Teses sobre a administração neoliberal da crise e as perspectivas da emancipação social
de Norbert Trenkle
Tradução de Javier Blank do texto original: “Antipolitik in Zeiten kapitalistichen Amoklaufs. Thesen zur neoliberalen Krisenverwaltung und den Perspektiven soziales Emanzipation” em Lohoff et al (orgs.). Dead men working. Münster: UNRAST-Verlag, 2004.
1.
Desde o seu início a compulsão inerente à lógica capitalista de valorização de transformar todas as relações sociais em relações mercadoria-dinheiro provocou resistência. Vinte anos de hegemonia neoliberal e a propaganda segundo a qual não há alternativa à forma existente de sociedade não puderam suprimir esse impulso. A experiência de uma vida sujeita às leis do mercado total e da concorrência onipresente é intolerável demais; a espiral mundial da miséria posta em marcha pelo processo de crise capitalista é insuportável. No início do século 21, o surgimento de uma nova conjuntura de lutas sociais pode abrir novas perspectivas para a resistência contra a sociedade global da mercadoria. No entanto, não cabe um otimismo exagerado. Levando em conta a mobilização mundial e a simultaneidade dos protestos, seja na Bolivia, na Argentina, na França ou na Itália, assim como a presença mediática dos Fóruns Sociais, por exemplo, e as grandes demonstrações do movimento anti-globalização, é antes surpreendente como foram pequenas as conquistas materiais. Na Argentina, o governo foi derrubado com o lema: “que se vayan todos”; otimistas interpretaram isso como uma mudança radical de consciência, como uma crítica fundamental do Estado e um abandono da ilusão política. No entanto, um ano depois as eleições presidenciais registraram um comparecimento surpreendentemente alto e o novo presidente Kirchner desfruta, pelo menos por enquanto, de uma popularidade muito alta, embora ele continue basicamente a política neoliberal anterior. No entanto, ele conseguiu distrair a atenção, por um lado, trazendo à tona de maneira espetacular o confronto com os crimes da ditadura militar e, por outro, com a promessa espalhada aos quatro ventos de, através de uma política neo-keynesiana, desenvolver o mercado interno e fortalecer novamente a indústria nacional. Embora essa promessa seja completamente infundada em face da realidade da crise, ela mexe com um anseio nostálgico de um passado transfigurado de força econômica e apela a uma vontade desesperada de, diante da falta de perspectivas, acreditar nesse conto de fadas.
Também na Bolívia a mudança forçada de governo provocou apenas uma mudança na retórica e na política simbólica. Se os depósitos de gás natural não foram (por enquanto) vendidos a preços baixos devido ao protesto que esse projeto avivou, fora isso, o novo presidente Mesa está tentando canalizar o descontentamento de maneira populista, por exemplo, jogando a carta nacionalista e retomando a velha demanda ao Chile de ter acesso ao mar, como se isso resolvesse os problemas econômicos e sociais do país. Finalmente, as numerosas greves e manifestações na França e na Itália contra os intensificados cortes sociais praticamente não deram em nada, embora tenham sido levadas adiante e apoiadas por grandes setores da população. Não resultou em mais do que algumas correções cosméticas superficiais às políticas neoliberais. Raramente a desproporção entre a mobilização dos protestos e os resultados alcançados foi tão pronunciada.
Mas seria restrito demais mensurar as lutas sociais simplesmente pelos seus resultados políticos imediatos. Especialmente depois de longos anos em que a resistência e o protesto social pareciam estar paralisados, as próprias experiências de luta e os efeitos de auto-organização e solidarização que lhes correspondem (também e não em último lugar no plano do quotidiano) ganham um valor inestimável. A quebra, nos movimentos sociais, da individualização e da concorrência cotidiana representa por si só um avanço em relação aos muitos anos de calma oposicionista. E também os sucessos materiais diretos, especialmente na Bolívia e na Argentina, vão muito além da mudança forçada das lideranças políticas. A apropriação colectiva dos meios de subsistência e de produção, a ocupação de fábricas, edifícios e terras, a criação de centros de comunicação e cultura autónomos, a constituição de cooperativas e redes de auto-ajuda, tudo isso não só alterou de um modo fundamental o quotidiano dos implicados, mas igualmente criou uma base para a mobilização da resistência e para a continuação da luta em um novo patamar.
No entanto, a maneira como irão se desenvolver os conflitos sociais no futuro próximo, se eles de fato ganharão uma nova qualidade emancipatória, não está de maneira alguma determinada. Isso depende não em última instância da maneira em que a ineficácia evidente das lutas até o presente se refletirá no plano político e os desdobramentos disso. Tem prevalecido em certa medida a ideia segundo a qual os conceitos clássicos de emancipação, que sempre de uma forma ou de outra visaram a toma do poder do Estado, tornaram-se obsoletos. Poder-se-ia falar, de certo modo, de uma tendência anti-política em parte espontânea e em parte consciente. Mas essa tendência é contraditória; a relação com a política e com o Estado permanece extremamente ambígua inclusive naqueles movimentos que não aspiram às alavancas do poder político. Persiste teimosamente a ideia segundo a qual a alteração da correlação de forças sociais permitiria uma ‘outra política’, embora ninguém saiba realmente onde isso acabaria. Donde também a forte suscetibilidade a um populismo que reside na simulação de tal política, depois desta ter perdido sua base real. Ora, esse espectro de ilusão política obscurece a visão de uma perspectiva de emancipação social que só pode existir na abolição das compulsões capitalistas do trabalho, do dinheiro, do mercado e do Estado.
2.
