31.12.2020 

O outro Marx.

Por que a teoria de Marx permanece atual mesmo sem uma nova luta de classes

por Norbert Trenkle
Traduzido por Marcos Barreira

Publicado em Soziopolis 9.6.2020
Deutsche Version

Em vista da enorme desigualdade na distribuição da riqueza social, fala-se cada vez mais de um “retorno da sociedade de classes”, tanto nas ciências sociais quanto na mídia e no debate político. Nas ciências sociais, esse termo significa sobretudo o aumento da discussão sobre a divisão social e suas causas, que são analisadas a partir de várias perspectivas teóricas e empíricas.1 No entanto, pode-se observar também um renascimento midiático e político do conceito marxista tradicional de classe.2 Enquanto o investidor e multibilionário Warren Buffet proclamou cinicamente em 2006: “há uma guerra de classes, certo, mas é a minha classe, a dos ricos, que trava essa guerra e estamos ganhando”,3 políticos de esquerda como Bernie Sanders e Jeremy Corbyn tentaram novamente mobilizar a “classe trabalhadora” contra o “capital”.

Em um primeiro momento, essa referência ao conceito marxista de classe e ao paradigma da luta de classes pode parecer plausível, mas, após uma análise mais atenta, essa aparência se desfaz. As divisões sociais de hoje têm pouco a ver com a contradição de classes postulada por Marx e Engels no Manifesto comunista e, assim, não podem mais ser compreendidas adequadamente por meio das categorias da teoria marxista das classes. De qualquer forma, esse sempre foi apenas um lado da teoria de Marx. E se isso ainda caracteriza a percepção geral hoje, é porque foi essa teoria que se tornou politicamente eficaz nos séculos XIX e XX e, portanto, alcançou alguma notoriedade. Há, no entanto, outro lado da teoria, que Marx desenvolveu em particular na sua obra principal, O Capital, e nos respectivos estudos preparatórios (Grundrisse, Para a crítica da economia política etc.). O foco aqui não é a crítica do capitalismo como sociedade de classes, mas como sistema social baseado na produção de mercadorias que se torna independente das pessoas e as confronta em uma forma reificada como “segunda natureza”. É esse lado da teoria de Marx que ainda é muito atual hoje – ou melhor, especialmente hoje – porque tem uma explicação plausível não apenas para a crise progressiva da sociedade capitalista, mas também para as divisões sociais, políticas e econômicas associadas a ela. O outro lado, que se concentra no paradigma da luta de classes, pelo contrário, há muito se tornou obsoleto; se hoje ele vive um renascimento, isso se deve mais a uma necessidade nostálgica da esquerda do que ao seu potencial analítico.

Os dois lados da teoria

Para justificar essa tese, primeiro precisamos examinar o núcleo da teoria das classes de Marx. De acordo com essa teoria, a oposição entre capital e trabalho é uma contradição antagônica, ou seja, a oposição irreconciliável de dois princípios sociais contraditórios, que resulta do fato de a acumulação de capital se basear na exploração da força de trabalho. Como o capital está sujeito à pressão pela multiplicação inexorável e ilimitada, porém, ele gradualmente transforma a grande massa de pessoas em assalariados e, dessa forma, cria a força social que abolirá o sistema capitalista (Marx falou em coveiros do capitalismo). Nessa perspectiva, no entanto, o trabalho não é apenas uma antítese interna e sistêmica do capital, mas e, no sentido histórico-filosófico, elevado a um poder supra-histórico que cria todos os valores e é considerado a “essência” da história humana; assim, ele ocupa o lugar que Hegel reservou para o “Espírito”. Portanto, a emancipação social é concebida como o vir a si mesmo dessa suposta essência, como a libertação do trabalho da dominação e da exploração e como a realização de uma sociedade baseada no trabalho geral. Nessa visão, o ponto de vista do trabalho é, portanto, idêntico ao ponto de vista da emancipação, e a classe operária representa “em si mesma” o além do capitalismo no interior do próprio capitalismo.4

