por Norbert Trenkle
Traduzido por Marcos Barreira
Teses para o seminario Kapital, Krise, kategoriale Kritik, 7.4.2019
1.
A questão fundamental da sociologia, como Georg Simmel a formulou certa vez, “como é que a sociedade é possível?” (Simmel 1908, p. 42), lança uma luz importante tanto sobre o objeto de observação como sobre a posição do observador. O que parece ser uma questão fundamental sobre o caráter da “sociedade em geral”, na verdade, surge apenas quando se tem em conta a natureza peculiar e historicamente específica da sociedade burguesa-capitalista, que se caracteriza por uma contradição fundamental entre indivíduo e sociedade. Uma indicação da natureza histórica dessa contradição é o fato de que ela só foi abordada a partir do início da modernidade. Desde então, tem ocupado com frequência o pensamento da filosofia social e das ciências sociais. Thomas Hobbes formulou a famosa frase “o homem é o lobo do homem”. Para ele, as pessoas são “por natureza” indivíduos egoístas que apenas seguem suas inclinações ou aversões particulares e estão sempre ansiosas por fazer valer suas próprias vantagens e interesses sobre outros indivíduos atomizados. Segundo Hobbes, a sociedade só é possível se os indivíduos se submeterem a um aparelho de Estado todo-poderoso que determine de modo soberano as regras de convivência e impeça que o choque geral de interesses particulares degenere na guerra de todos contra todos. Embora esse ponto de vista radical (classificado como “pessimista” ou “realista” em relação à “natureza humana”) tenha recebido tanta aprovação quanto rejeição, a melodia básica de uma oposição elementar entre o indivíduo e a sociedade que ele estabelece moldou desde então, em muitas variações, as partituras da filosofia social moderna e da ciência social.
Mandeville é provavelmente o primeiro escritor a formular a ideia de que a busca egoísta de interesses particulares não ameaça o contexto social mas, pelo contrário, resulta inadvertidamente no bem comum da sociedade. Assim, o autor estabelece um padrão de pensamento que tem caracterizado a teoria econômica liberal, pelo menos desde Adam Smith, que retomou essa ideia e desenvolveu-a sistematicamente. No entanto, a contradição entre indivíduo e sociedade também caracteriza o pensamento filosófico fora do discurso econômico. Kant, por exemplo, transfere essa contradição, designada de forma reveladora como antagonismo, para o próprio “homem” e a designa adequadamente com o conceito de “convivência insociável” (ungeselligen Geselligkeit). Com isso ele quer dizer a “tendência” das pessoas “a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade. Essa disposição é evidente na natureza humana. O homem tem uma inclinação para associar-se porque se sente mais como homem num tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais. Mas ele também tem uma forte tendência a separar-se (isolar-se) porque encontra em si ao mesmo tempo uma qualidade insociável que o leva a querer conduzir tudo simplesmente em seu proveito, esperando oposição de todos os lados, do mesmo modo que sabe que está inclinado a, de sua parte, fazer oposição aos outros”. (Kant 1784, p. 20 e segs.) [p. 8] Segundo Kant, esse “antagonismo” é uma das forças motrizes essenciais da história humana, na medida em que leva os homens a realizações culturais. Para além da razão no sentido do imperativo categórico, Kant também considera indispensável, junto com a Razão no sentido do imperativo categórico, um Estado forte para controlar as forças relutantes e conduzir as pessoas na direção correta.
2.
Marx também coloca a contradição entre indivíduo e sociedade no centro do seu pensamento e faz dela o ponto de partida da sua teoria crítica da sociedade capitalista. Em contraste radical com os economistas burgueses e os pensadores iluministas, Marx não tem dúvidas de que a divisão da sociedade em indivíduos isolados não representa de modo algum um “estado de natureza”, mas sim a estrutura básica ou a forma básica da socialização burguesa. Marx troça repetidamente das “robinsonadas” dos economistas burgueses que retroprojetam essa estrutura básica nos primórdios da história humana e, tal como Adam Smith, admitem que os homens têm um impulso natural para o comércio e a troca de bens. Assim, escreve nos Grundrisse: “a dissolução de todos os produtos e atividades em valores de troca pressupõe a dissolução de todas as relações fixas (históricas) de dependência pessoal na produção, bem como a dependência multilateral dos produtores entre si. A produção de todo indivíduo singular é dependente da produção de todos os outros; bem como a transformação de seu produto em meios de vida para si próprio torna-se dependente do consumo de todos os outros. […] Aquilo que Adam Smith, em autêntico estilo do século XVIII, situa no período pré-histórico, no período que antecede a história, é, ao contrário, um produto da história” (MEW 42, p. 89 e seguintes) [p. 156].