A referência positiva à política por parte dos movimentos de protesto social, especialmente da esquerda, é um produto histórico do processo de ascensão e imposição da sociedade moderna produtora de mercadorias. Depois de ter desempenhado um papel central na instalação do capitalismo no início da Modernidade, promovendo a monetarização da sociedade, criando um espaço territorial e legalmente seguro para a circulação de mercadorias e ajustando à força as pessoas para seu funcionamento como sujeitos do trabalho e do mercado, mais tarde o Estado foi assumindo progressivamente a tarefa de garantir e assegurar as condições gerais da valorização de capital. Ao mesmo tempo, o Estado representava uma instância que impunha certas restrições à interação desenfreada das forças do mercado e, a esse respeito, tornou-se também o destinatário das reivindicações sociais. No entanto, é claro que o Estado nunca foi uma entidade extra-capitalista, antes, enquanto o outro pólo do mercado, condição de existência de uma sociedade mercantil generalizada. Ele nunca foi capaz de anular ou substituir as leis da produção de mercadorias enquanto tais, mas sempre só de regulá-las e guiá-las até certo ponto. O capitalismo nunca teria sido capaz de se estabelecer como um sistema social abrangente sem essa regulamentação estatal, pois a partir do dinamismo inerente à concorrência, tende a se autodestruir e a destruir os fundamentos sociais e naturais da vida humana. Contudo, a capacidade do Estado e da política de regular e limitar a lógica de mercado estava ligada a uma condição histórica muito específica, varrida pela terceira revolução industrial. O salto quântico no desenvolvimento das forças produtivas, baseado na micro-eletrônica, por um lado, rompeu irrevogavelmente os limites da economia nacional e promoveu a transnacionalização das estruturas de produção, organização e comercialização do capital. Assim, o processo de criação do mercado mundial, inerente à compulsão capitalista de expansão e crescimento, culmina como um espaço de produção e circulação de mercadorias livre de obstáculos. Por outro lado, o enorme aumento da força produtiva leva a uma profunda racionalização econômica e automação nos setores centrais de valorização de capital e, portanto, a um deslocamento massivo da força de trabalho viva. Mas como o único propósito do capitalismo é fazer do valor (representado em dinheiro) mais-valor, e o conteúdo dessa categoria fetichista é o “trabalho abstrato”, o processo de deslocamento da força de trabalho viva põe em movimento um processo de crise fundamental que mina as bases da socialização capitalista.
Essa crise, na qual culminam historicamente as contradições internas do capitalismo, não deve ser entendida certamente como um “crash” ou “colapso” único. Pelo contrário, é um processo de longa duração que começou há cerca de três décadas e continuará ainda por muitas outras. Ele se apresenta como uma espiral descendente de destruição e aniquilação dos fundamentos sociais e naturais da vida, que só pode ser detida por um movimento emancipatório transnacional, que rompa com o sistema devorador de homens da moderna produção de mercadorias. Paradoxalmente, o início desse processo de crise capitalista fundamental coincide historicamente com a finalização da criação do mercado mundial e, portanto, com a instauração global da sociedade da mercadoria como forma social dominante. A forma capitalista torna-se universal, mas seu único conteúdo, a substância do trabalho, é simultaneamente derretido. É precisamente esse paradoxo de uma forma geral que destrói seu conteúdo que confere à crise seu brutal poder destrutivo e sua forma de desenvolvimento específica. Por um lado, todas as formas não-capitalistas de reprodução social e material foram quase completamente destruídas, razão pela qual, em princípio, todas as pessoas no mundo todo são forçadas a vender sua pele no mercado a quem quer que seja se quiserem sobreviver. Por outro lado, no entanto, a maioria delas são supérfluas para o capitalismo porque a sua força de trabalho não é necessária para a valorização. O resultado disso é o aumento da pressão sobre aqueles ainda integrados nas cadeias de valorização para trabalhar mais duro e por mais tempo, enquanto uma parte crescente da população mundial é excluída e marginalizada. Expressão disso é a expansão acelerada do trabalho precário no nível da miséria absoluta e um crescimento cada vez mais rápido do “setor informal”, que não têm uma qualidade fundamentalmente diferente do setor “formal”, mas representa apenas a forma de crise na qual o capitalismo se faz realidade para a maior parte da humanidade[1].
3.
Como o atual processo de crise não consiste apenas em uma crise econômica cíclica ou em uma mudança estrutural temporária na história do desenvolvimento capitalista, mas em uma ruptura fundamental no nível da forma social básica, todas as tentativas políticas de uma gestão da crise estão começando a falhar. Pois a política, como forma historicamente específica de ação social geral vinculada à sociedade produtora de mercadorias, depende também de condições estruturais muito específicas, em particular do arcabouço institucional do Estado-nação (embora também exista política internacional, ela diz respeito, como o termo já aponta, à regulação mais ou menos violenta e hierárquica das relações entre Estados-nação). O processo de crise mina os fundamentos da sociedade capitalista e ao mesmo tempo as condições de existência do Estado-nação, e quebra o quadro de referência da política, torna-se esta cada vez mais impotente.
Evidentemente, o grau de decomposição do Estado e da decorrente impotência da política depende em grande medida da posição de cada país na hierarquia do mercado mundial. Nas regiões de catástrofe especialmente atingidas pela crise, em grandes partes da África e da Ásia, assim como em certas regiões da Europa Oriental e da América Latina, o Estado já se tornou uma concha vazia no interior da qual bandos rivais lutam pelos remanescentes da riqueza social. Enquanto isso, nos países ocidentais tais tendências vêm se desenvolvendo sob a superfície de uma estatalidade ainda bastante estável. É sintomática a esse respeito a crescente fusão do aparelho de Estado com o crime organizado e um agravamento da polarização sócio-económica regional que é frequentemente carregada etnicamente e representa o início de uma decomposição estatal. Os Estados, aparentemente fortes, estão encurralados economicamente por dois lados. Por um lado, com o derretimento da substância do trabalho, encolhe a massa de valor que os Estados podem absorver através dos impostos e taxas para financiar suas atividades. Além disso, a transnacionalização torna mais fácil para as empresas escaparem do controle estatal, o que era possível de maneira rudimentar sob as condições de uma economia nacional razoavelmente coerente. Em vez disso, os próprios Estados estão se tornando cada vez mais dependentes do capital e devem fazer tudo o que puderem para estabelecê-los em seu território. Esta absurda “concorrência por localização” é cada vez mais duramente travada não apenas entre Estados, mas também entre regiões e cidades. O resultado é uma progressiva incapacidade de ação e manobra da política, que pode intervir cada vez menos na regulação das relações de mercado, e é degradada por sua vez a uma variável dependente dos movimentos do mercado mundial.
