, amplamente aceito na economia, colide com a ideia de um aumento do capital social geral no interior da indústria financeira. A economia política burguesa moderna considera evidente que, o mais tardar com a desmonetização do ouro, o sistema monetário tornou-se um sistema monetário de meros signos. De acordo com essa interpretação, embora o dinheiro meça o “valor” das mercadorias, ele próprio não representa de maneira alguma uma mercadoria, mas deve ser considerado um mero símbolo. Mas como pode o incremento de uma riqueza puramente simbólica representar diretamente um aumento da riqueza real da sociedade capitalista? Como se sabe, o capital existe no mundo do mercado financeiro exclusivamente na forma monetária. Consequentemente, ao compreender o conjunto do sistema monetário enquanto mero sistema de signos, um aumento da riqueza capitalista global que provenha diretamente de uma multiplicação da produção da indústria financeira deve aparecer como completamente absurda. Quem quiser argumentar coerentemente não pode representar uma teoria monetarista do dinheiro e ao mesmo tempo conferir ao setor da economia que lida exclusivamente com esses supostos signos, a capacidade de produzir nova riqueza social por si mesmo.

Diante do desafio teórico representado pelo capitalismo de nossos dias, carregado pela dinâmica da acumulação na indústria financeira, a economia política mainstream reage de maneira semelhante ao seu braço esquerdo. Também no discurso devoto da economia política de mercado, empiria e teoria ficam separados. Os economistas com orientação prática sabem evidentemente como o crescimento da economia é hoje dependente do florescimento da indústria financeira. Consequentemente, os economistas especialistas envolvidos na gestão de crises tomam somente medidas com um ponto de fuga em comum: garantir a propagação adicional de mercadorias do mercado de capitais. No entanto, nos modelos da teoria econômica, o aumento do capital social ocorre exclusivamente na economia real e volta para a produção de riqueza que ali acontece. Aos mercados financeiros é atribuído, como sempre,  uma mera “função de redistribuição de capital” (Baecker, 2008, p.1). Também nos livros contemporâneos de economia política o papel social geral dos mercados de dinheiro e capital limita-se, portanto, a salvar o capital existente do seu desaproveitamento e proporcionar o seu redirecionamento para uma localização adequada na economia real. Neste ponto de vista, a existência de mercados financeiros promove indiretamente a nova criação do capital social; isso, no entanto, ocorre exclusivamente na esfera da “economia real” e nunca resulta das próprias operações da indústria financeira. Embora uma parte da riqueza adicional produzida flua, pelo seu mérito no fornecimento de capital, para os atores do mercado financeiro, ela aparece sempre, considerada a sociedade num todo, somente como o resultado de uma transferência da economia real.

Os representantes da economia política têm boas razões para essa política do avestruz. Não se pode reconhecer nas mercadorias do mercado de capitais uma possível fonte própria de riqueza capitalista sem abandonar os axiomas da economia política burguesa. A tentativa de renovação teórica tornou-se desde o início um empreendimento de demolição. Quem queira compreender teoricamente os eventos do mercado de capitais como algo diferente de uma mera redistribuição da riqueza capitalista resultante da economia real, deve abandonar, queira ou não, o terreno da economia política.

4. O acesso da crítica da economia política

Entre fazer um harakiri teórico ou esconder a cabeça na areia, os representantes da economia política se decidem pelo último. Isso é compreensível em certo modo. Mas por que economistas de esquerda que se referenciam em Marx esforçam-se por seguir esse modelo? Em qualquer caso, não pela orientação básica da crítica da economia política. Enquanto crítico radical dos pressupostos fundamentais da economia burguesa, Marx justamente desmascarou como pura ideologia os axiomas em relação aos quais a economia política deixa as mercadorias do mercado de capitais – isto é, créditos, ações, derivativos – a priori fora do círculo de possíveis portadores da riqueza capitalista. É suficiente manter as afirmações marxianas sobre o caráter da riqueza capitalista e do dinheiro para derrubar qualquer proibição que interdite a economia política de pensar a possível contribuição das mercadorias do mercado de capitais para a acumulação de capital.

Ao contrário da economia política, a sua crítica feita por Marx faz uma distinção categorial rigorosa entre riqueza material-sensível, por um lado, e riqueza abstrata, por outro. No capitalismo, não é a simples riqueza de bens que representa de fato a riqueza social, mas algo fundamentalmente diferente daquela. No primeiro capítulo d’O Capital, Marx elaborou esse atributo particular da riqueza capitalista nos bens. Somente a primeira vista o tecido produzido para a venda ou o vestido confeccionado enquanto mercadoria parece uma “coisa trivial, evidente”. Olhando mais de perto, a mercadoria resulta uma “coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas” (MEW 23, p. 85 [v1 p.70]). Embora cada bem tenha um valor de uso material-sensível, de maneira alguma é este que torna os bens um elemento da riqueza capitalista geral. Eles só se tornam parte dela ao desenvolver a qualidade puramente social, “suprasensível” de encarnar valor de troca: “O valor de uso não é, de modo algum, a coisa qu’on aime pour lui même. Produz-se aqui valores de uso somente porque e na medida em que sejam substrato material, portadores do valor de troca” (MEW 23, p. 201 [v1 p.155]). Mesmo em uma bicicleta produzida de modo capitalista as pessoas podem ir de A a B, mesmo cenouras produzidas para o mercado anônimo podem ser comestíveis. Mas isso não é o que conta na lógica capitalista. Enquanto simples objetos de uso, que satisfazem determinadas necessidades, a cenoura e a bicicleta fazem tão pouco parte da riqueza capitalista quanto o sol no céu.

Ações, títulos de dívida ou futuros, como se sabe, nem podem ser comidos nem podem ser usados como meios de transporte, e também não servem para satisfazer qualquer uma das variadas necessidades sensoriais que o consumidor poderia desenvolver. As mercadorias do mercado de capitais, portanto, diferenciam-se fundamentalmente dos bens e formam uma classe separada de mercadorias, cujo valor de uso encontra-se completamente fora do mundo do material-sensível. Todas as mercadorias do mercado de capitais têm um único valor de uso “metafísico”, genuinamente social: elas prometem ao seu vendedor que o dinheiro utilizado na compra se transformará ele mesmo em dinheiro multiplicado, portanto, em capital[4].

Desde o ponto de vista da economia política, da confusão da riqueza material-sensível com a riqueza capitalista abstrata, é uma simples consequência lógica que as mercadorias que não possuem qualquer dimensão material-sensível não poderiam nunca representar um elemento da riqueza capitalista geral. Do ponto de vista da crítica da economia política, no entanto, a razão para essa expatriação prévia resulta absurda. Se as mercadorias do mercado de capitais são portadoras da riqueza capitalista somente enquanto valor de troca e portanto na sua propriedade metafísica,  porque teriam de ser desqualificadas por isso enquanto possíveis elementos da riqueza capitalista, cujo valor de uso já é estabelecido fora do mundo material-sensível?

A ideia de que a proliferação de mercadorias do mercado de capitais poderia fornecer uma contribuição direta para a acumulação de capital colide também com o conceito nominalista do dinheiro, que é consenso na economia política há décadas. O fundamento dessa separação também dissolve-se no ar assim que a teoria monetária se dirige às categorias fundamentais da crítica da economia política. Essa crítica é fundamentalmente incompatível com a ideia do sistema monetário enquanto um sistema de meros signos. De acordo com o pressuposto fundamental da teoria monetária contida na teoria de Marx, para que a riqueza das mercadorias possa ter no dinheiro uma forma geral de representação, o próprio dinheiro deve ter o caráter de mercadoria[5]. Se não se trata do dinheiro como um mero signo que fica fora do universo das mercadorias, mas do seu acoplamento com uma mercadoria-dinheiro, em que o próprio dinheiro é parte integrante do universo das mercadorias, então seria completamente absurdo que as mercadorias do mercado de capitais sejam postas para fora do sistema da riqueza abstrata devido ao seu caráter puramente monetário.

Enquanto crítica radical da forma da riqueza capitalista, a crítica da economia política está livre dessa interdição do pensamento pela qual a economia política inibe uma análise séria das mercadorias do mercado de capitais e do seu estatuto no sistema da riqueza capitalista. Em lugar de usar esse acesso privilegiado, a corporação dos economistas de esquerda seguem aos seus colegas devotos da economia de mercado. Por que? Sobretudo pela falta de distância com o discurso econômico dominante. O debate em curso da esquerda é muito mais um braço do mainstream do que uma reação a ele. Entre os muitos especialistas econômicos de esquerda que preferem argumentar com Keynes do que com Marx, isso é evidente. Mas também naqueles que com base em Marx explicam os eventos do mercado financeiro como um mero jogo de soma zero, olhando de perto, isso de modo algum é diferente. Todos eles reproduzem uma confusão comum já no marxismo tradicional do movimento operário, ao interpretar a crítica da economia política como uma teoria do valor trabalho positiva na tradição de Smith e Ricardo, ignorando seu núcleo: a crítica radical da forma da riqueza capitalista. Do ponto de vista de uma teoria dos fatores da produção que acredita reconhecer no trabalho a única fonte da riqueza capitalista, é obviamente evidente como as mercadorias do mercado de capitais devem ser lidas. Por mais que ele se torne comumente aceito, esse ponto de vista não é de maneira alguma o ponto de vista da crítica da economia política. Esse tipo de marxismo baseia-se na verdade em uma antiga versão da economia política burguesa, e faz um papel ridículo diante da realidade capitalista da mesma maneira como o faz a versão moderna da economia política.