No século XIX, essa tese talvez ainda parecesse plausível, mas mesmo assim ela era fundamentalmente errada, como se pode ver retrospectivamente. Em primeiro lugar, a oposição entre capital e trabalho nunca foi uma contradição antagônica de dois princípios inconciliáveis, mas sempre foi uma oposição imanente de interesses dentro de um sistema de referência social, que, até certo ponto, também poderia ser regulado, como demonstrou a era do boom fordista; em segundo lugar, o papel central do trabalho na sociedade como o “criador de todos os valores” não é, de forma alguma, um princípio supra-histórico da sociedade em geral, mas antes uma característica historicamente específica do modo de produção capitalista.5

O que distingue essencialmente esse modo de produção de todos demais, até aqui, é – em um nível analítico muito básico – a fragmentação da sociedade em indivíduos isolados que se relacionam apenas externamente uns com os outros por meio da produção de mercadorias.6 Em outras palavras: as pessoas criam seu contexto social produzindo privadamente coisas de modo anônimo para os outros. Isso dá ao seu trabalho despendido de modo privado um significado muito especial: para os indivíduos isolados, esse é o meio específico de socialização. O que lhes interessa em seu trabalho não é, em primeiro lugar, seu lado material-concreto, ou seja, a produção de um determinado valor de uso, mas o lado abstrato, que representa a generalidade abstrata do trabalho como mediação social e que se expressa no valor de troca das mercadorias. Em princípio, é secundário se eles próprios produzirem esses bens ou venderem sua força de trabalho como mercadoria e receberem seu valor na forma de salário.

O essencial é que a produção de riqueza no capitalismo assume uma forma historicamente específica. Uma vez que os indivíduos se interessam apenas pelo lado abstrato-social do trabalho despendido, a produção na sociedade como um todo é orientada apenas para essa abstração expressada em valor. Em outras palavras, é a produção de “riqueza abstrata”, de riqueza que abstrai completamente todas as propriedades material-concretas das coisas produzidas e das respectivas condições de produção. No entanto, se os indivíduos usam seu trabalho como meio para adquirir outras mercadorias, uma lógica diferente se aplica no nível da sociedade como um todo. Aqui, a finalidade da produção é imediatamente o próprio valor. A produção é realizada para transformar uma determinada soma de valor em ainda mais valor, ou seja, para acumular capital; pois o capital nada mais é do que a autorreferencialidade do valor, valor que só se mantém se for repetidamente lançado no ciclo econômico para se multiplicar. Dessa forma, o valor expressado nas mercadorias se torna independente de seus produtores e se impõe sobre eles e sobre o contexto social como um todo. É o que Marx chama de fetichismo da produção de mercadorias.

O trabalho é, portanto, uma categoria essencial e central da sociedade capitalista. Ele não está em uma oposição externa à categoria do capital, mas está na sua base e é até idêntica a ela em um nível fundamental. Pois o valor nada mais é do que a forma reificada do trabalho abstrato passado, que é de fato uma loucura, mas uma loucura socialmente real. Não se trata de negar o conflito de interesses entre capital e trabalho, mas é importante enfatizar que ele está situado em uma relação social comum e, portanto, não é antagônico no sentido marxista tradicional.

O fim da conciliação de interesses

O fato de esse conflito de interesses ter se resolvido muitas vezes com dureza – e amiúde de forma violenta – é da natureza do problema. Uma vez que o capital, em seu impulso de valorização, depende da utilização extensivo da mercadoria força de trabalho, é de seu interesse reduzir ao máximo o valor dessa mercadoria (expresso no salário). Inversamente, os assalariados querem vender sua força de trabalho da forma mais cara possível. Sem um salário suficiente eles não podem ter acesso à riqueza social, o que significa poder comprar os bens de consumo de que precisam para viver. Em última análise, esse é um conflito distributivo, uma disputa sobre como o valor que se expressa nas mercadorias é dividido entre capital e trabalho.

Como esse conflito está localizado em um contexto social comum, ambas as partes, apesar de toda a oposição, também têm o interesse comum em manter a produção de riqueza abstrata. É por isso que geralmente respeitam as regras do jogo ditadas por essa forma de riqueza. Em primeiro lugar, isso significa que a acumulação de capital deve prosseguir. Do contrário, nem o capital cumpre seu objetivo de fazer do dinheiro mais dinheiro, nem os vendedores da força de trabalho terão o dinheiro para ganhar a vida. Esse ponto em comum básico é a razão pela qual, em vez da ruptura do capitalismo, a oposição entre capital e trabalho ao longo do século XX encontrou formas de mediação dos diferentes interesses e de regulação política da relação entre eles.