Para ele, a questão decisiva não um “interesse geral” resultante da busca de todos os indivíduos por seus interesses particulares, como afirma Smith, nem, pelo contrário, como supõe Hobbes, se essa busca conduz à guerra de todos contra todos. “A questão”, escreve, é antes “que o próprio interesse privado já é um interesse socialmente determinado, e que só pode ser alcançado dentro das condições postas pela sociedade e com os meios por ela proporcionados; logo, está vinculado à reprodução de tais condições e meios. É o interesse das pessoas privadas; mas seu conteúdo, assim como a forma e os meios de sua efetivação, está dado por condições sociais independentes de todos” (MEW 42, p. 90). [p. 157]
Esse “ponto de partida” é fundamental para toda a teoria de Marx. A contradição entre o caráter privado (Privatheit) abstrato dos indivíduos isolados e a generalidade abstrata do seu contexto social é o primeiro passo da sua crítica da economia política e permite-lhe decifrar a lógica interna da sociedade capitalista. O que caracteriza o “método” de Marx é que ele não rejeita simplesmente as ideias dos pensadores burgueses como “erradas”, mas inverte-as ao mostrar que o alegado “estado de natureza” representa, na realidade, a estrutura básica historicamente específica da sociedade burguesa. Esse passo permite-lhe ligar-se à economia política e, ao mesmo tempo, virá-la criticamente contra si mesma. Ele efetua, assim, uma mudança de perspectiva que torna possível a crítica radical da sociedade burguesa.
3.
Marx rompe assim também com um dos pressupostos centrais da economia política clássica, que ainda hoje caracteriza a “economia”: o “individualismo metodológico”.1 Embora esse termo só tenha sido cunhado no século XX,2 o procedimento metodológico a que se refere é muito mais antigo e remonta à origem do pensamento burguês. Trata-se basicamente de explicar os processos e estruturas sociais com base nas ações de indivíduos isolados, pressupondo implícita ou explicitamente que estes têm uma determinada “natureza” ou “essência” tomada como evidente, ou seja, ontologizada. No caso da economia política clássica, tal pressuposto é claro: o “homem”, sempre concebido como o homem (Mann) branco que pensa racionalmente (cf. Habermann 2008, p. 130 e seguintes), é essencialmente um homo oeconomicus, ou seja, um indivíduo isolado maximizador de vantagens, que persegue seus interesses privados (incluindo os da sua família nuclear, que é sempre concebida de modo conveniente como um apêndice) em competição com outros indivíduos e só entra em contato social com eles quando tem aí algum benefício.
A abordagem de Marx é bastante diferente. Quando fala de indivíduos abstratos ou de produtores privados isolados, pressupõe sempre (mesmo quando não o faz explicitamente) que se trata, antes de tudo, do resultado histórico de um longo processo de imposição do capitalismo, no âmbito do qual as pessoas eram expulsas das comunidades e dos contextos de produção não capitalistas que foram gradualmente destruídos. O “homem” é, portanto, historicamente constituído e não aquele indivíduo abstrato “em si” que a economia política pressupõe como algo natural. Por isso, não passa de um argumento circular querer explicar o funcionamento da sociedade capitalista a partir precisamente desses indivíduos, um argumento circular que cumpre também a função de legitimação ideológica. Em segundo lugar, por essa mesma razão, Marx nunca aborda os indivíduos isoladamente, mas sempre apenas como um momento de uma forma de socialização fundamentalmente contraditória, que se distingue precisamente pela fragmentação dos indivíduos isolados e de um contexto social que os confronta como algo que lhes é estranho. Faz parte da essência e da contradição fundamental da sociedade burguesa que, embora os indivíduos existam isolados uns dos outros, sejam dependentes uns dos outros como nunca antes na história. No entanto, sua coesão social é constituída de forma paradoxal pelo fato de perseguirem seus interesses privados uns contra os outros. Ou, parafraseando Marx: “a dependência recíproca e multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes forma sua conexão social” (MW 42, P. 92). [p. 157]
Nesta perspectiva, o conceito cunhado por Kant é certamente correto; mas o “antagonismo” que ele atribui aos próprios “homens”, que, de um lado, se esforçam por se socializar e, de outro, resistem a isso porque, em última análise, se sentem comprometidos apenas com os seus interesses privados, é uma contradição característica da forma de relação social fundamental da sociedade capitalista, que tem o caráter de uma “sociabilidade insociável” (Ungesellschaftliche Gesellschaftlichkeit).3 No entanto, através dessa mudança de perspectiva, tal “antagonismo” já não se apresenta como um fato ontológico inevitável, mas como a característica essencial de um tipo de socialização absurda historicamente específica; absurda na medida em que as pessoas aqui confrontam suas próprias relações sociais sob a forma de um contexto social exteriorizado que obedece à sua própria lógica reificada. É aquilo que Moishe Postone (Postone 2003, p. 61 f.) chama dominação abstrata ou, na terminologia de Marx, fetichismo. A “sociabilidade insociável” é a forma fundamental de relação da sociedade burguesa, à qual, em última análise, podem ser atribuídas todas as suas formas peculiares de fetichismo. É certo que esta é uma antecipação do argumento, que ainda precisa ser fundamentado.
4.
Nesse contexto, é bastante surpreendente que Robert Kurz, em seu último livro, acuse Marx de se ter deixado levar pelo individualismo metodológico (Kurz 2012, p. 169). Essa acusação baseia-se apenas na afirmação de que Marx começa O Capital analisando “a mercadoria individual ideal-típica” (ibid.) e deriva daí a lógica da relação social global.4 Se Marx procedesse de fato dessa forma, ou seja, da mesma maneira que Max Weber, a crítica de Kurz teria algo de plausível. No entanto, o método de Marx é completamente diferente. Quando toma a mercadoria como ponto de partida de sua análise, não se trata de uma coisa empírica qualquer, nem de um “tipo ideal” à la Weber. Um tipo ideal é uma construção intelectual estabelecida a partir de observações empíricas e serve para organizá-las e diferenciá-las analiticamente. Acima de tudo, tem objetivos heurísticos, ou seja, ela contribui para apreender e descrever sistematicamente o contexto social global através de um refinamento e diferenciação cada vez maiores das observações empíricas e do seu agrupamento. Isso não tem absolutamente nada a ver com o método de Marx de “ascender do abstrato ao concreto” (Rosdolsky 1968, p. 43). A mercadoria com que Marx inicia sua análise é, de fato, uma abstração mental, mas não é formada a partir da síntese e catalogação de observações empíricas, mas já é o resultado de um processo de investigação anterior, apresentado então de forma lógico-sistemática.