5. A crítica de Marx do conceito de capital da economia política burguesa

A confusão entre riqueza capitalista e riqueza material-sensível, característica da economia política burguesa, reflete-se – não poderia ser diferente – também no seu conceito de capital. Logo que se trata da totalidade da economia, o capital é para a economia política somente uma outra palavra para os meios de produção utilizados na fabricação de bens. Afirma-se no Gabler Wirtschaftslexicon de maneira curta e concisa: “O capital é definido como um fator da produção ao lado do trabalho e da terra. Nesse contexto, capital é entendido como o stock de equipamentos de produção que pode ser usado para a produção de bens e serviços”[6]. A ideia segundo a qual a formação de capital poderia ter lugar somente na economia real aparece como imediatamente evidente, à luz dessa compreensão do capital enquanto coisa. Se o capital é idêntico aos meios de produção na sua simples materialidade, então toda a formação de capital deve ser estabelecida naturalmente na esfera na qual as máquinas e as matérias-primas são produzidas.

Marx desvendou essa equiparação como expressão do pensamento fetichista: “O capital não é uma coisa, assim como o dinheiro também não é uma coisa. No capital, assim como no dinheiro, apresentam-se determinadas relações sociais de produção enquanto relações entre as coisas e as pessoas, ou aparecem certas relações sociais como propriedades naturais sociais das coisas” (Marx, 1970, p.32). O capital nunca emerge da produção material enquanto tal. Antes, o capital não é outra coisa senão o movimento incessante da transformação do dinheiro em mais dinheiro, e essa relação reificada do fim-em-si é, por sua vez, somente a expressão do fato de as pessoas entrarem em relação umas com as outras enquanto produtores privados isolados e proprietários de mercadorias.

Ao entender o capital enquanto uma relação social, a crítica da economia política alcança uma compreensão do processo de formação de capital que se distingue fundamentalmente da visão dominante em dois aspectos. Por um lado, ela cria uma imagem muito diferente da maneira como a formação de capital, mediada pela produção de bens, tem lugar, isto é, no processo de valorização; mas, por outro lado, abre um acesso a algo totalmente desconhecido para a economia política burguesa: a formação de capital social geral sem formação de valor.

O primeiro aspecto encontra-se claramente no centro dos escritos marxianos da crítica da economia. O segundo ponto de vista, que trata da existência de modos de formação de capital específicos que não se reduzem ao dispêndio de trabalho, é apenas tocado por Marx, sem que se chegue a uma consideração sistemática. No livro III d’O Capital, ao tratar da renda fundiária, Marx menciona que a transformação de recursos naturais em propriedade privada não fornece aos seus proprietários apenas uma renda, e com isso a possibilidade de ficar com mais-valia originada em outro lugar; posto que esse recurso natural recebe um preço, trata-se ao mesmo tempo de uma “capitalização da renda” (MEW 25, p. 636 [v5. p. 117]). Na forma do preço da terra, a perspectiva da renda fundiária futura transforma-se em capital[7].

Mas uma outra ideia é mais importante para o nosso problema, que Marx também comenta só de passada, mas na qual aparece o segredo fundamental do capitalismo dominado pelo mercado financeiro. No exemplo do capital por ações, ele chega a dizer que na forma de certificados de ações entram ao lado do capital funcionante “duplicatas de papel” “que são, em si mesmas, negociáveis como mercadorias e, por isso, circulam como valores-capitais” e tem um movimento independente “do movimento de valor do capital real, sobre o qual são títulos” (MEW 25, p.494 [v.5 p.13]). Marx chama esse estranho tipo de capital resultante da duplicação de um capital inicial na emissão de títulos de propriedade de capital fictício. A despeito do que pode sugerir incorretamente o termo um tanto infelizmente escolhido, esse tipo de capital social adicional de maneira alguma existe somente na cabeça como uma mera ideia. Assim que uma promessa de pagamento circula como mercadoria, essa relação entre dois capitalistas tornada mercadoria representa capital tão genuíno quanto o capital real derivado da extração de mais-valia. O incremento de tais mercadorias do mercado de capitais pode inclusive se tornar o próprio portador da acumulação de capital social geral. Isso soa fantasmagórico. No entanto, nesse processo somente vem a si o caráter fantasmagórico fundamental da riqueza capitalista, tal como Marx já o expôs no capítulo do fetiche do livro I d’O Capital.

6. Sobre o método da crítica da economia política

A afirmação de que o capital é uma relação social e não uma coisa é frequentemente sublinhada na discussão marxista. No entanto, esta proposição é pensada apenas em termos da relação do trabalho assalariado com o capital. Nessa redução, todavia, continua o falso entendimento do qual Marx tão decididamente se diferenciou. O fato de que o capital também pode surgir da produção de mercadorias do mercado de capitais, ou seja, da criação de mercadorias que representam exclusivamente uma relação social, e que não tem nenhuma dimensão material-sensível, permanece impensável.

Seria sem dúvida mais fácil superar essa compreensão reduzida e pôr a discussão da esquerda sobre o regime de acumulação dominado pelo mercado financeiro num fundamento teórico sólido, se Marx tivesse discutido mais detalhadamente a questão dos bens do mercado de capitais nos seus escritos sobre a crítica da economia. No entanto, sua obra principal, de grande envergadura, permaneceu fragmentária, e sua exposição sistemática da crítica da economia política se interrompe em um estágio em que a existência de mercadorias do mercado de capitais ainda é fundamentalmente abstraída. Além disso, aquelas passagens sobre capital por ações no livro III d’O Capital, que antecipam a resposta ao nosso problema, infelizmente (ainda) não estão integradas no curso sistemático da argumentação de Marx.

O fato da exposição de Marx da crítica da economia política apresentar lacunas em um ponto tão central para a análise do capitalismo atual deve-se certamente também às circunstâncias em que sua obra surgiu. No capitalismo do século XIX, a criação de títulos de propriedade negociáveis ainda estava no início. O capital por ações limitava-se a pouquíssimas indústrias chave, especialmente as ferrovias, e além disso, quase não existiam outros títulos de dívida negociáveis generalizados fora os títulos do Estado. A proporção da acumulação de títulos de propriedade em relação à acumulação geral era, assim, insignificante. Já pela sua limitada relevância prática na época, não é surpreendente que Marx não tenha prestado atenção especial à questão chave de nossa época; mas certamente é muito mais importante uma outra razão teórica imanente, isto é, a metodologia específica da crítica da economia política. No curso da exposição, na medida em que a totalidade concreta da sociedade capitalista enquanto “síntese de múltiplas determinações”, enquanto “unidade do diverso” (MES 42, p.35) ia se tornando visível e ganhando contornos cada vez mais claros, Marx viu-se forçado, no desenvolvimento do seu raciocínio n’O Capital, a manter uma certa ordem. Ele parte n’O Capital das determinações mais abstratas e gerais do modo de produção capitalista, desenvolve a partir dai determinações cada vez mais concretas e, dessa maneira, aproxima-se sucessivamente da superfície aparente do processo social. Assim procedendo, no entanto, a crítica da economia política só pode se ocupar da existência de mercadorias do mercado de capitais e do seu significado para o processo capitalista geral depois de quase todos os outros andares do prédio inteiro estarem já em pé. A análise das mercadorias do mercado de capitais insere-se aqui como uma pedra angular na exposição do capital em geral; o próprio Marx não chegou a colocar essa pedra angular.

Evidentemente, não foi só no curso do seu trabalho n’O Capital que Marx descobriu que o universo das mercadorias alojava ainda outros habitantes para além da mercadoria força de trabalho e as mercadorias originadas pela aplicação da força de trabalho. Isso estava claro para ele desde o início: faz parte da lógica do modo de produção capitalista generalizar a forma mercadoria e submeter tudo a ela. Na base do modo de produção capitalista, também os recursos naturais surgidos originalmente sem trabalho humano (i.e. a terra) transformam-se em mercadorias, e inclusive o próprio capital torna-se mercadoria na sua forma dinheiro. O capital monetário, como se sabe, pode ser vendido em uma variedade de formas. A forma desenvolvida representa a relação social que se origina quando o dinheiro nas mãos dos capitalistas monetários é trocado por uma mercadoria do mercado de capitais, isto é, uma obrigação juridicamente estabelecida que se tornou negociável por si mesma.

A transformação do capital monetário em uma mercadoria é uma dimensão logicamente subordinada do processo geral de mercantilização que acompanha a imposição do modo de produção capitalista. Essa metamorfose pressupõe a existência de capital e com isso tanto a conversão da sociedade numa sociedade de produtores privados isolados quanto a subordinação da produção material sob a auto-finalidade da geração de valor. Portanto, na “ascensão do abstrato ao concreto”, na sua obra fundamental Marx teve inicialmente que se abstrair completamente da extensão do processo de mercantilização ao próprio capital. Somente quando o processo de valorização do valor e o movimento do capital funcionante já foram tratados é que se alcança a etapa da exposição na qual pode se desenvolver o problema da mercadoria capital monetário e integrá-lo no conjunto do sistema[8].