De uma perspectiva histórica, o auge da reconciliação regulada de interesses entre capital e trabalho foi a era do fordismo. Isso não é coincidência, pois nessa época o capital se expandiu a uma taxa historicamente sem precedentes e, portanto, necessitava constantemente de mais força de trabalho. Por outro lado, isso permitiu que os vendedores da força de trabalho vendessem sua mercadoria em condições relativamente boas e participassem da riqueza das mercadorias em um grau até então inimaginável. O rompimento dessa constelação histórica não ocorreu apenas com o colapso do chamado socialismo, como se afirma com frequência hoje. Em vez disso, pode ser situado uma década e meia antes. Ele foi desencadeado pelo fim do boom fordista e pelo início da Terceira Revolução Industrial, que levou a um salto qualitativo no desenvolvimento das forças produtivas. Como Marx já havia previsto nos Grundrisse,7 a ênfase passou da força produtiva do trabalho para a força produtiva do conhecimento, o que implicou na supressão em massa do trabalho na produção. Isso melhorou a posição de poder dos capitais, permitindo-lhes reduzir salários e piorar as condições de trabalho, mas eles também perderam a massa de trabalho na produção que é o fundamento da sua própria valorização. A consequência disso foi uma profunda crise de valorização do capital que durou até a década de 1980.8

Apesar de todas as medidas neoliberais brutas para diminuir o poder dos sindicatos e desregulamentar as condições de trabalho, não havia como sair dessa crise renovando a base produtiva da valorização do capital. Isso não foi possível porque, uma vez atingido um nível de desenvolvimento das forças produtivas, ele não pode mais ser revertido. Portanto, não há retorno a uma constelação na qual o capital se valoriza com base no trabalho em massa na produção. Em vez disso, a desregulamentação neoliberal e a transnacionalização dos mercados financeiros abriram as portas para uma nova era de acumulação de capital que já não tinha como base principal a valorização do capital. A utilização da força de trabalho e a absorção da mais-valia na produção de mercadorias deu lugar à acumulação de capital fictício.9

A era do capital fictício

O capital fictício nada mais é do que uma antecipação de valor futuro, ou seja, valor ainda não produzido, mas que já produz efeitos aqui e agora. Os meios técnicos para tal são os títulos financeiros (ações, títulos, futuros, etc.), que garantem o direito a uma determinada quantidade de dinheiro e sua ampliação através de juros ou dividendos. A “produção” em massa desses instrumentos financeiros e sua negociação nos mercados financeiros permitiram quatro décadas de multiplicação de capital, embora a base para a produção ampliada de mais-valor há muito tenha deixado de existir. A esse respeito, a crise fundamental da valorização do capital, que tem origem na década de 1970, nunca foi resolvida. Em vez disso, ela foi e continua sendo encoberta e substituída pela acumulação maciça de capital fictício nos mercados financeiros, por uma “acumulação de capital sem acumulação de valor”.10 Essa antecipação de valor futuro não pode continuar indefinidamente, pois o enorme acúmulo de promessas futuras não cumpridas leva a crises financeiras crescentes, com efeitos devastadores sobre os ciclos “econômicos reais” e os serviços públicos. No entanto, essa foi a força motriz por trás de uma enorme dinâmica de expansão capitalista que levou à imposição definitiva do modo de produção e do modo de vida capitalista em todo o planeta.