Quando Marx começa sua exposição em O Capital com a mercadoria, não está falando de alguma mercadoria empírica ou de uma suposta “média ideal-típica” de todas as mercadorias empiricamente observáveis, mas da mercadoria apenas como representação da forma de relação subjacente à sociabilidade insociável. Isso se torna claro pelo fato de, em toda a primeira seção, ele falar explicitamente de mercadorias que são o produto do trabalho, ou mais precisamente: do trabalho privado isolado: “apenas produtos de trabalhos privados autônomos e independentes entre si confrontam-se como mercadorias” (MEW 23, p. 57) [Vol. I, pag. 50]. Ernst Lohoff (2017) sublinhou que seria absurdo presumir que Marx desconhecesse a existência de uma multiplicidade de outras mercadorias que não são, de modo algum, produto do trabalho privado (em primeiro lugar, a mercadoria força de trabalho, mas também a terra ou a mercadoria dinheiro, etc.). Assim, quando Marx faz essa redução, fá-lo de forma bastante consciente de acordo com seu método. Ele parte de uma abstração: a mercadoria como expressão e forma de representação da contradição específica entre a sociabilidade e seu caráter privado (Privatheit), ou seja, uma sociabilidade que se constitui na forma privada. Isso, porém, só pode ser feito porque, no decurso do processo de investigação precedente, já se obteve uma compreensão do contexto da totalidade capitalista, cuja característica fundamental é girar em torno de um princípio central: o trabalho abstrato e sua forma reificada de representação, o valor.5 Só por essa razão ele pode revelar os aspectos básicos da lógica capitalista na mercadoria e, partindo dessa abstração, desdobrar o contexto capitalista global.
5.
É, no entanto, uma deficiência da apresentação de Marx o fato de não ter tornado essa ligação suficientemente explícita e de, com essa falta de clareza, ter possibilitado interpretações altamente divergentes e contraditórias da sua teoria. Isso se aplica sobretudo ao significado e à importância da forma da mercadoria para a análise do contexto capitalista total. Tal deficiência, porém, não se deve apenas a uma apresentação inadequada, mas indica que Marx não pôde desfazer esse nó de forma teórica e coerente nos termos do seu próprio modo de exposição. A essência do problema é que, embora Marx coloque desde o início a mercadoria como produto do trabalho privado, ele não aborda de modo explícito o estádio logicamente pressuposto desses mesmos trabalhos privados e da relação deles entre si, abordando-o apenas de passagem. Ao fazê-lo, contudo, não atribui ao trabalho ou ao trabalho privado a importância sistemática que este deveria ter, de acordo com a pretensão de ascensão do abstrato ao concreto. De fato, ao contrário do que é afirmado em O Capital, Marx ignorou o primeiro nível lógico em vez de partir dele (cf. também Lohoff 2017).
Essa ambiguidade é já visível nos Grundrisse. Marx aborda aqui a divisão da sociedade em indivíduos isolados; e, ao dizer que a “dependência recíproca e multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes forma sua conexão social”, refere-se ao fato de os indivíduos se relacionarem entre si por meio do seu trabalho. Em seguida, salta imediatamente para o nível do valor de troca e do dinheiro: “essa conexão social é expressa no valor de troca, e somente nele a atividade própria ou o produto de cada indivíduo se torna uma atividade ou produto para si; o indivíduo tem de produzir um produto universal – o valor de troca, ou este último por si isolado, individualizado, dinheiro” (MEW 42, p. 90). [p; 157] Enquanto Marx ignora aqui completamente o nível da mercadoria, ele o coloca no início da análise em O Capital, mas sem abordar explicitamente a estrutura básica da sociabilidade insociável e, sobretudo, sem esclarecer a relação entre mercadoria e trabalho privado. Por um lado, como mostrei, ele comenta em algumas passagens que trata a mercadoria como produto do trabalho privado e, portanto, toma como base a relação entre trabalho privado e produção de mercadorias; por outro, em algumas passagens parece que essa relação só se estabelece no ato da troca. E, finalmente, em pelo menos um momento, sugere uma interpretação naturalizante, segundo a qual o poder de formação do valor do trabalho pode ser atribuído ao dispêndio de energia (“nervo, músculo e cérebro”).