Ainda, na sua investigação fragmentária da mercadoria capital monetário, Marx não chega diretamente à relação social que se origina com a aparição das mercadorias do mercado de capitais. Em vez disso, ele insere um estágio intermediário: em suas considerações introdutórias sobre o capital portador de juros, Marx indaga inicialmente como o capital é vendido enquanto mercadoria sem sem confrontar outra mercadoria. A exposição marxiana da crítica da economia política interrompe-se antes da transição ao próximo estágio lógico, no qual teria-se-ia por objeto um tipo de relação social originada da emissão e compra de mercadorias do mercado de capitais. Não é nenhuma grande façanha se sentar nos ombros do Marx para recuperar aquilo que foi perdido. Para isso é preciso, no entanto, que o método de Marx seja levado a sério e que se utilize seu trabalho preliminar, em lugar de deixar de lado a análise da forma-mercadoria como exercício esotérico, irrelevante para a análise concreta, como infelizmente ocorre com a má tradição marxista. Por isso, a seguir é recapitulada inicialmente a quinta-essência da análise marxiana da mercadoria capital monetário. Posteriormente é delineado o que a aparição de mercadorias do mercado de capitais modifica na relação que Marx apresentou em suas considerações introdutórias sobre o capital portador de juros. Em que consiste a nova e peculiar qualidade da relação entre mercadoria geral e mercadoria do mercado de capitais?

7. A mercadoria capital monetário – um tipo específico de mercadoria

Como desenvolvido por Marx na primeira seção d’O Capital, o dinheiro não é uma mercadoria como qualquer outra. Ao adotar a forma do dinheiro, o valor assume a “forma de permutabilidade direta geral” (MEW 23, p.84 [v1 p.69]). Transformado em dinheiro, o valor de cada mercadoria, pode ser trocado por qualquer outra mercadoria, e isso destaca o dinheiro das mercadorias vulgares, enquanto “rainha” das mercadorias. Devido a esse estatuto privilegiado enquanto mercadoria geral e “existência absoluta do valor de troca”  (MEW 23, p.150 [v1 p.115]), o dinheiro obtém também no ciclo do capital funcionante uma posição especial. Ele é “o ponto de partida e o ponto final de todo processo de valorização” (MEW 23, p.169 [v1 p.130]). O capital funcionante entrega-se ao objetivo da multiplicação do dinheiro mudando sua forma repetidas vezes. Diferente do entesourador, que “procura salvar o dinheiro da circulação”, e simplesmente o retém, o capitalista funcionante só consegue “a multiplicação incessante do valor”, “ao entregá-lo sempre de novo à circulação” (MEW 23, p.168 [v1 p.130]). No capital industrial, o capital total existente inicialmente na forma da mercadoria geral divide-se em uma parte de capital variável e uma parte constante, onde a primeira é trocada pela mercadoria especial força de trabalho e a segunda por matérias-primas e máquinas. Somente com a venda das novas mercadorias particulares produzidas com a ajuda desses ingredientes, e com a reconversão do capital na mercadoria geral dinheiro, o capital industrial completou seu movimento e atingiu seu objetivo. E também o capital comercial, na sua busca de lucro, põe-se provisoriamente na pele de mercadorias particulares. Essas transformações, indispensáveis para o processo de valorização, de maneira alguma abolem o estatuto privilegiado do dinheiro enquanto alfa e omega da produção capitalista, somente o confirmam. Somente com a reconversão na mercadoria geral pode-se distinguir se o capital inicial tem funcionado de fato como capital ou se tem fracassado nessa tentativa. A forma dinheiro é a forma real, universal, do capital, o capital-mercadoria, mas por outro lado, é somente uma forma de representação sempre ameaçada de desvalorização, portanto precária.

No livro III d’O Capital, Marx continua essa consideração fundamental. Começa a seção 5, na qual ele introduz o capital portador de juros, observando que devido à sua posição privilegiada como ponto de partida e de chegada da valorização do valor, o dinheiro assume um valor de uso adicional, cuja exposição até então tinha abstraído: “Dinheiro – considerado aqui como expressão autônoma de uma soma de valor, exista ele de fato em dinheiro ou em mercadorias – pode na base da produção capitalista ser transformado em capital e, em virtude dessa transformação, passar de um valor dado para um valor que se valoriza a si mesmo, que se multiplica. Produz lucro, isto é, capacita o capitalista a extrair dos trabalhadores determinado quantum de trabalho não-pago, mais-produto e mais-valia, e apropriar-se dele. Assim, adquire, além do valor de uso que possui como dinheiro, um valor de uso adicional, a saber, o de funcionar como capital. Seu valor de uso consiste aqui justamente no lucro que, uma vez transformado em capital, produz” (MEW 25, p.350ss. [v4 p.241])

A economia política distingue três funções do dinheiro: enquanto meio de pagamento, enquanto meio de reserva de valor e enquanto medida de valor. Considera assim, à sua maneira, os diferentes valores de uso do dinheiro. No entanto, a economia política burguesa oculta sistematicamente aquele valor de uso adicional que o dinheiro obtêm com a subsunção da produção da riqueza material-sensível sob o diktat da valorização do valor, seu valor de uso enquanto capital potencial. Ela pode fazer isso sem mais, na medida em que confunde riqueza capitalista com simples riqueza de bens, e esse valor de uso adicional do dinheiro não é realizado nem nas relações de compra no mercado da força de trabalho nem nos mercados de bens[9]. Embora apenas a perspectiva de lucro leve os capitalistas funcionantes a esses mercados, nos mercados de bens e de trabalho têm lugar exclusivamente transações nas quais o valor de uso do dinheiro é utilizado enquanto simples meio de compra, portanto nunca diretamente enquanto capital potencial: “Em nenhum momento isolado da metamorfose, considerado por si, o capitalista vende a mercadoria como capital ao comprador, embora para ele esta represente capital, ou aliena o dinheiro como capital ao vendedor. Em ambos os casos, ele aliena a mercadoria simplesmente como mercadoria e o dinheiro simplesmente como dinheiro, como mero meio de compra de mercadorias” (MEW 25, p.354 [v4 p.244])

Uma sociedade produtora de mercadorias é uma sociedade de transferências de valores de uso. Quanto aos muitos bens particulares, isso salta à vista imediatamente: “Para produzir mercadoria, ele [o produtor] não precisa produzir apenas valor de uso, mas valor de uso para outros” (MEW 23, p.55 [v1 p.49]). Uma maçã, uma máquina-ferramenta, um lenço não se tornam mercadorias porque têm um valor de uso material-sensível para os seus produtores, mas é seu valor de uso para os potenciais compradores o que faz delas mercadorias. E também na mercadoria força de trabalho a propriedade e a utilização separam-se necessariamente. Para se tornar mercadoria, ela deve para o seu proprietário ser só portadora de valor de troca, enquanto desenvolve seu valor de uso nas mãos dos capitalistas. Finalmente, está na natureza do valor de uso primário do dinheiro enquanto meio de troca universal que a utilização desse valor de uso coincida diretamente com a sua transferência. Quando o comprador cede ao vendedor uma determinada soma de dinheiro, permite-lhe utilizar por sua vez essa soma de dinheiro como meio de troca e agir enquanto comprador[10]. Enquanto se olha para o mundo dos bens e do ciclo do capital funcionante, no entanto, um certo valor de uso não obedece ao princípio da portabilidade geral de todos os valores de uso. Precisamente o valor de uso do dinheiro enquanto capital potencial ou permanece ali inutilizado ou só pode ser realizado sob a forma de pagamento monetário daquele que entrou no mercado de bens já na posse dessa soma de dinheiro.

O capital está, consequentemente, preparado para, na sua marcha triunfal, tornar tudo vendável e substituir a auto-produção e o auto-uso pela riqueza mediada pelo mercado. A descoberta de um novo valor de uso numa mercadoria já estabelecida tem como consequência que também ele se torna alienável. O desenvolvimento de métodos que permitem a utilização do milho para a produção de combustível de maneira alguma tornou os produtores de milho auto-suficiêntes no fornecimento de gasolina, antes eles passam a vender seu produto não só como ração para animais mas também como planta energética. Emergiu um novo mercado para a mercadoria milho. O valor de uso do dinheiro enquanto capital potencial, que resulta da submissão da produção material ao capital, não é nenhuma exceção[11]. O capital encontrou caminhos e meios para torná-lo também alienável. Mas enquanto a descoberta de novos valores de uso materiais-sensíveis significa somente uma extensão quantitativa do universo das mercadorias, com a transformação do capital monetário potencial em uma mercadoria, o processo de mercantilização adquire uma qualidade totalmente nova. Quando o próprio capital na sua forma dinheiro se converte em mercadoria, o processo de mercantilização torna-se auto-referencial e emerge um tipo inteiramente novo de mercadoria: “Nessa qualidade de capital possível, de meio para a produção de lucro, torna-se [o dinheiro] mercadoria, mas uma mercadoria sui generis” (MEW 25, p.351 [v4 p.241])

No início mesmo de suas observações sobre o capital portador de juros, Marx destaca que a mercadoria capital monetário é fundamentalmente diferente das mercadorias negociadas nos mercados de bens e segue suas próprias leis de movimento. Mas isso não é tudo. Ele também deixa claro de início por que a mercadoria capital monetário fornece uma relação social estruturada completamente diferente da proporcionada pelos bens. Pelo seu valor de uso específico, a transferência do valor de uso adquire na mercadoria capital monetário uma forma muito peculiar que se diferencia fundamentalmente de todas as outras mercadorias. Na alienação do capital monetário, seu valor de uso enquanto capital potencial é por um lado transferido ao comprador, mas por outro lado também usado pelo próprio vendedor. A transformação do dinheiro em mais dinheiro é a única razão pela qual o proprietário do capital monetário aliena-o.