Ao mesmo tempo, a relação entre capital e trabalho mudou tão profundamente nesta era do capital fictício que mesmo o conflito imanente de interesses entre as duas categorias perdeu sua posição social central. À primeira vista, essa afirmação pode parecer surpreendente, pois é claro que a grande maioria da população mundial nunca foi tão dependente do trabalho assalariado e da produção de mercadorias. De modo paradoxal, porém, o capital se tornou amplamente independente da exploração da mercadoria força de trabalho, precisamente porque a ênfase da acumulação se deslocou para a esfera do capital fictício. É claro que isso não significa que não há mais exploração da força de trabalho. Isso seria absolutamente contrafactual. A produção de mais-valia, porém, há muito deixou de ser o motor da acumulação de capital e se tornou, ela própria, uma variável que depende da dinâmica do capital fictício nos mercados financeiros.11 Em nenhum outro lugar isso é mais evidente do que no setor de construção, o setor atualmente mais dinâmico da “economia real”. Os investimentos só são feitos aqui enquanto a especulação imobiliária, que é a referência central para a acumulação de capital fictício, continua em curso. Só então as pessoas têm a oportunidade de vender seu trabalho. O reverso disso, no entanto, é que em muitas regiões, especialmente nas grandes cidades e aglomerações urbanas, elas já não podem ter uma moradia porque os preços dos imóveis estão explodindo.

A dependência das atividades econômicas reais e, assim, do dispêndio de trabalho, em relação à dinâmica dos mercados financeiros é um fenômeno geral na era do capital fictício. Isso se aplica à produção industrial, bem como ao setor terciário, que só fornece a maioria dos empregos atuais porque é alimentado pela renda e pelos lucros gerados principalmente pelo capital fictício por meio da antecipação de valor futuro. O preço dessa dependência é, obviamente, alto para o trabalho. Como o capital não depende mais primordialmente da força de trabalho em seu movimento de acumulação, ele pode ditar em grande parte os termos da sua venda. Essa é a principal razão para a precarização e intensificação geral do trabalho, que são acompanhadas por uma profunda perda do poder dos sindicatos e partidos trabalhistas.12 Há também uma enorme concentração de riqueza, porque o capital fictício se multiplica nos mercados financeiros de modo autorreferenciado, sem se incomodar com desvios por meio da exploração da força de trabalho na produção de mercadorias.

Apesar dessa mudança na dinâmica de acumulação da valorização na produção e nos mercados financeiros, a exploração implacável dos recursos naturais avança em ritmo acelerado. De um lado, isso se deve simplesmente à globalização e à imposição geral do modo de produção e de vida capitalista, mesmo em regiões que, até três ou quatro décadas atrás, ainda pertenciam à periferia capitalista.13 De outro, é precisamente o enorme aumento da produtividade na esteira da Terceira Revolução Industrial que impulsiona a exploração das bases naturais da vida. Isso não se deve às novas tecnologias em si, mas ao deslocamento em massa de força de trabalho dos setores centrais da produção industrial, o que contradiz os imperativos da produção de riqueza abstrata. Isso ocorre porque a redução maciça do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de cada mercadoria individual também leva a uma redução na parcela de valor representada nas mercadorias, como pode ser visto, por exemplo, na queda dos preços de muitos produtos que antes possuíam caráter exclusivo. O gasto material para a produção dessas mercadorias, contudo, não é afetado por esse fato e tende a permanecer o mesmo ou pode até aumentar; mas, como o valor, ou seja, a riqueza abstrata, é o único objetivo da produção capitalista, as empresas tentam compensar essas perdas relativas aumentando a produção absoluta de mercadorias e, assim, precisam consumir quantidades crescentes de recursos. Portanto, é necessário um uso cada vez maior de materiais para manter o nível anterior de produção de riqueza abstrata. Sob as condições da produção de riqueza abstrata, o potencial de produtividade que poderia ser usado em outras circunstâncias sociais para reduzir maciçamente as horas de trabalho e organizar a produção de acordo com as necessidades se transforma em um risco para a humanidade. Por um lado, aceleram a destruição ecológica, por outro, tornam cada vez mais pessoas “supérfluas”14, impossibilitando-as de vender sua força de trabalho e mergulhando-as na miséria. Os principais movimentos migratórios da atualidade são apenas uma expressão de tais desenvolvimentos.