A perda de poder do Estado em relação ao processo auto-dinâmico da crise capitalista é frequentemente explicada como sendo o resultado de uma estratégia política ou orientação específica, que responde ao nome de neoliberalismo, e que foi imposta por poderosos grupos de interesse. Essa visão, como é encontrada especialmente no contexto do neo-keynesianismo e do antigo marxismo da luta de classes, cumpre de fato apenas o propósito ideológico de manter a antiga crença na viabilidade política – ou, em outras palavras, do primado da política. Portanto, ele dependeria apenas da construção de um contra-poder social, que se imporia numa “outra política” sob relações de forças sociais transformadas.
Essa perspectiva política obscurece o dramatismo do desenvolvimento em curso e obstrui, portanto, a visão de uma necessária re-orientação dos movimentos emancipatórios. No entanto, ela tem um núcleo real na medida em que – embora distorcidamente – se refere à dimensão subjetiva da ação no processo de crise. O curso cego do desenvolvimento histórico da autodestruição do capitalismo não se impõe em suas conseqüências automática e imediatamente em todas as estruturas e áreas sociais, mas deve ser mediado por ações e decisões sociais e políticas, assim como pela mudança de padrões ideológicos de percepção. A política desempenha mais uma vez um papel importante neste processo de mediação. Mas ele não consiste mais na regulação dos processos socio-econômicos, mas apenas na destruição irrevogável de seu próprio campo de referência. A tão louvada “recuperação da capacidade de agir”, tagarelada por todos os ideólogos neoliberais ao se queixarem da “paralisia da política” do Estado de bem-estar social e da burocracia, consiste apenas em uma empresa de demolição das estruturas (sociais) do Estado. Dessa maneira, a política remove ela mesma o chão embaixo dos seus pés. O que então resta dela, na melhor das hipóteses, é uma fachada de pós-política, por trás da qual progridem o asselvajamento e a decomposição das relações sociais.
É claro que uma tal “política” meramente destrutiva de auto-liquidação nunca teria prevalecido em escala global se fosse simplesmente o instrumento de poderosos interesses capitalistas. Pelo contrário, ela só se explica como uma forma específica de processamento da pressão objetiva exercida pelo processo de globalização e de crise. Somente o fim do fordismo, o desmembramento da coerência relativa entre Estado nacional e economia nacional e a intensificação da concorrência no mercado mundial (que, entre outras coisas, destruiu os fundamentos do modelo de desenvolvimento orientado ao mercado interno do Terceiro Mundo e do “socialismo real” do capitalismo de Estado) criaram o terreno sobre o qual o neoliberalismo poderia conquistar sua hegemonia. No entanto, seus “conceitos políticos” consistem somente em executar “conscientemente” o desencadeamento da concorrência imposto pelo processo de crise e remover todas as barreiras que ainda possam estar no caminho. Isto inclui, por exemplo, a quebra de barreiras comerciais (direitos alfandegários, restrições de importação, etc.), a privatização da infra-estrutura, o corte dos sistemas sociais, a desregulamentação do mercado de trabalho e assim por diante.
Tais medidas, evidentemente, são sempre controversas e contestadas e devem ser aplicadas contra resistências mais ou menos severas e, se necessário, também pela força. Isso, por sua vez, requer uma personagem que não se coíba de fazer o negócio sujo: a junta militar no Chile, que com seu golpe contra o governo socialista em 1973 abriu o caminho para o primeiro “experimento” neoliberal, ou uma Margaret Thatcher quem, entre outras coisas, conseguiu quebrar o poder do movimento sindical britânico – para citar apenas dois exemplos. Em nível global, é claro, instituições como o FMI e o Banco Mundial também desempenham um papel importante na abertura de mercados, privatizações e cortes de benefícios sociais com seus infames “programas de ajuste estrutural”.
Não que o neoliberalismo tivesse uma ideia clara dos processos econômicos básicos auto-dinâmicos. Pelo contrário, ele é ideologia bem no sentido de Marx: falsa consciência necessária. Como tal, no entanto, ele cumpre certamente uma função orientadora para a gestão da crise capitalista. Trata-se fundamentalmente de um corpo de pensamento muito primitivo que nem sequer atende aos padrões mais simples da ciência positivista-burguesa. Já nos anos 1960, Hans Albert, uma das principais mentes do positivismo moderno, observou que a economia neoclássica (o fundamento “teórico” do neoliberalismo) perseguia essencialmente um “modelo platónico” puro que não afirmava nada sobre a realidade empírica. Mas pode-se falar também de um sistema de delírios que, como tal, corresponde à fúria homicida da autodestruição capitalista. Paradoxalmente, o neoliberalismo é funcional ao gerenciamento das crises porque ofusca o processo de crise, e consequentemente desvanece a realidade, negando-a teoricamente. Precisamente isso predestina-o como ideologia básica de uma época em que a dinâmica desencadeada do capitalismo conhece apenas uma direção: a aniquilação do mundo.
4.
Como se sabe, os problemas estruturais do capitalismo resultam apenas, segundo os ideólogos neoliberais, do fato de que o Estado tem muita influência no mercado, e através de todo tipo de regulações – em particular, é claro, dos direitos trabalhistas e das normas ambientais – os efeitos supostamente benéficos da livre concorrência são bloqueados. Portanto, se a sociedade seguisse a receita de fazer recuar o Estado e liberar as forças do mercado, supostamente inauguraria uma nova era maravilhosa de crescimento, prosperidade e trabalho em massa. Para além do fato de que a promessa de transformar completamente todos os impulsos humanos em mercadorias e dinheiro já representa uma verdadeira ameaça e uma concepção horrorosa, deve-se notar que o neoliberalismo tem feito o ridículo – avaliado inclusive com seus próprios padrões. Também no sentido vulgar de um desacordo entre afirmação e realidade, trata-se de pura ideologia. Seus alegados “sucessos” econômicos (crescimento econômico, criação de novos empregos, etc.) não passam de fraude. Em primeiro lugar, eles se concentram em algumas regiões centrais do mercado mundial e inclusive ali restringem-se a segmentos cada vez menores do território e da população, enquanto do outro lado cada vez maiores parte do planeta tornam-se de fato supérfluas para a valorização de capital; cortadas praticamente do fluxo de mercadorias e dinheiro, são lançadas em uma espiral descendente de indigência.