O trabalho privado isolado e o seu produto, a mercadoria, são de fato os dois lados da mesma relação social. Em outras palavras, os produtos do trabalho privado isolado assumem necessariamente a forma de mercadoria. Na sociedade capitalista, as pessoas se confrontam umas às outras como indivíduos isolados e são, ao mesmo tempo, absolutamente dependentes entre si. Elas se relacionam produzindo coisas umas para as outras. No entanto, fazem-no de um modo específico que reflete a relação social contraditória básica: produzem essas coisas sob uma forma privada, uma forma que é ao mesmo tempo social. O que lhes interessa nas coisas que eles próprios produzem não é o seu uso material concreto, mas o fato de entrarem em uma relação social com as outras coisas produzidas de modo privado, na medida em que são, de certo modo, equiparáveis. No entanto, essa equiparação a “coisas com valor” ou a representações do valor só é possível porque as coisas qualitativamente diferentes têm algo em comum: são todos produtos do trabalho privado isolado. Só neste sentido historicamente específico é que se pode dizer que o trabalho constitui a relação social e produz a mediação social. O valor, por seu turno, não é mais do que a representação reificada dessa relação social, que remonta à estrutura básica da sociabilidade insociável e não tem absolutamente nada a ver com qualquer tipo de “dispêndio de energia”.6
O trabalho é, portanto, o lado ativo de uma relação social que se exprime coisificadamente no valor. São os indivíduos isolados que produzem essa relação, atuando de forma historicamente específica no interior da matriz pressuposta da sociabilidade insociável e relacionando-se entre si nessa matriz.7 De um ponto de vista lógico, o trabalho, como forma de ação dos produtores privados isolados, deve, assim, representar o ponto de partida de uma crítica da economia política orientada para o método marxiano de ascensão do abstrato ao concreto. Afinal, as mercadorias só existem como tais porque antes foram produzidas como produtos do trabalho privado. Ao mesmo tempo, os trabalhos privados não podem simplesmente relacionar-se entre si como tais, mas apenas sob a forma de mercadorias. É isso que a máxima de Marx sobre o caráter de fetiche da mercadoria aponta: as pessoas confrontam suas próprias relações sociais como relações entre coisas que adquirem poder sobre elas. Esse caráter de fetiche das mercadorias resulta da mediação do trabalho e não apenas da troca de mercadorias, como se argumenta amiúde.8 Em vez de se estabelecer na troca, a relação social entre indivíduos isolados apenas aparece na forma (Gestalt) de valor de troca. Se, por conseguinte, se saltar o nível da mediação pelo trabalho, isso tem de levar à confusão à medida que a análise avança.
6.
O que foi dito até agora poderia eventualmente sugerir que a análise e a crítica da sociedade capitalista como um todo deveriam ser desenvolvidas a partir da categoria do trabalho privado ou da mediação do trabalho. Não é essa a intenção. O objetivo era, antes, determinar o ponto de partida adequado para a crítica da economia política no sentido do método de Marx. A crítica da economia política é, sem dúvida, indispensável para compreender o contexto interno da sociedade capitalista e sua dinâmica histórica. No entanto, não é de forma alguma capaz de compreender essa sociedade em todos os seus momentos, e estes certamente não podem ser “derivados” da crítica da economia política.
Os indivíduos isolados se relacionam entre si e com seu contexto social não só pelo trabalho e levando seus diversos trabalhos moldados pela mercadoria ao denominador comum do valor, relacionando-se uns com os outros socialmente de outros modos. Embora estejam internamente relacionados com a mediação pelo trabalho e pela produção de mercadorias, não podem ser diretamente atribuídos a ela. Pelo contrário, sua conexão interna reside no fato de que todos eles estão inseridos na matriz da sociabilidade insociável e resultam dela. A omnipresença da categoria do interesse aponta para essa conexão interna. Estamos habituados a utilizá-la sem problemas para caraterizar as relações entre as pessoas, com as coisas ou com o ambiente – em um sentido muito amplo que não se esgota de modo algum no significado econômico comum da palavra. Na verdade, porém, a omnipresença de relações de interesse na sociedade é tudo menos algo natural; ela se refere antes ao modo historicamente específico como as pessoas interagem entre si na sociedade burguesa.
A categoria de interesse exprime o fato de um terceiro fator mediador se interpor entre o indivíduo e as suas manifestações da vida, bem como entre os indivíduos entre si e o seu contexto social (Neuendorff 1973, p. 18). As necessidades não se expressam como tais, mas como interesse em algo (em certas coisas ou meios) que satisfazem essas necessidades. O interesse propriamente dito permanece como uma caixa preta. Ele já não precisa de justificativa; é reconhecido como uma expressão de indivíduos que, por princípio, não têm de dar conta dos seus impulsos, motivos e necessidades: “o interesse aparece, assim, como algo que fundamenta a si próprio. É simultaneamente causa e consequência da mediação entre dois seres que, por suposição, são essencialmente estranhos um ao outro: o sujeito e seus objetos” (Neuendorff 1973, p. 17). Nesse sentido, o interesse é par excellence a forma social de manifestação do indivíduo isolado. O eu como indivíduo isolado não precisa de justificativa para “querer”. As razões para isso são exclusivamente suas. Todos os interesses são reconhecidos como iguais em princípio; são indiferentes em ambos os sentidos da palavra.
O princípio básico de todas as relações na sociedade burguesa é, portanto, a indiferença. As pessoas relacionam-se umas com as outras como estranhos, como exterioridades, que, no fundo, só se interessam umas pelas outras na medida em que podem retirar daí algum benefício privado.9 Em outras palavras: fazem do outro o objeto dos seus interesses particulares. Ao mesmo tempo, porém, colocam-se mutuamente na condição de sujeitos. Precisamente neste sentido, podemos dizer que a forma fundamental em que os indivíduos isolados se relacionam entre si e com a sociedade é a forma do sujeito.