Não é nada incomum que o comprador do capital monetário, graças à compra, disponha sobre o valor de uso da mercadoria adquirida. Essa transferência do valor de uso ocorre em cada venda. No entanto, é específico da mercadoria capital monetário que o vendedor entregue o valor de uso de sua mercadoria, mas somente para realizá-lo ao mesmo tempo ele mesmo. O capitalista monetário vende a mercadoria geral que ele possui (o dinheiro), para ela lhe servir enquanto capital e o seu dinheiro retornar para ele acrescido. Há, portanto, uma dupla utilização do valor de uso do capital monetário, que torna a “mesma soma de dinheiro […] capital para duas pessoas” (MEW 25, p.366 [v4 p.251]).

No mundo dos mercados de bens, tal como analisado por Marx no livro I d’O Capital, domina uma lógica diferente. Ali a transferência do valor de uso no ato da compra inclui sempre uma transferência completa dos valores de uso envolvidos. Isso aplica-se em primeiro lugar a mercadorias particulares vendidas. Quem vende tomates ou bicicletas não mantêm para si mesmo nem um átimo do seu valor de uso. Nada muda se acontece um aluguel em lugar de uma compra. Nesse caso, um objeto não é de fato vendido, mas um direito de uso temporário de um objeto torna-se mercadoria. Mas pela duração do contrato de locação, o locador renuncia ao uso próprio do espaço de moradia ou do carro que foram cedidos, assim como o agricultor renuncia ao consumo das maçãs vendidas. E também o valor de uso do dinheiro é totalmente transferido em uma compra no mercado de bens. Na compra, o comprador utiliza ele mesmo em primeiro lugar o valor de uso do dinheiro como meio de pagamento. Mas, ao fazê-lo, passa esse valor de uso completa e irrevogavelmente para o vendedor. Este deixa o mercado com o dinheiro que entrou com o  comprador.

Para além do intercâmbio dos valores de uso entre o comprador e o vendedor e de que ambas as partes contam a qualquer momento exclusivamente com o valor de uso respectivo que cada um  possui, o encontro entre o dinheiro e uma mercadoria específica no mercado de bens tem ainda uma segunda característica: a soma de dinheiro de um e a mercadoria específica do outro representam a mesma quantidade de valor de troca. No conto Hans im Glück [João, o felizardo, na edição em português], Hans finalmente troca sua pepita de ouro por uma pedra, e também nos acontecimentos reais dos mercados de bens pode-se acabar sendo roubado. Mas, segundo a sua lógica básica, a crítica da economia política insiste em que os bens e o dinheiro representam equivalentes, ou seja, valores iguais. Essas duas características, a equivalência do valor de troca entre o dinheiro e uma mercadoria específica, e o intercâmbio dos valores de uso, que a cada momento estão somente na disposição exclusiva do comprador ou do vendedor, fazem da compra de um bem uma relação de troca.

Do ponto de vista social, tal ato de compra estruturado como uma relação de troca tem dois efeitos: o dinheiro circula e a mercadoria específica envolvida nesse processo de troca realiza o seu valor no ato da compra. Sua função enquanto instância de realização faz do mercado de bens um lugar de seleção para as mercadorias particulares que ali se negociam. Na medida em que encontram um comprador, as mercadorias particulares originadas de trabalhos privados isolados conseguem o reconhecimento como componentes da riqueza capitalista, e o seu valor é confirmado como valor socialmente válido. Se, ao contrário, o mercado se mostra pouco complacente, e as mercadorias particulares se mantêm invendáveis, o reconhecimento social lhes é negado e ocorre uma desvalorização. Para realizar o seu valor, os bens devem passar com êxito através do gargalo da venda. Isso não significa, no entanto, que essa forma de riqueza capitalista origina-se ali ou tem ali qualquer tipo de crescimento[12]; enquanto mera relação de troca, a bem-sucedida venda de bens pode tão pouco aumentar a riqueza capitalista quanto incrementar a massa de dinheiro.

8. Mercadorias sem troca

Como já foi indicado, uma característica particular diferencia a mercadoria capital monetário do restante do mundo das mercadorias: em todo o universo de mercadorias, ela é a única que, ao ser vendida, pode ter o seu valor de uso utilizado tanto pelo comprador quanto pelo vendedor. No entanto, essa duplicação da utilização da mesma soma de dinheiro só é possível porque ambos estabelecem uma relação social muito peculiar, que é fundamentalmente diferente da relação entre o comprador e o vendedor de um bem. Nas suas considerações iniciais para a análise do capital portador de juros, Marx procura determinar mais precisamente esse caráter específico. Ele insiste em repetidas ocasiões que, ao contrário da venda de um bem, na venda do capital monetário “não ocorre intercâmbio”  (MEW 25, p.359 [v4 p.247]).

E, de fato: na venda de capital monetário já não se encontra a característica mais geral e mais abstrata de qualquer relação de troca. Só pode se falar de uma relação de troca quando uma mercadoria particular defronta-se com dinheiro alheio ou, pelo menos, com uma outra mercadoria particular. O capital monetário é também a única mercadoria em todo o universo de mercadorias que pode ser alienada sem um tête-à-tête com outra mercadoria. A venda do capital monetário é, em vez disso, “consequência de um acordo jurídico especial entre comprador e vendedor” (MEW 25, p.361 [v4 p.248]), que diz respeito unicamente a essa mercadoria e regulamenta a utilização partilhada do seu valor de uso.

As modalidades precisas desse acordo jurídico podem ser concebidas de formas muito diferentes nos seus detalhes; o ponto central, no entanto, é sempre o mesmo: comprador e vendedor da mercadoria capital monetário fecham um contrato jurídico que tem por conteúdo uma “remessa” (MEW 25, p. 353 [v4 p.243]) do capital monetário, sujeita a posterior re-transferência. O capital monetário, portanto, não é “pago e entregue” de uma vez por todas, mas só “é alienado sob a condição, primeiro, de voltar, após determinado prazo, a seu ponto de partida, e, segundo, de voltar como capital realizado” (MEW 25, p. 356 [v4 p.245]). Em primeiro lugar, o capitalista monetário “entrega seu capital [ao comprador], transfere-o […] sem receber um equivalente” (MEW 25, p.359 [v4 p.247]). Em contrapartida, o comprador da mercadoria capital monetário compromete-se a efetuar em uma data posterior uma transferência igualmente unilateral de capital monetário ao vendedor. A primeira transferência unilateral proporciona ao comprador acesso ao valor do uso do capital monetário. O acordo da segunda transferência em sentido oposto garante que também o vendedor se beneficie do valor de uso do seu capital monetário. Para isso, no entanto, a mera re-transferência da quantidade de dinheiro entregue não é suficiente. Para assegurar a dupla utilização do valor de uso pelo comprador e pelo vendedor, o acordo jurídico entre eles deve ser concebido de modo tal que o comprador ceda ao vendedor uma soma de dinheiro maior que a recebida anteriormente por ele[13].

Com exceção de flutuações aleatórias, a compra de bens envolve o intercâmbio de valores da mesma grandeza. Troca significa troca de equivalentes. Mas na venda da mercadoria capital monetário o princípio de equivalência é anulado em dois aspectos. Em primeiro lugar, porque esse tipo de venda substitui a transferência simultânea e recíproca de dinheiro e mercadoria por duas transferências unilaterais separadas no tempo. Mas na venda de capital monetário o princípio de equivalência é dissolvido também enquanto processo total. Ao contrário, a venda tem como condição indispensável que ambas as transações não se compensem, mas que finalmente chegue ao vendedor mais dinheiro que aquele que ele entregou.

Existe, todavia, outra diferença fundamental entre a venda da mercadoria capital monetário e a venda de bens. Enquanto troca, a venda de bens tem sempre o caráter de um ato único. A alienação acontece em um momento determinado. Ao contrário, na mercadoria capital a venda experimenta, por causa da decomposição em duas transferências unilaterais separadas, um alargamento temporal. Nessa variedade de mercadoria, a venda não é um evento pontual, mas um ato que cobre todo um período de tempo. A primeira transferência unilateral de capital monetário do vendedor ao comprador marca o início da venda, o último pagamento acordado do comprador ao vendedor, o final desse ato.