Em segundo lugar, mesmo nas regiões e segmentos sociais não tão duramente atingidos por enquanto pelo processo de crise, o “sucesso” econômico não é o resultado de algo como um livre desenvolvimento das forças do mercado e uma retirada do Estado da economia. De maneira alguma resultam de uma implementação da doutrina neoliberal pura mas são, de fato, o resultado de permanentes intervenções estatais mega-keynesianas nos ciclos econômicos. No decorrer das décadas de 1980 e 1990, os gastos estatais não foram reduzidos nos países que ainda participavam em um grau significativo no mercado mundial; ao contrário, aumentaram ou, pelo menos, permaneceram estáveis em relação ao produto nacional bruto. Isso vale especialmente para os países centrais do neoliberalismo, os EUA e a Grã-Bretanha. Em ambos os países, a chamada quota do Estado (a participação do Estado na produção econômica total) é praticamente tão alta hoje quanto na década de 1970, apesar de a maior parte da infra-estrutura ter sido já privatizada e de restarem apenas algumas poucas ruínas dos sistemas sociais.
No entanto, por trás dessa participação do Estado na economia, quantitativamente constante, oculta-se uma ruptura qualitativa estrutural decisiva em relação à era do fordismo do pós-guerra, que é característica do desenvolvimento do processo de crise capitalista e de sua administração política. Em primeiro lugar, os gastos estatais são cada vez mais financiados por meio de empréstimos. Isso é também exatamente o contrário do que o neoliberalismo propaga. Ele sempre reivindicou a meta de um orçamento equilibrado e criticou o Estado interventor fordista por causa de sua dívida, que representava migalhas comparada com o status atual (em 1975, o total acumulado naquele momento da já então escandalosa dívida pública dos Estados Unidos ascendia a cerca de 540 bilhões de dólares; entretanto, somente no ano de 2003 o governo dos EUA produziu um déficit orçamentário de quase a mesma quantia). A razão econômica estrutural desse desenvolvimento é simplesmente que a acumulação de capital, estagnada devido ao enfraquecimento progressivo da substância do trabalho e do valor, não pode mais ser acionada na base econômica real e, portanto, deve ser alimentada artificialmente pelos créditos públicos e privados e por um enorme inchaço da especulação na bolsa de valores[2].
Esses empréstimos não são, ou são apenas parcialmente, usados para a expansão da infra-estrutura geral ou para outras tarefas gerais, mas servem apenas basicamente para a preservação do sistema contra o processo de agravamento da crise. A liquidez é bombeada para os mercados financeiros para que a acumulação capitalista não pare. Com isso, as dívidas e os valores especulativos descobertos se acumulam em montanhas gigantescas que, é claro, mais cedo ou mais tarde terão de entrar em colapso – com conseqüências socio-econômicas catastróficas. Isso se mostra de maneira especialmente exacerbada em países periféricos, como a Argentina, onde ao longo dos anos 1990 o endividamento teve de fato apenas o único objetivo de apoiar a moeda para permanecer atraente para a entrada de capital financeiro. Essa lógica circular de participação no mercado financeiro (empréstimos sempre crescentes para continuar sendo digno de crédito) trouxe um período de boom extremamente curto a um custo tremendo, criando a ilusão para partes da população de que logo se juntariam ao “Primeiro Mundo”. De fato, justamente nessa fase ultra-neoliberal, a dívida cresceu exponencialmente, enquanto simultâneamente a infra-estrutura e as empresas estatais eram vendidas a preços irrisórios. O quadro estatal, responsável na era fordista do pós-guerra pela manutenção do contexto social e do abastecimento público, transformou-se em um coletivo saqueador que vendeu a substância social no mercado mundial para enriquecer-se e, de passagem, acender um curto fogo de palha de valorização de capital – antes que viesse a queda mais violenta.
Um desenvolvimento semelhante está se refletindo atualmente nos países capitalistas centrais. Nenhum custo é poupado e sacrifícios cada vez maiores são exigidos à população, com vistas a manter a forma capitalista e assegurar um núcleo da valorização de capital decrescente. Os benefícios sociais e a infra-estrutura geral aparecem do ponto de vista da “concorrência por localização” apenas como fardo que deve ser descartado. Ao mesmo tempo, a privatização do setor público deveria abrir novas esferas de investimento para o capital; mas eles são lucrativos apenas enquanto a substância acumulada no passado, por exemplo na forma de hospitais, redes ferroviárias ou servicios de água, pode ser saqueada e consumida. A riqueza social está sendo cada vez mais implacavelmente lançada no forno da valorização, que é acendido mais uma vez por um curto prazo, enquanto partes cada vez maiores da população são excluídas dos serviços públicos (saúde, transporte, água potável, etc.) e empurradas à pobreza[3].
Em princípio, esse desenvolvimento é o mesmo em todas as partes do mundo: o capitalismo consome sua própria substância social produzida historicamente e, portanto, transforma-se em um sistema econômico de pilhagem global. Em princípio, não faz diferença se, por exemplo, no Reino Unido a rede ferroviária é vendida a empresas privadas, as quais a consomem e a levam ao status de país do Terceiro Mundo em poucos anos para garantir seus lucros, ou se um senhor da guerra africano se apodera das minas de coltan para lançar o metal no mercado mundial. Apenas os métodos na Grã-Bretanha são um pouco mais civis e o grau de decomposição do Estado não progrediu tanto quanto no antigo Zaire. No entanto, estamos lidando fundamentalmente com uma mesma tendência em todo o mundo, com uma espiral descendente de aniquilação e autocanibalismo sistêmico. As diferenças entre as várias regiões do mundo resultam basicamente apenas do fato de que nas metrópoles capitalistas a substância que pode ser consumida é muito maior do que em um país periférico que tem uma breve história de desenvolvimento capitalista e do Estado-nação. Naturalmente, as diferenças de poder político e militar também desempenham um papel ao permitir que os Estados mais poderosos passem transitóriamente parte de seus custos da crise para outros países e regiões mais frágeis.