7.
A forma do sujeito, nesta perspectiva, não é outra coisa senão a forma historicamente específica como os indivíduos isolados se relacionam com o mundo, ou, em outras palavras: a forma geral assumida pelos pensamentos, ações e sentimentos das pessoas na matriz da sociabilidade não social. Isso se aplica não só à relação interpessoais e ao seu contexto social, mas também à relação com a natureza e até com o próprio corpo, que aparece como uma coisa a ser moldada e usada de acordo com a sua própria vontade. O filósofo moderno René Descartes já formulou isso de um modo radical no início da era burguesa, quando invocou a capacidade cognitiva do indivíduo isolado como a única certeza. Aqui, o sujeito reduz-se ao ponto de vista pontual do puro “eu penso”, enquanto tudo o resto, incluindo a própria corporeidade, é atribuído ao mundo das coisas externas, a res extensa, sobre as quais não se pode fazer quaisquer afirmações confiáveis, pois se trata de algo estranho ao sujeito. Ao fazê-lo, ele antecipou o que se estabeleceria como forma geral de relação social ao longo dos três ou quatro séculos seguintes (Lohoff 2005, p. 28 e segs.). Não por acaso Descartes é considerado o fundador da filosofia moderna do sujeito.
O conceito de sujeito aqui utilizado representa tanto um estreitamento quanto uma ampliação do seu uso habitual nas ciências sociais e na filosofia. Estreitamento na medida em que o termo é reservado à forma historicamente específica de relação dos indivíduos abstratos na sociedade burguesa, em vez de aplicá-lo à história da humanidade, como é normalmente o caso. Isso, por outro lado, também implica uma ampliação, pois nos permite analisar essa forma de relação com mais precisão e mostrar que ela representa uma ruptura qualitativa em relação às formas anteriores de socialização. No seu uso comum, o conceito de sujeito representa geralmente a diferenciação do homem em face da natureza e a emergência da individualidade, que conduz ao desenvolvimento do indivíduo burguês dotado de livre arbítrio. No entanto, isto sugere uma continuidade no desenvolvimento histórico que está (muitas vezes involuntariamente) ainda muito na tradição do pensamento histórico-filosófico do progresso e obscurece assim a ruptura qualitativa representada pela instauração da sociedade burguesa.10 O distanciamento em face da natureza e o desenvolvimento da individualidade assumiram formas muito diferentes ao longo da história, mas é apenas no interior da matriz da sociabilidade insociável que ele assumem o caráter reificado e reificante que pode ser definido em sentido estrito com o conceito de relação sujeito-objeto.
Essa compreensão historicamente específica do conceito de sujeito também significa que ele não é mais, em um duplo sentido, equiparado ao conceito de indivíduo. Em vez disso, denota uma forma específica de relacionamento entre indivíduos essencial para a sociedade burguesa em um sentido mais geral. Em primeiro lugar, essa forma determina o comportamento dos indivíduos abstratos entre si e em relação ao seu contexto social, porque e na medida em que se constituem como indivíduos isolados que confrontam uns aos outros externamente como estranhos. Em segundo lugar, determina também a ação dos atores coletivos, como partidos, sindicatos, empresas e, não menos importante, o Estado (Lohoff 2005, p. 42-50) no relacionamento objetivado entre si, com a sociedade e os indivíduos. Em terceiro lugar, como já referido, molda também a relação instrumental com a natureza, que aparece como uma coisa a ser usada e controlada.
Essa distinção entre sujeito e indivíduo também nos permite falar de uma superação da forma do sujeito em sentido emancipatório (ver também Lohoff 2006). Isso não significa a aniquilação do indivíduo no coletivo, como nas ideias filosóficas, políticas e esotéricas do anti-modernismo regressivo, que representam o reflexo obscuro da apologia acrítica do indivíduo burguês-abstrato. Pelo contrário, significa a criação de uma sociedade que desenvolve a individualidade, uma sociedade em que as pessoas não se confrontam em uma alienação radical e na objetivação mútua, mas como indivíduos livremente associados que dispõem em comum acordo do seu contexto social.
8.
Encarar a forma-sujeito neste sentido historicamente específico como uma forma fundamental e geral de relação tem consequências significativas para uma teoria crítica da sociedade burguesa. Antes de mais, significa colocar a forma do sujeito no início da análise do contexto social. Ernst Lohoff já apresentou essa ideia há vários anos no ensaio O encantamento do mundo (Lohoff 2005), mas infelizmente isso não foi sistematicamente retomado e desenvolvido na teorização posterior da crítica do valor. Essencial no argumento de Lohoff é que a forma do sujeito não seja entendida nem como categoria trans-histórica, como em grande parte do discurso das ciências sociais, nem como uma forma que é determinada pelas categorias da mercadoria e do valor, como tem sido defendido na tradição teórica da crítica da forma do valor e da crítica do valor11; é antes uma forma de ação e de pensamento historicamente específica que permeia todas as formas de relação entre os indivíduos isolados, bem como entre estes, a sociedade e a natureza, dando-lhes uma forma comum. Isso permite compreender todas essas formas no seu contexto interno sem, no entanto, “derivá-las” umas das outras. Pelo contrário, sua ligação interna consiste no fato de que elas são diferentes manifestações da forma comum de relação que resulta da matriz subjacente da sociabilidade insociável.