A venda da mercadoria capital monetário, no entanto, não experimenta somente um alargamento temporal em relação à venda de bens; com esse alargamento temporal, a alienação ganha um significado completamente novo na vida das mercadorias. Também para os bens a venda representa um acontecimento chave. Somente com a sua troca por dinheiro esse tipo de mercadorias tem  reconhecimento social. Um tomate que foi produzido como mercadoria, mas permanece invendável, não pode realizar o seu valor e é degradada a uma mera coisa sem valor. Todavia, a existência das mercadorias não se reduz ao fatídico momento da troca. A venda bem-sucedida constitui nos bens muito mais a estação de passagem em um caminho muito mais longo. Todos os bens existem já antes da venda. A produção da mercadoria e a sua alienação são, no caso dos bens, processos sequenciais, claramente separados. A produção das mercadorias precede a venda. O pão e o sofá devem ter sido produzidos para que fossem trocados por dinheiro, e só serão trocados porque, enquanto produtos de trabalhos privados isolados, já foram produzidos como portadores de valor. Depois da troca, o comprador e o vendedor seguem caminhos separados. É claro que o fim da sua relação econômica não significa de maneira alguma o fim do bem e do respectivo valor. Uma outra etapa espera por eles: seu consumo. A mercadoria e o valor de troca não morrem de maneira alguma no balcão da loja, mas somente na guarda do comprador por meio da utilização do seu valor de uso. O vinho tinto e o valor que ele encarna desaparecem com a abertura da garrafa. O carro perde gradualmente o seu valor ao rodar pelas ruas. Para os corpos das mercadorias somente o consumo significa o fim definitivo. Se é usado enquanto capital produtivo, a alma do valor sobrevive então inclusive à morte do corpo original da mercadoria pelo seu consumo. Ela renasce na forma das novas mercadorias que o capital investido produz.

Ao contrário, o curso de vida da mercadoria capital monetário arrasta-se pelo período alargado da venda. Essa mercadoria existe somente na situação da sua venda. Ambas as “remessas” unilaterais marcam o início e o fim de seu tempo de vida. No capital monetário, a produção da mercadoria não precede a sua alienação; pelo contrário, nesse tipo de mercadoria ambos coincidem. A mercadoria capital monetário origina-se somente na entrega unilateral de dinheiro do vendedor ao comprador, com a condição juridicamente estabelecida da re-transferência. O dinheiro que o capitalista monetário quer futuramente vender, existe já antes e independentemente da sua venda, mas somente como simples dinheiro, não como mercadoria capital monetário. Essa metamorfose somente se produz ao entrarem em relação o vendedor e o comprador. Cada dia são vendidos milhões e milhões de bens. Mas o encontro entre comprador e vendedor nesses mercados nunca proporcionou um novo habitante ao mundo das mercadorias. No caso dos mercados de dinheiro e capital, ao contrário, trata-se de mercados geradores de mercadorias. Para a mercadoria capital monetário o mercado é portanto não só a instância de realização, mas ao mesmo tempo sua esfera de produção. Mas não só o nascimento da mercadoria capital monetário acontece na circulação, mas também a sua morte. Tanto para o comprador quanto para o vendedor, a soma de dinheiro perde, com o fim da venda, seu valor de uso enquanto capital. A vida dessa mercadoria expira portanto logo que na sua realização encontra seu encerramento e se completa a restituição do capital monetário do comprador ao vendedor, prevista no acordo entre eles.

É suficiente pensar em um crédito para imaginar essa constelação, que soa absurda desde o ponto de vista dos bens. Enquanto o dinheiro jaz ermo no futuro credor, ele é simplesmente dinheiro. Somente com a concessão de um crédito ele se torna mercadoria capital monetário. Os contínuos reembolsos encolhem sucessivamente o montante de capital monetário ainda vendido. Com o pagamento da última amortização, esse exemplar da mercadoria capital monetário desaparece completamente[14]. O capitalista monetário tem seu dinheiro novamente em  mãos e ainda com juros, mas ali não funciona mais como capital monetário, antes, voltou a se transformar em simples dinheiro. Somente uma nova venda pode devolver-lhe o seu valor de uso enquanto capital monetário. Portanto, esse tipo de mercadoria não tem outra forma de existência senão a relação entre comprador e vendedor. Enquanto os bens somente se extinguem no consumo, a mercadoria capital monetário desaparece com o fim da relação entre o comprador e o vendedor. Em outras palavras: enquanto na vida dos bens é o seu consumo que da o acorde final e a realização representa somente uma estação de passagem, para a mercadoria capital monetário a realização é já a estação terminal[15].

A mercadoria capital monetário apresenta uma série de peculiaridades. Todas elas têm um mesmo ponto de partida: a duplicação do valor de uso da mesma soma de dinheiro no comprador e vendedor. Ainda que essa diferença transtoca as relações que regem no mercado dos bens, há um aspecto em que não há nenhuma diferença entre a mercadoria capital monetário e os bens: a quantidade de usuários é irrelevante para o potencial valor de uso de uma mercadoria. Não é possível extrair nem uma gota a mais de uma garrafa de água mineral somente porque duas pessoas e não uma querem encher os seus copos. O valor de uso secundário do dinheiro enquanto capital funcionante potencial, que constitui o fundamento para a metamorfose do capital monetário ele mesmo numa mercadoria, não é exceção. Ele também pode ser realizado uma vez só: “O lucro não se duplica pela dupla existência da mesma soma de dinheiro como capital para duas pessoas” (MEW 25 p.366 [v4 p.251]).

Para que ambos possam usar esse valor de uso do capital monetário, comprador e vendedor da mercadoria capital monetário devem repartir o possível lucro entre eles. Se um capital funcionante opera com seu próprio capital monetário, ele fica com todo o lucro. Se opera com capital emprestado, então o lucro se divide em juros e ganho empresarial. Se essa partição do valor de uso é trivial e banal, mais loucas são suas consequências no lado do valor de troca. Por causa da divisão do valor de uso, a riqueza abstrata que representa a soma de dinheiro inicial, de repente é duplicada. Uma vez para o seu comprador e uma vez para o seu vendedor. Já sabemos por que o comprador tem em suas mãos riqueza capitalista. Ele dispõe do montante original de dinheiro que o capitalista monetário lhe entregou. A soma original de dinheiro foi parar nele. Mas o capitalista monetário não deu o seu dinheiro de presente. Ele trocou o dinheiro por uma obrigação jurídica de dinheiro em relação ao comprador. Essa obrigação monetária representa agora o seu capital, um capital que existe ao lado do capital original. Esse capital tornado imagem espelhada fantasmagórica do capital original, que Marx chamou de capital fictício, desaparece somente com a liquidação das reivindicações do capitalista monetário.

9. Duas formas de imagem espelhada

Assim, a entrega sob condição jurídicamente estabelecida não só transforma em mercadoria o capital monetário potencial; por meio da alienação do capital monetário, origina-se nas mãos do vendedor do capital monetário uma duplicata do capital monetário alienado. Contudo, a questão crucial para a teoria da acumulação ainda não foi respondida: qual é o significado dessa duplicação? Origina-se com ela um capital independente que segue um movimento próprio, ou essa cópia permanece econômicamente passiva e não tem nenhum significado na vida econômica? A duplicata existe unicamente na perspectiva privada das duas pessoas envolvidas na venda da mercadoria capital monetário ou representa também capital adicional considerada a totalidade capitalista? A resposta a essa pergunta depende do tipo básico de duplicata de capital que se tem em mente. Trata-se de duplicatas de capital que não podem deixar a mão do vendedor do capital monetário até o seu resgate final ou das que assumem elas próprias um caráter de mercadoria e circulam nos seus próprios mercados, como por exemplo títulos estatais ou ações?

Na medida em que a obrigação monetária adere inseparávelmente à pessoa do vendedor do capital monetário e não se deixa transferir a um terceiro (i.e. no caso de um empréstimo particular), somente o capital original cedido ao comprador do capital monetário participa do ciclo econômico. A duplicata de capital permanece silenciosa e fixa ao lado do processo econômico até desaparecer finalmente com o retorno do capital monetário ao seu proprietário original. Essa passividade económica não é casual, mas emana do caráter desta duplicata de capital. Ela existe apenas como acordo contratual entre duas pessoas específicas e permanece um fenómeno jurídico externo ao processo económico gerador de riqueza capitalista, da mesma maneira que um contrato matrimonial ou uma reivindicação de herança. Assim, embora do ponto de vista particular do comprador de capital monetário a duplicata de capital represente capital, enquanto garantia de cobrança futura, para o processo capitalista global existe ainda somente um capital, o capital inicial encaminhado.

Muito diferente é a situação assim que a imagem espelhada do capital original assume a forma de uma mercadoria do mercado de capitais. Com a sua transformação em uma mercadoria negociável, a obrigação de pagamento torna-se uma dimensão intra-econômica e ganha importância para a totalidade capitalista. Nesse caso, tanto o capital original quanto a sua imagem espelhada participam da circulação social geral de mercadorias e capital. Enquanto compra de uma promessa de pagamento negociável, a duplicação produzida na venda da mercadoria capital monetário ganha uma qualidade nova: o capital inicial existe agora não somente duplicado, mas duplicado no interior da economia capitalista. Isso tem, por sua vez, consequências de longo alcance para a teoria da acumulação. Considerada a totalidade capitalista, as promessas de pagamento que se encontram em circulação enquanto mercadorias do mercado de capitais representam capital tão plenamente válido quando o capital funcionante. A acumulação real de valor na produção de bens não é, portanto, a única fonte concebível que possa alimentar a acumulação social total de capital. A multiplicação de duplicatas de capital na forma de mercadorias do mercado de capitais pode ser considerada também como portadora do processo da acumulação capitalista global.