Em particular, essas diferenças entre (ou no interior de) essas regiões estão longe de serem secundárias porque podem decidir entre a vida e a morte; também as condições para a formação de resistência social são diferentes, evidentemente, dependendo se se está lidando com um aparato estatal ainda mais ou menos em funcionamento ou se tem que se defender contra gangues saqueadoras. As transições, no entanto, são fluidas, porque em todo o mundo, os limites (de qualquer maneira sempre permeáveis) entre crime organizado e política, entre gangues e serviços de segurança privada tornam-se cada vez mais confusos[4]. Dessa forma, o Estado perde o caráter universal que possuía até certo ponto nos países capitalistas centrais (e somente ali), e se transforma em um ator na economia de pilhagem geral.
5.
A execução politicamente mediada dos sacrifícios e imposições exigidos pelo processo de crise capitalista dificilmente teria sido possível sem um apoio ideológico massivo. Pois inclusive a gestão da crise capitalista não pode renunciar completamente à legitimação pública de suas ações. No entanto, o desencadeamento da concorrência de aniquilação, a transição para a economia de pilhagem e a exclusão social em massa não podem mais ser justificados pela promessa de progresso social geral, como foi caracteristico na maior parte do século XX. A ideologia neoliberal teve que substituir aquela promessa pela responsabilidade e sucesso individual.
Em primeiro lugar, este motivo ideológico tem a grande “vantagem” de ser totalmente adequado para deslocar e tornar invisível a retumbante força disruptiva de processo de crise em curso, responsabilizando aos caídos pelo seu próprio destino; eles não se esforçaram o suficiente, foram preguiçosos ou não souberam se vender corretamente. Essa atribuição não ocorre apenas no nível dos indivíduos, mas também no nível de instituições e Estados. As causas de um Estado mergulhar na crise não são buscadas geralmente na concorrência do mercado mundial, cuja lógica interna produz vítimas, mas em uma política incorreta, na corrupção, na falta de disposição da população para agir, e assim por diante.
Pensando bem, é absolutamente ridículo supor que cerca de 80% das pessoas do mundo vivam na miséria apenas porque não se esforçaram o suficiente ou porque estão sendo governadas por políticos incompetentes e corruptos; também que só bastaria um governo democrático e uma abertura dos mercados para lhes permitir o acesso à riqueza social. Mas a vontade de acreditar em tais contos de fadas é grande. Como seu impulso não é racional, mas um desejo irresistível de recalque, ela dificilmente é abalada por argumentos e evidências empíricas. Aqueles que por enquanto se beneficiam da crise, e inclusive os segmentos de movimentos ainda não batidos, querem recalcar não só a crescente miséria em massa no mundo e sua má consciência, mas acima de tudo a idéia de que eles mesmos estão a poucos passos do abismo e se aproximando dele ameaçadoramente.
É claro que a individualização da “responsabilidade” pelo próprio destino não foi inventada pelo neoliberalismo. Ela representa uma ideologia básica da moderna sociedade mercantil e é, ao mesmo tempo, um elemento estrutural essencial para a transformação das pessoas em sujeitos do dinheiro e da mercadoria, todas elas submetidas ao princípio compulsório do valor e obrigadas a se afirmar diariamente na concorrência. Essa é a razão estrutural pela qual o domínio capitalista exige um grau muito maior de autocontrole e autodisciplinamento individual em relação a outras formas de dominação anteriores, o que nada mais é do que a internalização individual das formas objetivas de dominação. As pessoas têm que se submeter elas próprias e se transformar em objetos, em uma coisa vendável.
Esse momento de auto-sujeição permanente (que, por exemplo, Foucault estudou e descreveu historicamente em seus estudos sobre a sociedade disciplinar e a governamentalidade) está ganhando força no processo de crise capitalista. Não apenas é uma condição de funcionamento para o mercado de trabalho cada vez mais desregulamentado e garante a disposição de se submeter a condições de trabalho cada vez piores e mais exaustivas e de espremer o máximo de desempenho possível. Ao mesmo tempo, e sobretudo, permite organizar de forma relativamente suave o processo de empobrecimento e exclusão e minimizar a resistência. Nesse sentido, os cortes nos sistemas de seguridade social, a privatização do setor público e o desencadeamento da concorrência não são apenas uma expressão da transição para uma economia de pilhagem global, mas são também medidas disciplinares tremendas que acompanham esse processo. O método é no fundo muito simples: sempre mantenha as pessoas marchando, não lhes dê nenhum descanso e elas não questionarão as condições sociais. E quem faria isso melhor do que o mercado total com sua concorrência brutal? Na era do fordismo, o Estado Social foi acusado por críticos de esquerda de imobilizar as massas, controlá-las com sua burocracia e alimentá-las com migalhas para evitar que exigissem a padaria inteira. E com razão. Mas na crise capitalista fundamental esse método de controle e disciplina se torna precário, até mesmo disfuncional. Pois não só exige um esforço financeiro e burocrático cada vez maior para alimentar o crescente número daqueles que são expulsos do processo regular de valorização. Acima de tudo, perderam-se os meios de pressão. Na República Federal da Alemanha, por exemplo, ainda com seis a sete milhões de desempregados, era possível ainda durante um bom tempo, com um pouco de habilidade, escapar da compulsão do trabalho e, pelo menos parcialmente, viver dos benefícios sociais. Mas essa porta traseira fordista da compulsão do trabalho está agora sistematicamente trancada.
Se os agitadores neoliberais denunciam na República Federal da Alemanha a “ineficiência” da administração do (des)emprego (e exploram de maneira extremamente populista os espalhados ânimos em contra dos funcionários, supostamente preguiçosos), esse é um ataque frontal à reivindicação da integração social, que sobreviveu por um longo tempo nas instituições do Estado de bem-estar do fordismo, e se tornou obsoleta do ponto de vista capitalista. Embora desde o final dos anos 1980 os benefícios tenham sido continuamente reduzidos e a pressão tenha sido intensificada, nos últimos dois anos ocorreu uma mudança de rumo que representa uma ruptura qualitativa. Agora trata-se simplesmente de empurrar tantas pessoas quanto possível para fora das estatísticas e das prestações estatais. Ao fazê-lo, a gestão estatal do trabalho transforma-se de instância integradora em protagonista da seleção e da exclusão social – e isso é ‘bem-sucedido’ em seu próprio sentido.