Esse fato que já se tornou claro para a mediação pelo trabalho e para a forma da mercadoria baseada nele. Para a forma jurídica, como outra forma central de relação na sociedade burguesa, a conexão é muito semelhante, o que, infelizmente, só pode ser indicado aqui. No discurso marxista refletido (como a “Nova Leitura de Marx”) ou na linha teórica crítica do valor, a forma jurídica está diretamente associada à forma da mercadoria. Não há dúvida de que há uma conexão interna entre as duas. A argumentação que apresentei aqui, porém, resulta em que a forma jurídica não pode ser “derivada” da forma da mercadoria (ou mesmo do processo de troca), mas que ambas as formas estão logicamente situadas no mesmo nível. São formas diferentes através das quais as pessoas se relacionam no âmbito da matriz da sociabilidade insociável, que pode ser rastreada até à forma do sujeito como a forma básica de relação na sociedade burguesa.
Isso fica claro quando olhamos novamente para o padrão lógico básico de como os indivíduos isolados se relacionam. Enquanto indivíduos externos e alheios uns aos outros e voltados apenas para seus interesses privados, estabelecem uma relação entre si se ambos esperam algum benefício dela. Essa relação implica obrigações mútuas, definidas com a maior exatidão possível, e termina quando tais obrigações são cumpridas (Neuendorff 1973, p. 26). No entanto, isso descreve apenas uma relação contratual, ou seja, o padrão básico da forma jurídica. A troca de mercadorias ou o ato de compra é certamente o tipo clássico dessa relação, pois aqui fica clara a obrigação mútua, mas é apenas um tipo particular de contrato entre muitos outros. Em princípio, todas as relações entre indivíduos isolados assumem a forma de um contrato e têm, portanto, um caráter jurídico. A universalidade da forma jurídica na sociedade burguesa exprime, assim, o fato de que as pessoas não se socializam diretamente, mas apenas por meio dos desvios de um terceiro elemento mediador que se interpõe entre elas.
O que foi dito sobre a forma jurídica aplica-se também essencialmente a todas as outras formas de relação dos indivíduos isolados com o mundo. Embora tenham uma conexão interna com a forma da mercadoria, não podem ser “derivadas” dela, surgindo, em vez disso, conjuntamente da forma de socialização pressuposta. Isso se aplica à coisificação das relações pessoais e à relação com o próprio eu, bem como ao tratamento objetivante da natureza interna e externa ou às formas de pensamento e conhecimento da ciência moderna. A sua conexão interna consiste na forma comum, a forma historicamente específica de ação e pensamento do sujeito, cuja característica essencial é tratar o mundo inteiro como um objeto externo. O modo específico como isso acontece varia de acordo com as diferentes conexões e conteúdos da ação e, por conseguinte, está também sujeito a diferentes trajetórias. Por exemplo, a objetivação mútua nas relações pessoais tem lugar em moldes diferentes dos de um desenvolvimento teórico-científico ou da acumulação de capital. A crítica social também deve ter isso em conta, analisando os diferentes domínios com diferentes métodos teóricos, sem esquecer, porém, que se trata de manifestações distintas de uma forma comum de ação e de pensamento e, como tal, de momentos de um contexto social comum.
O mesmo se aplica a todos os momentos da sociabilidade que escapam ao alcance objetivante do sujeito sobre o mundo e que são cindidos como um reverso “irracional” da racionalidade unidimensional dessa forma de ação e de pensamento. Tais momentos formam uma parte inseparável do contexto social. As pessoas constituem-se como sujeitos não apenas transformando-se mutuamente em objetos, mas também criando, como contrapartida, várias figuras de um “outro”, um não-sujeito, no qual é projetado tudo o que não se enquadra na lógica da objetivação. A história de constituição do sujeito está sedimentada nas figuras centrais do não-sujeito, a “mulher” e o “negro”. Estes são construídos como antítese da primeira figura histórica do sujeito, o homem branco, ocidental e burguês, e aparecem de diferentes formas como não racionais, emocionais-sensíveis e apegados à natureza (Habermann 2008, p. 176 e seguintes; Lohoff 2005, p. 23 e seguintes; Scholz 1992; Böhme/Böhme 1985). Finalmente, além disso, surgiu a figura do “judeu”, imaginado ao mesmo tempo como um não-sujeito e um super-sujeito, alguém que transformou a incapacidade de se integrar nas exigências contraditórias que a forma de sociabilidade insociável coloca para as pessoas em uma luta insidiosa e oculta pelo poder e que visa a dissolução da integridade do sujeito. Mesmo que tais construções projetivas tenham sofrido modificações no decurso da generalização histórica da forma de socialização capitalista, os seus princípios básicos ainda continuam válidos. Isso porque a forma do sujeito depende em um sentido constitutivo de um “outro” como contrapartida da sua própria lógica redutiva.