Ambos os tipos de duplicatas de capital existem na realidade capitalista. Desde o século XIX, as mercadorias do mercado de capitais tem ascendido, certamente, à forma dominante, enquanto reivindicações monetárias não transferíveis têm tido por muito tempo somente um papel marginal. Mesmo títulos de propriedade pessoais podem atualmente representar um capital mais ou menos negociável, i.e. quando um banco aceita o título de propriedade como garantia. Este é, em certo modo, liquidificado, e participa, assim, da atividade econômica. Outra possibilidade é também a venda de um tal título de propriedade para uma agência de cobrança – uma prática comum diante de dificuldades de reembolso persistentes. Esse deslocamento para as mercadorias do mercado de capitais não é nada acidental: faz parte da lógica do desenvolvimento capitalista. A história da imposição da relação-capital é, como se sabe, idêntica à marcha triunfal da forma mercadoria. Esse processo não se detém diante da mercadoria capital monetário. Por que ele deixaria de lado a duplicata de capital originada da alienação do capital monetário?

Em termos lógicos, enquanto forma desenvolvida da duplicata de capital, a mercadoria do mercado de capitais é o resultado de um processo de mercantilização em duas etapas. Em primeiro lugar, o dinheiro, na sua função de capital monetário, torna-se ele próprio uma mercadoria; em um segundo passo, as duplicatas de capital originadas na venda do capital monetário transformam-se também em mercadoria. A exposição de Marx no livro III d’O Capital interrompe-se na primeira parte desse passo duplo. Na sua análise do capital portador de juros, Marx abstrai da possibilidade da transformação de reivindicações monetárias em um tipo específico de mercadoria. No capítulo 24, que descreve o ciclo do capital portador de juros, ele segue somente a trajetória ulterior do capital monetário entregue. Ele pode fazer isso pois compreende as reivindicações monetárias como dimensões meramente jurídicas – e com isso como títulos de propriedades pessoais – que consequentemente não levam adiante nenhum movimento próprio intra-econômico. No debate marxista, essa passividade econômica é falsamente compreendida como uma determinação geral de qualquer tipo de título de propriedade. Mas, de fato, somente por razões metodologicas Marx assume uma simplificação, típica da sua maneira de argumentar n’O Capital. A prescindência das reais mercadorias do mercado de capitais, permite-lhe considerar a transformação do próprio capital monetário em uma mercadoria e com isso a passagem do mundo do capital funcionante para a  superestrutura financeira.

Não pode ser inferido daí que teria escapado de Marx a existência de títulos de propriedade negociáveis ou que ele não conseguisse ver o seu caráter e a sua dimensão intra-econômica. Isso fica claro o mais tardar na leitura de passagens infelizmente não integradas sistematicamente na exposição, nas quais Marx, no livro III d’O Capital, vai além da sua análise limitada a títulos de propriedade não negociáveis e, por exemplo, examina brevemente a natureza das ações. Longe de negar o peso econômico específico dessas duplicatas de capital, ele sublinha precisamente a sua  vida própria: “Os títulos de propriedade sobre empresas por ações, ferrovias, minas, etc. são […] títulos sobre capital real. Entretanto, não dão possibilidade de dispor desse capital. Ele não pode ser retirado. Apenas dão direitos a uma parte da mais-valia produzida pelo mesmo. Mas esses títulos se tornam também duplicatas de papel do capital real, como se o conhecimento de carga recebesse um valor além do da carga e simultaneamente com ela. Tornam-se representantes nominais de capitais inexistentes. Pois o capital real existe ao seu lado e não mudam ao todo de mãos pelo fato de essas duplicatas mudarem de mãos. Tornam-se formas do capital portador de juros, não apenas por assegurar certos rendimentos, mas também porque, pela venda, pode ser conseguido seu reembolso como valores-capitais. Na medida em que a acumulação desses papéis expressa a acumulação de ferrovias, minas, navios, etc. ela expressa a ampliação do processo real de reprodução, do mesmo modo que a ampliação de uma relação de impostos sobre, por exemplo, bens móveis indica a expansão desses bens. Mas, como duplicatas que são, em si mesmas, negociáveis como mercadorias e, por isso, circulam como valores-capitais, elas são ilusórias e seu montante de valor pode cair ou subir de modo inteiramente independente do movimento de valor do capital real, sobre o qual são títulos” (MEW 25, p. 494 [v5 p.13]).

10. Mercadorias do mercado de capitais – mercadorias de 2a ordem

Em cada venda no mercado de bens estão implicadas duas mercadorias: o dinheiro, a mercadoria geral, e uma mercadoria particular, portadora de um determinado valor de uso. Na cessão de capital monetário em troca de uma obrigação monetária não transferível, a mercadoria geral é vendida enquanto capital potencial, sem se defrontar com uma mercadoria particular. Ao mesmo tempo, o proprietário do dinheiro muda de função. Enquanto no mercado de bens sempre opera como comprador, nessa venda especial o proprietário do dinheiro está do lado dos vendedores. A transformação do título de propriedade numa mercadoria negociável reproduz as relações estabelecidas nos mercados de bens de duas maneiras. De um lado, assim como no mercado de bens, na venda entram em relação recíproca a mercadoria geral e uma mercadoria particular. De outro lado, o dono da mercadoria geral encontra-se novamente na posição habitual de comprador, pois na aquisição do título de propriedade ele comprou uma mercadoria. Contudo, trata-se de um tipo muito específico de mercadoria; portanto não se pode falar de um retorno à relação social predominante no mundo dos bens.

Antes de tudo, essa secção do universo das mercadorias só existe pela transformação do capital monetário em uma mercadoria. A mercadoria que ali se negocia representa portanto um tipo derivado de mercadoria: uma mercadoria de segunda ordem. Enquanto nos mercados de bens transborda uma variedade multicolor de valores de uso diferentes, neste mercado reina uma monotonia absoluta. Nos mercados de dinheiro e de capital movem-se exclusivamente mercadorias com um único valor de uso: sua aquisição promete aos compradores a transformação do dinheiro em mais dinheiro. Mas, acima de tudo, a estranha origem dessa mercadoria se reflete nas suas propriedades particulares. Enquanto imagem espelhada da mercadoria capital monetário ela oferece aos seus potenciais compradores não só o seu valor de uso, mas também mostra toda a estranheza que já descobrimos nessa mercadoria. Trata-se, antes de tudo, de um percurso de vida peculiar: assim como a mercadoria capital monetário,  as mercadorias de segunda ordem só existem em estado de venda. Elas se originam na sua venda inicial e desaparecem na sua realização. Enquanto reflexo do capital monetário originário, as mercadorias de segunda ordem não só têm o seu preço, mas representam capital social válido até a sua vendabilidade ser ameaçada. Com a emissão dessa mercadoria, tal capital forma-se adicionalmente ao capital monetário dos vendedores de capital monetário, e dissolve-se novamente com a sua realização.

11. As dimensões ignoradas do fetiche do capital

Na sociedade capitalista os homens não se relacionam conscientemente entre si, mas os produtos do trabalho medeiam o vínculo social. Marx designa essa inversão como fetichismo. O problema do fetiche pode ser designado como o leitmotiv da crítica da economia política. Já no livro I d’O Capital, Marx se dedica a decifrar o fetiche da mercadoria e a sua forma desenvolvida, o fetiche do dinheiro. No livro III d’O Capital finalmente chega, no contexto de sua exposição, ao capital portador de juros como a última das três formas de fetiche que se superpõem, e que chama de fetiche do capital.

O que todas essas formas de fetiche tem em comum é que a mediação social real permanece oculta para os protagonistas e aparece como uma propriedade das coisas. Esse absurdo, como enfatiza Marx, chega ao seu ponto mais alto no fetiche do capital. A transformação do dinheiro em mais dinheiro, resultado de relações sociais complexas, aparece na forma do capital portador de juros como uma propriedade inerente ao dinheiro:

“O capital aparece como fonte misteriosa, autocriadora dos juros, de seu próprio incremento. A coisa (dinheiro, mercadoria, valor) já é capital como mera coisa, e o capital aparece como simples coisa; o resultado do processo global de reprodução aparece como propriedade que cabe por si a uma coisa […] Na forma do capital portador de juros, portanto, esse fetiche automático está elaborado em sua pureza, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e ele não traz nenhuma marca de seu nascimento. A relação social está consumada como relação de uma coisa, do dinheiro, consigo mesmo […] Torna-se assim propriedade do dinheiro criar valor, proporcionar juros, assim como a de uma pereira é dar peras. E como tal coisa prestadora de juros, o prestamista de dinheiro vende seu dinheiro” (MEW 25, p. 405 [IV p.278-9]).