6.
Depois de mais de 20 anos de fúria no planeta, o neoliberalismo perdeu muito de sua credibilidade ideológica. As suas contradições internas não poderiam passar completamente despercebidas. Portanto, não era de surpreender que seus slogans propagandistas ficassem nesse meio tempo um tanto desarmados e estejam agora acompanhados por uma nova retórica do Estado “social” e “ativo”. Particularmente nos países da Europa Ocidental, nos quais ainda sobreviviam remanescentes relativamente grandes dos sistemas sociais fordistas e de uma infra-estrutura pública bem desenvolvida, esta mudança retórica foi inclusive o pressuposto decisivo para implementar aceleradamente aquilo que fora implementado tempo atrás nos países centrais do neoliberalismo e na periferia do mercado mundial. Nesse contexto, o “social” experimenta uma mudança fundamental de significado. A pacificação do Estado de bem-estar fordista é substituída por um complexo policial, de segurança e penitenciário que acompanha a disciplina permanente quase automática do mercado de trabalho desregulamentado. Dos sistemas sociais do Estado restou apenas um remanescente que, por um lado, serve para separar as partes da população trabalhadora “inúteis” para a concorrência por localização e proteger precariamente as partes “úteis”. Por outro lado, por razões de legitimação deve ao mesmo tempo simular algo assim como “justiça social”, de modo que as camadas médias de potenciais eleitores verdes ou socialdemocratas possam ser persuadidas de que não há exclusão, mas todos recebem sua “oportunidade”. Essa clientela sempre esteve preocupada com a sua boa consciência, já quando doava para o movimento de libertação sandinista nos anos 1970 e 1980 ou carregava o saco de juta em vez da sacola plástica pelas redondezas com sentimento de elevação moral. Agora que os tempos estão ficando mais difíceis e seu próprio status está ameaçado, o darwinismo social da ética burguesa vem à tona novamente, segundo o qual apenas aqueles que trabalham (ou que pelo menos querem trabalhar) têm o direito de existir. Isso significa também que as provisórias redes de atendimento criadas para os absolutamente empobrecidos têm caráter puramente caritativo e não mais (ou cada vez menos) estão baseadas em reivindicações legais, mas são arbitrárias e podem ser rescindidas a qualquer momento. Essa assistência da pobreza é, por sua vez, cada vez mais entregue a iniciativas privadas do complexo industrial humanitário (instituições de caridade e ONGs) e também é excelente para a política populista clientelar e para a publicidade por via das imagens. Típico disso é o programa Fome Zero do presidente brasileiro Lula, quem busca dar maior legitimidade à sua continuidade das políticas neoliberais prometendo fornecer alimentos básicos aos marginalizados. É significativo que nem mesmo essa promessa lastimável seja honrada, embora ela comprometeria apenas uma pequena fração do potencial de riqueza existente. Das cerca de 35 milhões de pessoas necessitadas, apenas 5 milhões receberam algumas migalhas deste programa.
No entanto, aparentemente os antigos portadores de esperança da esquerda têm sucesso (por enquanto) em assegurarse um certo apoio das partes marginalizadas e amplamente despolitizadas da população, através do marketing midiático desta turnê decadente. Tal como está começando a surgir também nos países centrais da UE, essa mistura de repressão e assistencialismo é acompanhada por um discurso mentiroso de revitalização dos “valores burgueses”. Ele encontra ressonância particularmente numa seção das camadas médias que – por medo das conseqüências desagradáveis da desintegração social, como crime, violência e banditismo – redescobriu sua “responsabilidade social” na forma da pedagogia negra[5]. A culpada pela polarização social seria uma liberalidade mal compreendida que teria falhado em ensinar às “camadas baixas” as competências culturais necessárias, regras de etiqueta e virtudes secundárias, como dever, cortesia, pontualidade, etc. Não é de admirar que eles não tenham podido acompanhar a concorrência e, em vez disso, vegetem com o saco de batatas fritas na frente da TV. “O principal problema das camadas baixas não é a pobreza, mas o consumo em massa de fast food e TV”, afirma por exemplo um tal Paul Nolte, professor na Universidade Internacional de Bremen (“O grande banquete”, em: Die Zeit, 17 de dezembro de 2003). Portanto, a “burguesia” (mas quem ela é?) deveria finalmente cumprir novamente sua missão educativa:
“Estamos diante de um novo começo, uma mudança de paradigma no tratamento político das camadas baixas. Há muito tempo seguimos um conceito que poderia ser chamado de ‘negligência cuidadora’. Um nível comparativamente alto de cuidado material em relação às camadas baixas é acompanhado por uma negligência em termos sociais e culturais. O objetivo deve ser novamente não deixar a cultura da pobreza e da dependência, da falta de educação e da falta de independência sobre si mesmos, mas intervir para desafiá-los e abri-los. Trata-se da integração na sociedade, mas também – para muitos um assunto sensível – da mediação de padrões culturais e modelos” (idem).
O “truque” discursivo usado por Nolte é indicativo do atual período de turbulência na República Federal Alemã e em outros países da UE. Ele apela ainda para a reivindicação de ‘integração’, mas esta não deve resgatar mais a participação material – porque, como afirmado com insensibilidade contrafactual pelo especialista em história social alemã e americana, ela já teria sido garantida – mas através da mediação dos valores burgueses. Dessa maneira, ele fornece ao seu interessado público de classe média uma forma ideológica de processamento com a qual ele pode se sentir socialmente responsável, sem ter má consciência ao se refugiar das consequências sociais da crise em áreas residenciais separadas e Shopping Centers vigiados – enquanto ainda ele pode pagar por isso.
O recurso à “cultura dos valores burgueses”, destruída pela própria comercialização capitalista é, por si só, um mero fantasma e mais um sinal da transição para um período de simulação e alucinação. Mas serve também para empacotar de maneira um pouco mais palatável a repressão real em andamento? Podemos ver nos chamados campos de treinamento nos EUA com que práxis se corresponde a “mudança de paradigma” proclamada pelo Sr. Nolte e seus parceiros: ali, jovens desviantes das camadas baixas são ensinados a funcionarem como cidadãos decentes, com exercícios militares extremos e métodos de lavagem cerebral. Qualquer um que sobreviva a essa lição bem-intencionada de valores burgueses experimenta muito de perto como é o “cuidado” que o Sr. Professor tem em mente.