Crítica e emancipação

Assim como o conflito entre trabalho e capital perdeu sua posição social central, os conceitos tradicionais de emancipação baseados no ponto de vista do trabalho também estão em crise. Até o início do século XX, as lutas sociais ainda podiam, de fato, centrar-se na categoria do trabalho. Mesmo que ela não apontasse para além do capitalismo, como afirmavam os teóricos do marxismo tradicional, ela era essencial para a luta pelo reconhecimento dos vendedores da força de trabalho como sujeitos-mercadoria plenamente válidos na sociedade capitalista. Com a imposição geral da produção de mercadorias, porém, a venda da mercadoria força de trabalho tornou-se a regra social e o mercado de trabalho representa o quadro de referência principal para o qual se deslocou a concorrência geral. Embora não tenha desaparecido, o conflito de interesses entre capital e trabalho é, em grande parte, encoberto pela concorrência entre os próprios vendedores da força de trabalho, que competem pela sua parte da riqueza mercantil. Isso é agravado pelo fato de que as pessoas têm cada vez mais de lutar para permanecer nesse quadro de referência, ou seja, para poder vender sua própria força de trabalho a fim de não se tornar completamente “supérflua”. O trabalho está perdendo, assim, sua posição central como categoria de integração e uniformização social forçada e se tornando uma força motriz da desintegração social. Diante disso, a invocação enfática do “ponto de vista do trabalho” e da “classe trabalhadora” perde qualquer ponto de referência na realidade social.

A crise que resulta da crítica tradicional do capitalismo deixou um vazio ainda não preenchido por uma nova perspectiva de emancipação social. Esse fato não deve nos tentar a retirar do armário a venerável teoria das classes. Ela foi descartada, com toda razão, porque já não tinha respostas adequadas para as crises e contradições sociais atuais. Também não adianta inflar o conceito de luta de classes até ele englobar todos os conflitos e movimentos sociais relevantes atualmente, desde a resistência à apropriação de terras (land grabbing) na América Latina até os movimentos pela moradia e as lutas queer-feministas nos centros capitalistas ou a ação climática global.15 Dessa forma o conceito de classe é ampliado para além de algo reconhecível e perde toda a nitidez analítica. É verdade que há uma similaridade entre todas essas lutas e conflitos muito diferentes; mas ela não consiste em um interesse comum superior (e certamente não é um “interesse de classe”) e só pode ser determinada negativamente, através da crítica. Os protestos e os movimentos sociais surgem de maneiras diferentes nas linhas de conflito traçadas pela dinâmica imperial da riqueza abstrata. Entretanto, tal conexão permanece invisível caso não exista um conceito crítico dessa forma historicamente específica de produção da riqueza. De um ponto de vista empírico, seus efeitos são muito diferentes nos vários âmbitos e dimensões sociais.

Quatro linhas de conflito hoje são especialmente virulentas nos centros capitalistas: o preço elevado das moradias, as mudanças climáticas, a precarização das condições de trabalho e a imigração. Todas elas resultam diretamente da forma específica de progressão da produção de riqueza abstrata na era do capital fictício e da tentativa de adiar novamente os limites para os quais o modo capitalista de produção é empurrado. Quem tentar reduzir todos esses conflitos ao denominador comum de um interesse geral estará fadado ao fracasso, pois ele simplesmente não existe. Pelo contrário: em muitos casos, os interesses nas várias linhas de conflito são diametralmente opostos. Por exemplo, quando os precarizados nos centros capitalistas temem a deterioração das condições de trabalho e o aumento dos preços das moradias como resultado da imigração. Ou quando as medidas de política climática, como o imposto sobre o CO2, ameaçam os empregos e aumentam o custo da gasolina, do aquecimento e da eletricidade. Em vez de união, crítica e resistência entram em conflito entre si.

Uma tarefa importante da teoria social crítica hoje é, portanto, mostrar como as várias linhas de conflito e contradições resultam da dinâmica desencadeada da produção de riqueza abstrata, a fim de chegar a um denominador negativo comum. Se isso for bem-sucedido, fornecerá pontos de orientação para uma prática emancipatória que pode reunir as linhas de conflito aparentemente díspares e iniciar um processo de transformação fundamental no curso do qual a sociedade se reinventa. A perspectiva geral e unificadora seria uma forma consistente de contenção (Zurückdrängung) da produção de mercadorias, bem como da apropriação do potencial social, para além da lógica do mercado e do Estado. Para a solução da “questão da habitação”, por exemplo, isso significaria questionar a propriedade privada da terra e, ao mesmo tempo, desenvolver novas formas de organização cooperativa da moradia e do ambiente doméstico. Uma transformação consistente do setor de energia exigiria sua transferência em estruturas comunitárias e auto-organizadas. E uma redução radical das horas de trabalho, que há muito está na agenda devido à produtividade extremamente alta, só será possível se a subsistência em boas condições não depender mais da renda.