Nesta passagem frequentemente citada, Marx está olhando para uma dimensão específica do fetiche do capital, a saber, a maneira como se manifesta e deve se manifestar a mediação social na consciência dominante. A relação social de mediação na qual o capital por si só cria capital é ali ocultada. A transformação do dinheiro em mais dinheiro, na realidade resultado de relações sociais totalmente específicas, aparece em seu lugar como sendo resultado do capital nas diferentes formas de manifestação de sua propriedade natural inerente. Assim, torna-se invisível que tão somente a relação do capital funcionante com a força de trabalho e sua potência de criar mais-valia produz valor que se valoriza. Imagina-se, a partir disso, que os meios de produção produziriam valor por si mesmos. Essa ideia fetichista tem dois pontos de apoio. Em primeiro lugar, o comando capitalista sobre a força de trabalho – um ponto já desenvolvido por Marx no Livro I d’O Capital. Porque o capital funcionante incorpora e submete o trabalho vivo, as forças produtivas do trabalho aparecem como forças produtivas do capital. É enquanto um capital com essa potência inerente que aparece no pensamento burguês, que não faz distinção entre valor de uso e valor de troca, nem do valor de uso específico da força de trabalho de ser capaz de produzir valor. No Livro III d’O Capital um ponto de vista adicional entra em cena. O capital funcionante aparece equipado com sua capacidade natural de auto-valorização porque o pensamento dominante projetou neste o movimento particular do capital portador de juros. Com a mercadoria capital monetário abre-se a oportunidade para cada possuidor de dinheiro de multiplicar seu dinheiro sem passar pela produção de bens. Com a existência do capital portador de juros, esse fato é mistificado nas propriedades naturais de todo capital monetário e atribuído também ao capital funcionante, cuja carreira começa e acaba sempre na forma dinheiro.

Embora essa crítica da falsa consciência necessária seja também adequada e importante, o fetiche do capital tem ainda uma dimensão mais ampla, posta mas não elaborada na exposição de Marx. Nossa análise torna visível essa dimensão: a aparição das mercadorias do mercado de capitais torna o fetiche do capital um fetiche real. Naturalmente o capital não pode se multiplicar por si mesmo, mas tão somente como resultado de uma relação social. Mas a extração de mais-valia através da produção de bens de maneira alguma é a única relação social da qual pode surgir capital. A relação social entre o emissor e o vendedor de uma mercadoria de segunda ordem, nessa sua exclusiva maneira louca, acaba sendo também criadora de capital. Com a proliferação dessas mercadorias de segunda ordem, o capital criou para si uma fonte de acumulação de capital independente de uma anterior valorização do valor, não só do ponto de vista do capital individual mas também considerada a totalidade social. Assim, o fetiche específico das mercadorias de segunda ordem torna o fetiche do capital uma força material tangível, com amplas consequências teóricas: a aparição desse novo tipo de mercadorias quebra a coincidência entre a acumulação de valor e a acumulação de capital!

Infelizmente o debate marxista tem fracassado até hoje em continuar desenvolvendo a crítica da economia política de Marx, e não tem consciência alguma desse segundo momento do fetiche do capital. Em lugar disso, apropria-se do axioma da economia política: acumulação de capital e acumulação de valor são o mesmo. Enquanto se enfrenta o regime de acumulação dominado pelo mercado financeiro com essa análise incompleta do fetiche do capital, o seu mistério permanece um livro com sete selos. Pior ainda: a referência à crítica do fetiche, amplamente ignorada pela vulgata  marxista, pode servir inclusive como uma justificativa teórica superior para ignorar o processo capitalista real. Elmar Altvater proclama com toda a seriedade ex cathedra: “A ideia frequente de um desacoplamento entre a economia monetária e a economia real é uma grande ilusão, devida ao brilho ofuscante do fetichismo do dinheiro e do crédito – como se os altos rendimentos das relações financeiras viessem de si mesmas, como se pudessem ser recolhidos dos cofres dos Bancos, e não devessem ser produzidos na economia real” (Altvater, 2008). Com essa referência à crítica marxiana do fetichismo, Altvater sugere que ele critica a visão predominante desde um ponto de vista da crítica radical da economia política. Na verdade, ele representa aquela vulgata do marxismo que nunca levou a sério a crítica do fetichismo marxiana. O ponto central é que a mistificação da “economia real” enquanto suposta única fonte de criação de capital, deixa o argumento da Altvater em conformidade total com os contos de ninar dos manuais de economia política. De fato, ambos igualam a acumulação de valor e a acumulação de capital sem mais delongas. O fetiche do capital enquanto fetiche da mercadoria de 2a ordem não consiste na falsa aparência, segundo a qual o capital poderia também se formar sem uma valorização anterior por meio da produção de bens; em vez disso, do fetiche específico das mercadorias do mercado de capitais resulta que a formação de capital pode se descolar realmente da produção anterior de valor.

A dimensão adicional do fetiche produzida com a aparição das mercadorias do mercado de capitais pode ser resumida em poucas palavras. Com a emissão de mercadorias do mercado de capitais produz-se uma inversão na sequência temporal da produção de valor e mais-valor, de um lado, e de formação de capital, de outro lado. Com a colocação bem-sucedida de uma mercadoria de 2a ordem no mercado de capitais, o valor futuro apresenta-se já hoje enquanto capital, considerada a totalidade social. Trabalho produtivo ainda não efetuado de maneira alguma, e que possivelmente nunca o será, assume a forma de capital. A formação de capital não se baseia aqui portanto na produção de valor mas resulta da antecipação de valor.

No jargão da Bolsa diz-se ocasionalmente que nos mercados de dinheiro e de capital negociar-se-ia com o “futuro”. Nessa frase aparece uma pista do segredo escondido por trás da acumulação de capital baseada na indústria financeira. A economia política, disciplina responsável pela totalidade econômica, não é contudo capaz nem de começar a compreender, com as suas categorias rudimentares, a reversão temporal que se revela nessa frase. A causa está realmente ao alcance da mão. A economia política iguala a riqueza abstrata com a simples riqueza de bens. Mas no mundo dos bens reina inexoravelmente a eterna lógica temporal: para que algo seja utilizado é preciso que antes tenha sido fabricado. Ninguém pode instalar no seu computador um programa ainda não escrito, ou morar numa casa ainda em estágio de planejamento. Nada muda nessa ordem temporal pelo fato do capital se apropriar da produção de bens e transformá-la na sua produção de mercadorias. A riqueza material-sensível transformada em valor de uso das mercadorias existe somente ao fim da produção. Um tapete que será tecido na próxima semana representa tão pouco um valor de uso quanto um carro montado pela metade. Porque o valor de uso é afinal o portador do valor de troca, aplica-se evidentemente também essa sequência temporal ao conteúdo real das riquezas existentes na forma de bens. No movimento do capital funcionante reproduz-se por conseguinte a sequência temporal reinante no mundo das riquezas materiais-sensíveis. Primeiro as mercadorias devem ser produzidas e conseguir ser vendidas, só então pode ser acumulado o valor recém-criado. Desde um ponto de vista que iguala a riqueza capitalista global com a riqueza total dos bens, compreende-se por si mesmo que o processo de acumulação capitalista geral só possa funcionar de acordo com esse modelo. Um incremento do capital social total baseado em valor ainda não produzido parece tão ridículo quanto a ideia de que poderia-se colher peras de uma árvore ainda não plantada.

Mas a riqueza abstrata é afinal algo bem diferente do que a simples riqueza de bens. Na natureza a colheita de peras encontra-se evidentemente só no final de um longo processo que começa com o plantio de sementes de pereiras. No mundo do fetiche das mercadorias de 2a ordem aplicam-se outras leis. Ali este absurdo é realidade. Os mercados de capitais são povoados exclusivamente com representantes dessa flora maravilhosa na qual a fruta se encontra disponível para ser colhida e comida antes que as sementes de pereira sequer tenham criado raízes.

 


 

[1] Esse indicador atual já distorce o desenvolvimento real na medida em que na determinação das dimensões comparativas dos PIB globais inclui também os lucros e rendimentos obtidos no setor financeiro. Esse “valor agregado” dos bancos e seguradoras teria que ser descontado.

[2] Esse tipo arcaico de título de dívida, originado ainda imediatamente do processo de circulação dos bens, extingui-se nesse meio tempo.

[3] O monetarismo representa essa confusão com particular vigor. Um dos pressupostos básicos dessa abordagem é que se deve deixar de lado o “véu do dinheiro” para chegar aos processos de fato essenciais da economia de mercado. Mas também os adversários keynesianos compartilham esses pressupostos. Afirma-se, assim, numa bibliografia básica: “O dinheiro é um meio para adquirir coisas, mas não um fim em si. O conto do Rei Midas na qual o avarento esquece os bens que ele pode comprar com ouro, e espera que tudo o que ele toque se transforme em ouro (inclusive a sua filha predileta), mostra que esse meio pode se perverter também como um fim em si” (Samuelson, 1981, p. 78). Na verdade, no entanto, é claro que o fim em si da transformação do dinheiro em mais dinheiro é subjacente a toda a produção de bens no capitalismo: não é uma perversão da economia de mercado, mas constitui precisamente a sua essência.

[4] As mercadorias do mercado de capitais compartilham a propriedade de ter um valor de uso meramente social com outra mercadoria que tem um papel chave para o modo de produção capitalista, isto é com a mercadoria força de trabalho. O seu valor de uso particular consiste na potência de criar uma massa de valor maior que os seus próprios custos de reprodução. Esse é também um valor de uso completamente não-sensível.