A lógica básica dessa cisão pode ser inicialmente situada ao nível da constituição do sujeito, mas permeia todas as esferas sociais e reproduz-se aí de uma forma específica. A forma do trabalho é paralela às atividades de cuidado e de relação invisibilizadas como “não-trabalho” socialmente inscritas como “femininas”. O lado obscuro da forma jurídica é aquilo que Giorgio Agamben já descreveu com o conceito de “vida nua”, ou seja, o estado de absoluta ausência de direito e vulnerabilidade em que as pessoas estão completamente expostas à arbitrariedade dos outros, como nas condições de corrosão do Estado ou na figura do apátrida e do refugiado (Lewed 2004). E a contrapartida da ciência positivista moderna é formada pelos mais diversos tipos de esoterismo e ideologias conspirativas. Todos esses elementos têm o seu próprio caráter, que deve ser analisado em separado, e mesmo assim formam um contexto negativo como diferentes variantes do “outro” cindido. Para que sejam adequadamente compreendidos, devem ser sempre analisados em relação à forma constitutiva de pensar, agir e se relacionar da sociedade burguesa.
9.
A abordagem aqui delineada representa uma mudança em relação à perspectiva habitual da crítica do valor, na qual a forma da mercadoria ou o valor e o trabalho abstrato constituem o ponto de partida da análise. Para a crítica da economia política, isso leva a um ajuste, com o trabalho privado e a mediação do trabalho sendo colocados no início. É preciso ter em conta que isso não diminui em nada a crítica da relação de fetiche e a respectiva teoria da crise (Lohoff 2013), antes contribui para torná-la mais precisa. O que muda, contudo, é a perspectiva sobre o contexto capitalista global. Se tomarmos a forma do sujeito, como a forma geral de relação, como ponto de partida para a crítica, podemos compreender todos esses momentos da sociedade burguesa na sua conexão interna e, ao mesmo tempo, analisá-los em seu caráter específico. Com a forma do sujeito, a ação é colocada no início da análise; não a “ação” em sentido ficcional supra-histórico, como no individualismo metodológico, mas ação em uma forma já historicamente específica que resulta da matriz da sociabilidade insociável.
O individualismo metodológico pressupõe sempre essa forma de socialização como supra-histórica. Representa um método das ciências sociais cego em relação à forma. Ele coincide, por outro lado, com o paradigma oposto da teoria estrutural, que insiste no primado da estrutura social sem ser capaz de relacioná-la com a forma de socialização subjacente. Também o marxismo amiúde se deixou enredar nessa falsa dicotomia entre teoria estrutural e teoria da ação. Aliás, isso também se aplica – embora não inteiramente – à crítica do valor e àquilo a que mais tarde se veio a chamar de crítica do valor-cisão. Se começamos a análise pela socialidade insociável e pela forma-sujeito, podemos superar essa contradição. Por enquanto isso só pode ser formulado aqui provisoriamente como um programa que ainda precisa ser concluído.12
Bibliografia
Bierwirth, Julian (2015): Henne und Ei. Der Wert als Einheit von Struktur und Handlung, Krisis 1/2015, www.krisis.org/2015/henne-und-ei/
Böhme, Gernot/ Böhme Hartmut (1985): Das Andere der Vernunft, Frankfurt/M. 1985
Habermann, Friederike (2008): Der homo oeconomicus und das Andere, Baden-Baden 2008
Heinrich, Michael (1999): Die Wissenschaft vom Wert, Münster 1999
Kant, Immanuel (1784): Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, in: Der Bonner Kant Korpus, Band VIII, S. 15 – 31. https://korpora.zim.uni-duisburg-essen.de/kant/
Kurz, Robert (2012): Geld ohne Wert, Berlin 2012
Lewed, Karl-Heinz (2004): Von Menschen und Schafen, in: Krisis 28, Münster 2004
Lohoff, Ernst (2005): Die Verzauberung der Welt, in: Krisis 29, Münster 2005
Lohoff, Ernst (2006): Ohne festen Punkt. Befreiung jenseits des Subjekts, in: Krisis 30, Münster 2006
Lohoff, Ernst (2013): Auf Selbstzerstörung programmiert. Über den inneren Zusammenhang von Wertformkritik und Krisentheorie in der Marx‘schen Kritik der Politischen Ökonomie, Krisis 2/ 2013, www.krisis.org/2013/ernst-lohoff-auf-selbstzerstoerung-programmiert/
Lohoff, Ernst (2017). Zwei Bücher – zwei Standpunkte, www.krisis.org/2017/zwei-buecher-zwei-standpunkte/
MEW 23 = Marx, Karl, Das Kapital, Band 1
MEW 42 = Marx, Karl: Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie
Neuendorff, Hartmut (1973): Der Begriff des Interesses, Frankfurt/M. 1973
Postone, Moishe (2003): Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft, Freiburg 2003
Roman Rosdolsky (1968): Zur Entstehungsgeschichte des Marxschen Kapital, Frankfurt 1968
Scholz, Roswitha (1992): Der Wert ist der Mann, in: Krisis 12, Bad Honnef 1992
Schumpeter, Joseph (1970): Das Wesen und der Hauptinhalt der theoretischen Nationalökonomie. 2. Aufl. Berlin 1970
Simmel, Georg (1908): Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung. Frankfurt/M., 1992.
