por Nikolaus Gietinger
Milhões de migrantes trabalham nos Estados do Golfo, mas não no negócio principal de petróleo ou gás. Eles trabalham arduamente nos prédios de ostentação sem sentido das cidades futuristas do deserto.
A lista de escândalos em torno da realização da Copa do Mundo masculina da Fifa no país desértico e islâmico do Catar é longa: o emirado é conhecido por inúmeras violações de direitos humanos e relatório “Freedom in the World 2021”, da ONG norte-americana Freedom House, classifica o país como “não livre”. A homossexualidade é punida com sete anos de prisão segundo a lei do Catar, baseada na Sharia. Muçulmanos homossexuais enfrentam até a pena de morte, ainda que nunca tenha sido realizada para esse fim. O Catar anunciou amigavelmente que as bandeiras do arco-íris serão permitidas durante a Copa do Mundo.
Além das denúncias de corrupção em torno da escolha do Catar para a Copa do Mundo, a situação dos migrantes envolvidos na construção da infraestrutura para o torneio também é um tema muito discutido. A ONU e várias ONGs exigem, com razão, a abolição de condições análogas à escravidão. No entanto, o que muitas vezes fica no esquecimento é uma análise das razões do sistema de trabalho dos imigrantes, que existe não apenas no Catar, mas em todos os países do Conselho de Cooperação do Golfo (GCC), que inclui Bahrein, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.
Em 1971, foi descoberto ao longo da costa do Catar o maior campo de gás natural já conhecido; de acordo com estimativas atuais, ele mantém reservas quase tão grandes quanto todos os outros campos de gás do mundo juntos. No mesmo ano, o país tornou-se independente da Grã-Bretanha. Além do gás, as jazidas de petróleo também trouxeram lucros imensos. Hoje, 80% da receita estatal do Catar e 90% de suas exportações provêm do negócio de petróleo e gás. É a partir deles, portanto, que se alimenta o poder de investimento do país.
Nos anos 80 e 90, o Catar recrutou principalmente a mão de obra de árabes das “nações irmãs” muçulmanas por causa da língua e da religião em comum. Posteriormente, porém, tentou-se recrutar trabalhadores sem ligação com a região do Golfo, pois eles são mais fáceis de explorar sem habilidades linguísticas e como estrangeiros.
Eles se voltaram então para o sul e o sudeste da Ásia por causa de sua relativa proximidade, mas principalmente pela combinação de falta de indústria, desemprego e densidade populacional típicas dessa região. Também a indústria têxtil há décadas usa países como Indonésia, Bangladesh, Índia e Vietnã como reservatórios de força de trabalho barata. Atualmente, em média, 70% da força de trabalho nos países do CCG são migrantes. No Catar, apenas cerca de 10% da população é local. Os demais são principalmente da Índia, Bangladesh, Nepal, Egito, Filipinas, Paquistão e Sri Lanka.
Os cidadãos do Catar trabalham principalmente no serviço público e na administração. Como em outros Estados do Golfo, o sistema Kafala (“patrocínio”) regula as condições de vida e de trabalho dos migrantes. Geralmente é o empregador que atua como fiador legal. Isso torna os trabalhadores particularmente dependentes e cria um grande desequilíbrio de poder entre eles e o empregador. Não é incomum que os migrantes tenham seus passaportes confiscados na entrada e retidos pelo empregador até o final do contrato. A Vital Signs, organização que estudou a extensão e as causas de morte entre a mão de obra de migrantes na região do Golfo, estima que cerca de 10.000 pessoas do Sul e Sudeste da Ásia morrem todos os anos nos países do CCG. Observadores como Nicholas McGeehan e a Anistia Internacional descrevem o sistema Kafala como escravidão moderna. Embora tenha sido formalmente abolida em alguns países do GCC, pouco mudou em termos práticos. Apesar dessas condições, milhões de pessoas vão trabalhar nos Estados do Golfo. A situação em seus países de origem é praticamente desesperadora e, mesmo que os salários no Golfo sejam muito baixos para os padrões ocidentais, os trabalhadores podem reservar uma parte do dinheiro e transferi-lo para suas famílias. Esas remessas estrangeiras já atingiram enormes proporções: em 2013, quase um quarto das remessas do mundo – cerca de 90 bilhões de dólares americanos – veio dos Estados do GCC. Em 2018, os países do GCC já respondiam por quase US$ 80 bilhões de remessas para o exterior somente para os países do sudeste asiático. Isto corresponde a cerca de 60% de todas as remessas para essa região.