[5] Diferentemente do que afirma a economia política, a existência de papel moeda e de moeda escritural de maneira alguma põem em questão o caráter de mercadoria do dinheiro. Se, como Marx constatou em O Capital, a mercadoria-dinheiro pode, em determinadas funções (i.e como meio de circulação), ser substituida por um representante, isso de maneira alguma torna o sistema monetário um sistema de signos. Esses signos do dinheiro não se representam a si mesmos, eles devem a sua capacidade de representação substitutiva da riqueza abstrata e a decorrente validade social à sua referência à mercadoria-dinheiro real. Ainda quando, como no sistema monetário contemporâneo, somente sucedâneos do dinheiro são utilizados para realizar transações privadas, isso não significa a emancipação do sistema monetário da existência de uma mercadoria-dinheiro e a abolição desse vínculo; a mercadoria geral real só desaparece das relações dos sujeitos mercantis particulares, para se concentrar nos bancos emissores responsáveis pelos sucedâneos do dinheiro. No sistema de cobertura do ouro do século XIX, a dependência do “valor” derivado do signo-dinheiro utilizado como meio de pago legal e a mercadoria-dinheiro desse tempo – o metal precioso – eram ainda imediatamente tangíveis. Naquele momento, os bancos emissores eram obrigados a trocar cada nota, sob demanda do seu proprietário, por uma quantidade determinada de ouro. O ouro monetário que se encontrava de posse dos bancos emissores servia como base do sistema monetário. No curso do século XX, o ouro teve que ceder sucessivamente o papel de rei das mercadorias. Fora as reservas remanescentes de ouro monetário, a maior parte das reservas monetárias adquiridas pelos bancos centrais como parte da sua “criação de dinheiro” ou depositada neles como garantia, consiste em mercadorias do mercado de capitais. Diferente das notas convertíveis por ouro do século XIX, a validade dos meios de pagamento legal na nova mercadoria geral não está mais imediatamente acoplada ao valor incorporado nas reservas de ouro. Mas isso de maneira alguma torna irrelevante a diferença entre o mero signo dinheiro e a mercadoria geral e não faz do signo dinheiro um dinheiro auto-sustentado que flutua livremente. Após a demonetização do ouro, a validade do papel dinheiro atual depende de se as mercadorias do mercado de capitais adquiridas pelos bancos centrais enquanto universalidade abstrata monetária podem ou não representar riqueza abstrata. No entanto, esse vínculo só pode ser examinado com precisão somente depois de ter esclarecido a questão fundamental discutida neste texto sobre o estatuto das mercadorias do mercado de capitais no sistema da riqueza abstrata.

[6] http://wirtschaftslexikon.gabler.de/Definition/kapital.html

[7] Infelizmente fica fora do escopo deste texto tratar detalhadamente desse modo de formação de capital e o seu estatuto no sistema geral da riqueza capitalista, embora ela tenha novamente um papel importante (palavra-chave “grilagem”). Essa tarefa deve ficar para um trabalho posterior.

[8] O ponto de partida lógico da exposição de Marx n’O Capital é a estrutura central da sociedade capitalista, ou seja, a forma específica de relação entre produtores privados isolados. Por causa da dissolução da sociedade em uma sociedade de produtores privados isolados, as varias coisas que os homens devem criar para satisfazer as suas necessidades transformam-se em mercadorias. Como desenvolvido na seção 1 do livro I d’O Capital, nessas mercadorias objetifica-se o caráter privado do trabalho social e isso faz delas portadoras de valor. Ao introduzir a mercadoria força de trabalho e examinar o seu valor de uso particular, a sua capacidade de pôr valor para além do seu custo de reprodução, Marx pode, na seção seguinte, passar do valor para o valor que se autovaloriza, para o capital. Nesse passo de desenvolvimento lógico, da exposição do capital produtor de bens em geral, finaliza a parte d’O Capital publicada pelo próprio Marx. No livro II e na primeira parte do livro III, Marx tem em conta outras duas características do modo de produção capitalista. Por um lado, os bens não são somente produzidos, eles devem também circular, o que se manifesta entre outras coisas em uma separação do capital funcionante em capital industrial e capital comercial. Por outro lado, o capital produtor de bens existe como muitos capitais cuja reprodução entrelaza-se tanto materialmente quanto em termos do valor. Quanto ao lado do valor de troca, isso resulta, devido à diferente composição orgânica dos diversos capitais individuais, entre outras coisas, no infame problema da transformação. A proporção de mais-valia total que um capital individual pode tomar para si não depende unicamente do capital variável utilizado respectivamente, mas o decisivo é sobretudo o tamanho do capital individual. Com isso, a mais-valia não aparece diretamente na superfície do processo social, antes apresenta-se ali como uma grandeza diferente, como lucro. Também o valor de troca dos bens passa por isso. O respectivo valor de troca não é nada decisivo para a proporção quantitativa pela qual os bens são trocados pela mercadoria geral, o dinheiro, como Marx tinha assumido ainda no livro I d’O Capital. Os preços dos bens oscilam, antes, ao redor de outra grandeza, da soma do preço de custo e da taxa média de lucro. Em todos esses passos de concreção, no entanto,  ainda se mantêm um suposto do livro I d’O Capital. Até o final do livro III d’O Capital, a exposição do Marx assume que além da mercadoria geral, o dinheiro, há ainda apenas dois tipos de mercadorias no universo das mercadorias: a força de trabalho e as mercadorias originadas da sua utilização. Somente depois de cerca de 1600 páginas é ultrapassado esse horizonte do problema com as seções 5 e 6 do livro III.

[9]          Pela mesma razão Marx pode e deve se abstrair desse valor de uso na medida em que ele considera o ciclo do capital funcionante, ou seja nas primeiras 1600 páginas da sua obra principal.

[10]        Ao assumir a forma do dinheiro, o valor de um bem alcança a condição da trocabilidade universal. Enquanto meio de compra universal, o dinheiro pode ser trocado por todas as mercadorias que se encontram no mercado. No entanto, esse valor de uso não precisa ser usado imediatamente, a trocabilidade universal do dinheiro estende-se também a mercadorias particulares que ainda não entraram no mercado; isso implica que uma determinada soma de dinheiro também amanhã e depois de amanhã pode servir como meio de compra ao seu proprietário. Depende dele se utiliza o valor de uso enquanto meio de compra imediatamente ou numa data posterior. Nesse caso, o uso temporário do dinheiro enquanto meio de compra potencial disponível a qualquer momento adia o seu uso enquanto meio de compra real. O dinheiro ainda não levado ao mercado serve como meio de conservação do valor. O valor de uso do dinheiro enquanto meio de conservação do valor é dependente do valor de uso enquanto meio de compra e subordinado a ele. O dinheiro que perde total ou parcialmente o seu valor de uso enquanto meio de compra inevitavelmente perde também o seu valor de uso enquanto meio de conservação do valor. Isso é diferente quando se trata do uso do dinheiro enquanto meio de cálculo e medida de valor. Nessa transferência subordinada de valor de uso, está ausente de fato a transferência de uma pessoa a outra. No entanto, isso se deve ao caráter especial, não-exclusivo desse valor de uso. No uso do dinheiro enquanto meio de cálculo e medida de valor é usado idealmente dinheiro meramente imaginado. O uso ideal de dinheiro meramente imaginado não pressupõe no usuário uma propriedade real do dinheiro e portanto está sempre accesível da mesma maneira para todos os sujeitos-mercadoria e sujeitos-dinheiro. Mas essa exceção somente confirma a regra: nada pode funcionar como mercadoria sem transferência de valor de uso.

[11]        Em uma sociedade em que a mercadoria é a forma onipresente de riqueza, é inevitável que também o capital se torne ele mesmo uma mercadoria. É por isso que Marx não por acaso só tinha desprezo e escárnio em relação a Proudhon, o antepassado da hoje novamente popular crítica dos juros. Quem aceita a mercadoria enquanto forma natural da riqueza e ao mesmo tempo critica o fato do dinheiro virar uma mercadoria quer se lavar sem se molhar.

[12]        Essa é também a razão pela qual Marx introduziu para esse processo a noção de “realização”.

[13]        Geralmente, essa segunda transferência realiza-se em vários passos e não de uma vez só. Se o capital monetário é vendido só temporariamente, ou seja, alugado, como no caso do crédito, então a transferência unilateral se decompõe em dois elementos: na devolução da soma de dinheiro original (amortização) e no pagamento de juros. Se a cessão do capital monetário é permanente, basta pensar na compra de ações de uma empresa, o elemento de reembolso é suprimido. Em compensação, flui dinheiro para o vendedor do capital monetário permanentemente de forma periódica. Ele recebe uma parte dos lucros correntes da empresa.

[14]        A expressão amortização [Tilgung] já exprime bem o que significa na mercadoria capital monetário a realização, isto é, a sua anulação e portanto o seu desaparecimento.

[15]        Nos bens, a realização é idéntica à troca, isto é, ao pagamento; na mercadoria capital monetário, é identica à transferência unilateral do comprador ao vendedor. A transferência unilateral introdutória do vendedor ao comprador cria a mercadoria capital monetário.


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