Não é por acaso que o discurso sobre repressão e educação e a práxis a ele vinculada lembrem a forma de lidar com as camadas inferiores e as “classes perigosas” dos primórdios do capitalismo. Na crise da sociedade da mercadoria, o núcleo violento e autoritário do capitalismo claramente volta à tona. E, no entanto, há uma diferença nada insignificante: não se trata mais de adequar violentamente as camadas inferiores camponesas para o gasto regular de sua energia vital pelo ritmo de trabalho da manufatura e da fábrica, preparando assim o terreno para a expansão capitalista. Pelo contrário, o objetivo consciente-inconsciente consiste em disciplinar a grande massa de “supérfluos”, de modo que ela atrapalhe o menos possível as empresas capitalistas residuais e aqueles que ainda participam delas. Os excluídos e cuspidos para fora devem submeter-se o mais calmamente possível ao seu destino. É claro que centenas de milhões de pessoas marginalizadas pelo capitalismo em todo o mundo não podem ser mantidas sob controle dessa maneira. Enquanto elas não representam ameaça alguma para o encolhido setor da valorização de capital e do consumo no mercado mundial, são deixadas à própria sorte e impedidas de entrar no centro por um regime de fronteira cada vez mais rigoroso. Mas à medida que centros e periferias se tornam cada vez mais misturados, a proteção das fronteiras internas ganha cada vez mais importância. O discurso sobre “valores burgueses” fornece para isso a música de fundo moralista.
7.
Em face da decomposição do Estado e de sua mutação de instância de regulação capitalista e da universalidade social para ator da concorrência de destruição e da economia de pilhagem, a relação dos movimentos sociais com ele – ou melhor, com os produtos da sua decomposição – deve ser radicalmente redefinida. Se a esquerda continua alimentando e propagando ilusões sobre a possibilidade de uma “outra política”, isso não leva a lugar algum, pois sob as condições objetivas da crise, esses conceitos não têm mais a menor chance de uma oportunidade prática (o que fica claro nesses raros exemplos de social-democracia que têm chegado ao governo ainda com alguma reivindicação social, como o caso de Lula no Brasil). Em segundo lugar, esse fracasso pré-programado implica uma desilusão negativa, por ser acrítica, promovendo assim formas regressivas de processamento do processo de crise: racismo, anti-semitismo, nacionalismo e teorias da conspiração de todos os tipos, em alta de qualquer maneira no mundo todo. Os próprios movimentos sociais não estão de forma alguma livres disso. Em especial, tendências anti-semitas freqüentemente penetram em argumentos aparentemente críticos do capitalismo ou pelo menos elas são carregadas e toleradas de maneira totalmente irrefletida.
Pelo menos tão fortes são as tendências para as políticas de identidade étnica, regionalista e religiosa que, em face do processo social geral, opaco e incontrolável, proporcionam o sentimento de “comunidade”. Um triste exemplo disso é o desenvolvimento do EZLN mexicano, que, após o fracasso de seu conceito político de transformar o Estado mexicano através da pressão da “sociedade civil”, agora se concentra cada vez mais nas identidades indígenas. Mas também em outras partes do mundo há desenvolvimentos análogos de movimentos cuja reivindicação emancipatória é negada por seu etnicismo, como o movimento Aimara na Bolívia ou os vários partidos regionalistas ou separatistas de esquerda na Espanha. Essas formas de afastamento da política não têm nada a ver com a sua superação, mas são basicamente variantes de seu desmoronamento. Que uma perspectiva de emancipação social não deva deixar-se vincular ao Estado não significa que o nível da universalidade social seja removido. Em vez disso, o populismo, a simulação pós-política, a gestão da crise capitalista e as formas regressivas de processamento da crise devem ser resolutamente contrapostos nesse nível. Isso não tem nada a ver com a ilusão de uma “outra política”, mas pode ser melhor designado como anti-política[6]. Sua perspectiva não é a conquista do Estado, mas a sua superação. Portanto, a anti-política não constitui um “programa” bem definido, positivo e unificador, mas tem o caráter de uma “estratégia negativa” provisória que caduca na medida em que é bem-sucedida e desaparece com seus antípodas. E é por isso que não se baseia na unificação dos movimentos sociais sob um comando e com uma vanguarda no topo, como acontece na lógica da política e das organizações partidárias, que sempre representam e reproduzem as estruturas de poder do Estado. Mas, ao mesmo tempo, o termo anti-política também deve apontar que uma mera justaposição não vinculativa das lutas está condenada ao fracasso. Pois todas essas lutas se movem em um quadro comum de estruturas coercitivas globalizadas que são constituídas pelo princípio uniforme universalista abstrato da forma mercadoria e valor. Seu objetivo comum deve ser, portanto, fazer explodir esse quadro, a fim de abrir o horizonte para uma sociedade mundial verdadeiramente plural de indivíduos livremente associados[7]. É verdade que o domínio capitalista pode, em princípio, precisamente por causa de sua onipresença, ser atacado em qualquer lugar. Mas as lutas parciais a qualquer momento podem virar concorrência e demarcação identitária, se elas não estiverem vinculadas à perspectiva comum de superar as formas de coação da sociedade da mercadoria e as estruturas de sujeito a ela associadas. Nesse sentido, anti-política significa levar muito à sério as instituições sociais da dominação capitalista e se decidir a confrontá-las no nível social geral. Isso implica reconhecer que mesmo nas condições da crise os atores estatais representam um verdadeiro fator de poder; não só continuam administrando uma parte significativa da riqueza social, como também regulam e controlam o acesso a ela, especialmente através da polícia e do sistema jurídico. Isto é dramaticamente evidente particularmente ali onde, como na Argentina, fábricas ocupadas são evacuadas, mesmo tendo se tornado não lucrativas para a produção para o mercado[8]. A despeito disso, a propriedade privada é defendida com toda violência porque é um princípio fundamental da sociedade da mercadoria.