Em um relatório publicado em 2020, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula que em 2019, 287 bilhões de dólares americanos em remessas de migrantes fluiram para 17 países asiáticos. Essas remessas representam uma parte do produto interno bruto (PIB) dos países em questão que não se pode subestimar. Essa proporção é mais alta no Nepal, que obtém cerca de 30% de seu PIB dessas remessas. Em outros países, como Paquistão, Filipinas ou Sri Lanka, sua participação no PIB varia entre 8 e 10%. No Vietnã, Camboja, Mianmar, Bangladesh e Afeganistão, as remessas representam cerca de 4,5% a 6,5% do PIB.
Devido a essa dependência econômica, os países de origem dos migrantes têm poucas possibilidades de apoiar seus nacionais pela via diplomática para melhorar as condições de trabalho ou aumentar os salários. Em vez disso, eles incentivam a migração de mão-de-obra porque ela traz dinheiro para o país e reduz o desemprego. Muitas vezes se assume na imprensa, como em algumas edições especiais da Copa, que todo país que passa por uma industrialização acabará inevitavelmente em algum momento com um Estado constitucional democrático segundo o modelo dos países industrializados ocidentais nos anos 1960, incluindo direitos trabalhistas universais. Isto não teria acontecido no Qatar por causa de sua ascensão rápida como nação rica. Países como a Rússia, China, Irã ou Turquia são exemplos vívidos que refutam essa tese da teoria do desenvolvimento. A FIFA, entre outros, argumenta com o impacto positivo da Copa do Mundo sobre a situação dos direitos humanos no Catar; mas é questionável se uma há uma mudança realmente relevante no Catar em relação aos direitos humanos e trabalhistas; além disso, as medidas impostas durante a Copa do Mundo para melhorar a imagem do país podem ser revogadas em seguida.
Aceitar que “o Ocidente” terá influência positiva sobre uma nação supostamente atrasada por meio da cooperação internacional no contexto de um evento esportivo global é um absurdo, já que muitas empresas ocidentais estão envolvidas em projetos de construção no Catar. Um exemplo: em Doha, capital do Catar, foi construído um metrô para a Copa do Mundo. A Deutsche Bahn, Hochtief e a empresa de máquinas de perfuração de túneis Herrenknecht da tranquila cidade de Schwanau-Allmannsweier, em Baden-Württemberg, desempenharam um papel fundamental. Todas essas empresas se beneficiaram das condições de trabalho em que os migrantes estão submetidos no Catar. Uma vantagem civilizacional, assim, só pode ser reivindicada de forma muito limitada.
As explicações pós-coloniais também encontram um limite aqui: não ocidentais saqueiam outros não ocidentais. A economia global é complexa demais para ser reduzida a conflitos da época colonial. Os Estados do GCC podem obter lucros imensos como rentistas de petróleo e gás, também porque a extração quase não requer mão-de-obra humana. A empresa petrolífera estatal Qatar Energy, por exemplo, tinha apenas 8.500 funcionários em 2019, que gerariam um faturamento de cerca de 30 bilhões de dólares americanos em 2020. Portanto, praticamente não há empregos para imigrantes nesse setor.
As cidades planejadas que estão sendo construídas no meio do deserto simbolizam a futilidade do capitalismo. Eles devoram grandes quantidades de concreto e outros recursos e servem apenas ao exibicionismo da monarquia. Não se constrói para atender às necessidades básicas das pessoas, mas para saciar o narcisismo de uma elite podre de rica. No entanto, sem esse frenesi de construção nos Estados do Golfo, o problema do desemprego na Ásia e na África seria ainda mais urgente. As críticas à Copa do Mundo no Catar carecem de uma perspectiva global que possa mostrar que não se trata de um conflito de valores no qual “o bem” vencerá. O Catar não é uma anomalia em um mundo perfeito; as condições lá são parte de uma crise global do trabalho que está sendo explorada pelos Estados do Golfo.
Tradução: Javier Blank / Marcos Barreira