Schumpeter, Joseph (1970): Das Wesen und der Hauptinhalt der theoretischen Nationalökonomie. 2. Aufl. Berlin 1970
Trenkle, Norbert (1993): Fragmente zur Selbstkritik der Männlichkeit, in: Krisis 13, Bad Honnef
Trenkle, Norbert (2002): Gebrochene Negativität. Anmerkungen zu Adornos und Horkheimers Aufklärungskritik, in: Krisis 25, Bad Honnef 2002, S. 39 – 65
1 Michael Heinrich também se refere a este fato, falando de uma “ruptura com o campo teórico da economia política” (Heinrich 1999, p. 154 e seguintes). Deixo de lado aqui o fato de ele deslocar a mediação da oposição entre indivíduo e sociedade para a esfera da circulação.
2 O termo foi provavelmente cunhado e usado pela primeira vez pelo economista político Joseph Schumpeter (1970, p. 90f.), que reivindicou essa abordagem metodológica.
3 O termo “sociabilidade insociável” foi utilizado em várias ocasiões em textos de crítica do valor desde os anos 1990 e é geralmente atribuído a Marx. Até onde sei, entretanto, Marx não utiliza esse termo em parte alguma, ainda que sua análise seja bastante preciso em relação à constituição contraditória da sociedade burguesa.
4 Kurz amplia o conceito de individualismo metodológico para que ele se refira não apenas às “ações dos indivíduos”, “mas a algo idealmente individual; ou seja, também no sentido institucional ou categorial” (Kurz 2012, p. 59 f.). [p. 55] Nesse sentido, “a mercadoria individual, por mais que se a entenda de forma ideal-típica, não pode abarcar em si a lógica da própria relação e, por isso, também não pode ser o objeto mentalmente isolado de uma análise essencial” (ibid.). [p. 152] Para uma crítica detalhada à acusação de Kurz de que Marx caiu no individualismo metodológico, ver Lohoff 2017.
5 É só por causa dessa centralização que se pode falar de uma totalidade e por isso mesmo a sociedade capitalista é a única na história à qual esse termo pode ser aplicado em sentido estrito (cf. Postone 2003, p. 133).
6 Nos seus últimos escritos, Robert Kurz seguiu, infelizmente, cada vez mais uma definição naturalizante do trabalho abstrato como o “dispêndio de trabalho humano e de energia vital (nervo, músculo, cérebro)” (Kurz 2012, p. 204) [p. 183], ao ponto de fazer a afirmação estranha de que a “energia de trabalho substancial despendida flui … para um fundo global do capital” (ibid.).
7 O conceito de matriz pretende mostrar que a sociabilidade insociável é uma constituição ao nível mais profundo da sociedade, que precede as formas de relação nela baseadas e que não pode ser adequadamente apreendida pelo conceito de estrutura.
8 Sobre a mediação do trabalho, ver mais detalhes no livro de Moishe Postone (2003, S. 224 ff.).
9 É precisamente aqui que reside o caráter profundamente instrumental das relações na sociedade burguesa. Isso geralmente é associado ao trabalho. Essa forma de relacionamento de fato emerge mais claramente na mediação pelo trabalho. É preciso deixar claro, no entanto, que o caráter instrumental não decorre da forma material, concreta, da própria atividade, do uso de ferramentas ou da aplicação da tecnologia, como é frequentemente presumido nas ciências sociais e, por exemplo, na Teoria Crítica clássica, em particular Max Horkheimer (cf. Postone 2003, p. 169 e seguintes). Pelo contrário, deve-se ao fato de as pessoas na sociedade capitalista relacionarem-se entre si através da conexão social estabelecida principalmente pelo trabalho. Nesse sentido, o caráter instrumental do trabalho indica a matriz subjacente da sociabilidade insociável.
10 Esse momento de retroprojeção da forma burguesa do sujeito também pode ser encontrado em Adorno e Horkheimer, em particular na Dialética do Esclarecimento, mas também na Dialética negativa (ver Trenkle 2002).
11 Cf. por exemplo Bolay/Trieb (1988, p. 75 e seguintes), que formulam uma crítica da identidade do Eu, mas defendem um conceito positivo de sujeito. Na tradição teórica da Krisis a forma da mercadoria também muitas vezes precedia a forma do sujeito. Embora tenhamos enfatizado que a forma mercadoria não é de forma alguma apenas uma categoria econômica, mas representa antes uma forma de conexão social, o nexo entre as duas formas permaneceu vaga. A título de exemplo, cito um texto que escrevi em 1993: “Na perspectiva dominante da ciência social positivista, bem como na do marxismo clássico, ela [a forma do valor e da mercadoria; N.T.] é uma simples ‘categoria econômica’, e não teria, portanto, muito a ver com o problema do qual nos ocupamos aqui, nomeadamente o da subjetividade e da dicotomia de gênero. A forma do valor ou da mercadoria, porém, é muito mais do que isso. É um modo como as pessoas se relacionam entre si, um princípio formal, uma estrutura básica que está sempre pressuposta em todas as categorias sociais e em todos os comportamentos humanos na sociedade burguesa. Ao dividir o contexto social em nada mais do que mônadas concorrentes de compradores, vendedores e de trabalho, constitui uma ‘relação objetivada [sachlich] entre pessoas’ e ‘uma relação social entre coisas’” (Trenkle 193, p. 100 e seguintes).
12 Julian Bierwirth (Bierwirth 2015) já se debruçou sobre estas questões há alguns anos e traçou algumas pistas que devem ser seguidas. Devo ao seu ensaio muitas sugestões para a redação deste texto.