Ali onde a crise capitalista mina a base da produção de mercadorias e os próprios produtos de decadência do Estado promovem ativamente a destruição e a pilhagem da substância social, as demandas por uma redistribuição da riqueza monetária e pela regulamentação do mercado são meros castelos no ar. O lema “o dinheiro é suficiente” está equivocado em todos os sentidos. Em primeiro lugar, não é correto porque a crise é precisamente uma crise das formas mercadoria e dinheiro que perdem sua base, junto com a substância de trabalho e valor[9]. Em segundo lugar, com isso aceita-se de maneira inquestionada a redução da riqueza material à forma limitada de riqueza monetária abstrata, em lugar de ser criticada. O objetivo da emancipação social, no entanto, só pode consistir em acabar com essa redução e produzir e administrar a riqueza social diretamente, sem o desvio através do fetiche da mercadoria e do dinheiro[10].
A idéia de que pode haver um retorno a um capitalismo de algum modo “regulado” ou “civilizado” é completamente infundada. O capitalismo “selvagem” de hoje, o capitalismo que literalmente devora e aniquila sua própria substância e, portanto, a humanidade, é a única forma em que ainda pode existir hoje. Não há mais valores civilizatórios da sociedade burguesa para defender-se contra a “barbárie”, pois a lógica interna dessa sociedade leva à barbárie. Uma emancipação só pode existir para além dela. O ponto de partida de qualquer resistência emancipatória deve, portanto, ser também a contraposição à tendência de sacrificar a riqueza material sem consideração ao processo de crise. A este respeito, a anti-política é absolutamente compatível com a resistência contra a gestão neoliberal da crise, com a luta contra a privatização da água, como por exemplo foi levada adiante com sucesso na Bolívia, ou com a necessária resistência contra a destruição da saúde pública que tem lugar atualmente em países europeus. As lutas imanentes e uma perspectiva de superação do sistema produtor de mercadorias não são de forma alguma mutuamente excludentes, mas se referem uma à outra. Em última instância, essas lutas podem ser conduzidas apenas com uma tal perspectiva, pois caso contrário os movimentos permanecem vulneráveis à chantagem da lógica sistêmica (concorrência por localização, “rentabilidade”, etc.) e a visão da única saída, a apropriação da riqueza material e do conjunto das relações sociais, permanece bloqueada. Reconhecer essa saída não é apenas uma questão de discernimento intelectual, mas pode mudar decisivamente a qualidade das lutas sociais: “Quando uma ideia se apodera das massas, ela se torna força material” (Marx).
[1] Cf. Trenkle, Norbert. “Es rettet Euch kein Billiglohn” em: Kurz; Lohoff; Trenkle (orgs.). Feierabend! Hamburg, 1999. Disponível em: <http://www.krisis.org/wp-content/data/feierabend.pdf>. E Trenkle, Norbert: “Das Ende der Arbeit / Informalisiertes Elend”, em: iz3w, março de 2003.
[2] Cf. Kurz, Robert: “Die Himmelfahrt des Geldes”, em: Krisis 16/17, 1995 [versão em português disponível em: <http://www.obeco-online.org/rkurz101.htm>]; Lohoff, Ernst. “Große Fluchten. Krise und Entwicklung des Kapitals”, em: Weg und Ziel 1/2000 [versão em português disponível em: <http://www.krisis.org/2015/fugas-para-frente/>].
[3] Cf. Lohoff, Ernst. “Das Schweigen der Lämmer” em: Lohoff; Trenkle et al. (orgs.). Dead Men Working. Unrast, 2005.
[4] Isso relata, por exemplo, o Coletivo Situaciones na Argentina: “Em 26 de junho de 2002 foram assassinados Darío Santillán e Maximiliano Costeki, dois membros da Coordinadora de Trabajadores desocupados Aníbal Verón. A repressão dos movimentos sociais ocorre tanto em uniforme estatal como em toda uma série de outras formas. Elas tem a ver com a reciclagem de pessoas que serviram a última ditadura militar e adotaram seus métodos. Estamos falando de grupos mercenários parecidos com a polícia, grupos criminosos com contatos da máfia e empresas de segurança que se tornaram verdadeiros exércitos privados e em serviço direto a corporações ou grupos de poder político. As várias formas de expressão de repressão provam que o ataque às práticas radicais de transformação social não precisa ser necessariamente homogêneo (Colectivo Situaciones, prefácio a “Que se vayan todos! Krise und Widerstand in Argentinien”, Berlin, 2003, p.22 e ss.)
[5] N.do.T.: A pedagogia negra é um termo que faz referência a métodos educacionais que incluem violência e intimidação como meio. O termo foi introduzido em 1977 pela socióloga alemã Katharina Rutschky com a publicação de um livro com ese título.
[6] Cf. Kurz, Robert: “Antipolitik und Antiökonomie”, em: Krisis, 19, 1997 [versão em português disponível em: <http://www.obeco-online.org/rkurz106.htm>]; Kurz, Robert; Trenkle, Norbert. “Die Aufhebung der Arbeit”, em: Kurz; Lohoff; Trenkle (orgs.). Feierabend! Hamburg, 1999; Lohoff, Ernst. “Determinismus und Emanzipation”, em: Krisis, 18.
[7] Cf. Trenkle, Norbert. “Weltgesellschaft ohne Geld”, em: Krisis, 18, 1996.
[8] Cf. Fernandes, Marco. “Wind des Südens. Funken eines nicht-entfremdeten Bewussteins inmitten des argentinischen Zusammenbruchs”, em: Lohoff; Trenkle et al. (orgs.). Dead Men Working. Unrast, 2005.
[9] Isso se expressa empiricamente, por um lado, com o correspondente impulso à desvalorização (inflação, queda da moeda, crise do mercado financeiro) e, por outro lado, em que cada vez mais pessoas são cortadas das fontes do dinheiro.
[10] Cf também Exner, Andreas: “Geld ist genug da! Essen kann man’s trotzdem nicht Attac un di Krise der Arbeitsgesellschaft”, em: Lohoff; Trenkle et al. (orgs.). Dead Men Working. Unrast, 2005. E sobre a noção de riqueza: Lohoff, Ernst: “Zur Dialektik von Mangel und Überfluss”, in Krisis, 21/22, 1998.