O discurso de classe sempre pergunta principalmente sobre “quem”, pois ele quer identificar o suposto ator da emancipação. A negação determinada da produção abstrata de riqueza, por outro lado, fornece elementos sobre “o quê”, ou seja, o conteúdo do processo de emancipação social. A questão dos atores desse processo assume, então, um caráter secundário. Como eles não existem a priori, só podem se formar nas várias linhas de conflito. O Manifesto do partido comunista lhes serve de referência apenas no que diz respeito ao formidável ímpeto revolucionário. Quanto ao exame substantivo da emancipação e de seus obstáculos, é preciso recorrer a “outro Marx”, ou seja, àquela parte da teoria de Marx que o marxismo tradicional ainda ignora em grande parte.

1 Desde a grande crise financeira e econômica surgiu um número quase incontrolável de publicações sobre esse tema. Alguns exemplos são: Thomas Piketty, Das Kapital im 21. Jahrhundert, Munique 2014; Didier Eribon, Rückkehr nach Reims, Berlim 2016; Oliver Nachtwey, Die Abstiegsgesellschaft, Berlim 2016; Heinz Bude / Philipp Staab (eds.), Kapitalismus und Ungleichheit. Die neuen Verwerfungen. Frankfurt am Main / Nova York, 2016.

2 Por exemplo, Slavoy Žižek, Der neue Klassenkampf, Berlim 2015; Sebastian Friedrich / Redaktion Analyse & Kritik (ed.), Neue Klassenpolitik, Berlim 2018.

3 Warren Buffet em entrevista com Ben Stein, em: New York Times, 26 de novembro de 2006, www.nytimes.com/2006/11/26/business/yourmoney/26every.html?_r=0 (7 de junho de 2020).

4 Moishe Postone, Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft, Freiburg 2003, p. 111 e seguintes. Essa tese foi elaborada filosoficamente e ficou famosa por Georg Lukács no ensaio de 1923 “Die Verdinglichung und das Bewusstsein des Proletariats”, em: ders., Geschichte und Klassenbewusstsein, Darmstadt 1988, pp. 170-355). Para uma crítica, ver Postone, Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft, pp. 122 e segs., e Norbert Trenkle, Die metaphysischen Mucken des Klassenkampfs, em: Krisis 29 (2005), pp. 143-159. É evidente aqui que “o materialismo histórico representa apenas a inversão da filosofia idealista da história e não sua superação”.

5 Postone, Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft, p. 229 e seguintes.

6 Norbert Trenkle, Ungesellschaftliche Gesellschaftlichkeit, www.krisis.org/2019/ungesellschaftliche-gesellschaftlichkeit/

7 Karl Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, em: Marx-Engels-Werke vol. 42, Berlim 1983, p. 599 e seguintes.

8 Ernst Lohoff / Norbert Trenkle, Die große Entwertung, Münster 2012, p. 75 e seguintes.

9 Lohoff/Trenkle, Die große Entwertung.

10 Ernst Lohoff, Kapitalakkumulation ohne Wertakkumulation, in: Krisis (2014), 1, www.krisis.org/2014/kapitalakkumulation-ohne-wertakkumulation/ (7.6.2020).

11 Norbert Trenkle, Die Arbeit hängt am Tropf des fiktiven Kapitals, in: Krisis (2016), 1, www.krisis.org/2016/die-arbeit-haengt-am-tropf-des-fiktiven-kapitals/ (7.6.2020).

12 Norbert Trenkle, Workout. Die Krise der Arbeit und die Grenzen der kapitalistischen Gesellschaft, www.krisis.org/2018/workout-die-krise-der-arbeit-und-die-grenzen-der-kapitalistischen-gesellschaft/ (7.6.2020).

13 Ulrich Brand / Markus Wissen, Imperiale Lebensweise, München 2017.

14 Zygmunt Baumann, Verworfenes Leben, Bonn 2005.

15 É assim que a “nova política de classe” tenta reabilitar o conceito de classe (Friedrich/Redaktion Analyse & Kritik, Neue Klassenpolitik).