por Maurilio Lima Botelho
O problema da criminalidade violenta teve um papel destacado na campanha de Jair Bolsonaro em 2018. Na eleição atual esse tema reaparece diluído na retórica contra adversários, que Bolsonaro acusa de usar as leis para “defender bandidos”. A falta de um debate exprime o fracasso das políticas de segurança de governos passados e a singularidade do “projeto” de Bolsonaro.
A militarização
O caráter excludente da modernização brasileira, que se esgotou na década de 1980, produziu uma realidade urbana de subemprego e sobrevivência precária na informalidade. A economia do crime se tornou uma opção de “emprego”. Estima-se que só na cidade do Rio de Janeiro cerca de 100 mil pessoas estavam envolvidas com o tráfico de drogas na década de 1990.
No período da “redemocratização”, a política de segurança de vários governos deu continuidade às técnicas da ditadura militar. Além do uso regular da polícia militar no combate ao crime comum – herança da repressão aos grupos de esquerda durante a ditadura –, tornou-se comum a atuação das Forças Armadas em operações de segurança. Nos anos 2000, o governo criou uma Força Nacional de Segurança para operações mais “flexíveis” e um sistema prisional federal que reuniu os líderes de facções criminosas.
Após a eleição de Lula, a ilusão de uma nova era de “desenvolvimento nacional” e protagonismo internacional encontrou nos megaeventos (Jogos Olímpicos e Copa do Mundo) a sua imagem midiática ideal. Isso também exigia uma “imagem de segurança”. No Rio, “Cidade Olímpica”, foi criado um “novo” modo de lidar com o crime. Além do uso intensificado das Forças Armadas, uma coalização política permitiu a criação de bases de ocupação policial-militar em muitas favelas, que passaram a ter o seu cotidiano comandado pelo braço armado do Estado. O “novo” nessa ocupação era usar a polícia militar fortemente armada para viabilizar a “inclusão social”, com medidas paliativas de amparo às comunidades pobres. Uma vez que muitas dessas favelas eram ocupadas pelas facções do tráfico, o Estado podia legitimar a sua ação como uma “conquista da cidadania” pelos moradores. A “pacificação” realizada por soldados com fuzil e tanques de combate transformou a polícia em um suposto “instrumento de transformação social”.
Em meio a esse conflito, surgiu nas periferias e favelas do Rio um novo ator: a “milícia”. Elas aparecem como uma nova forma de exploração econômica da violência e
uma parte de seus membros são ex-agentes públicos de segurança que passam a atuar por conta própria, apresentando-se como uma força de combate às facções do tráfico e como “restauradores da ordem”. Mas a disputa entre grupos milicianos e ampliação de sua atuação, que passou a incluir a venda de drogas, demonstra que se tratava basicamente de grupos paramilitares explorando áreas socialmente arruinadas, onde podiam impor diretamente uma “ordem” baseada nas armas. Ao contrário de uma “força do Estado”, como assume parte da esquerda, as milícias que atuam nas periferias do Rio se assemelham mais aos “senhores da guerra” de “failed states”. Mas graças a essa imagem de “restauração da ordem” e aos enormes lucros, esses grupos se expandiram para outras cidades brasileiras. O período dos governos “progressistas” foi marcado, assim, pelos crescentes índices de violência.
Welcome to the Jungle
A ascensão de Bolsonaro, um parlamentar inicialmente voltado para os interesses corporativos da “família militar”, não pode ser explicada fora desse contexto de expansão da criminalidade violenta. Bolsonaro ficou conhecido nacionalmente como uma figura caricata que pregava medidas draconianas “contra os bandidos”. O discurso da “autodefesa comunitária” das milícias combinava com isso. Também o crescente protagonismo militar na segurança pública levou alguns dos generais envolvidos nas “missões de paz” internas e externas (Haiti, por exemplo) a se aproximarem de Bolsonaro. O “projeto” de Bolsonaro consistia, assim, em mudanças na legislação para torná-la mais permissiva em relação ao uso arbitrário da violência policial-militar ou no apelo à violência direta, sem mediações institucionais. Não por acaso, “os direitos humanos” tornaram-se um dos alvos principais do discurso bolsonarista.
Já no governo, Bolsonaro deu amplo apoio ao armamento da população civil, inicialmente como parte do discurso sobre a segurança, mas pouco a pouco o discurso armamentista ganhou também uma conotação ideológica: a “defesa da liberdade” contra os desmandos das instituições. Uma diferença importante em relação aos governos anteriores pode ser resumida nessa autonomização do “uso legítimo da violência”, que é acompanhada de um recrudescimento das ações violentas das forças estatais. Isso só foi possível por meio do desmonte sistemático das instituições de proteção a direitos, dos órgãos fiscalizadores e até mesmo das estruturas de corregedoria.
Esse quadro de desregulamentação não fortaleceu apenas as milícias do Rio; ele produziu um reforço de práticas criminosas em vários níveis. No interior do país, há uma proliferação de atividades ilegais estimuladas pela destruição dos organismos de combate à extração predatória de madeira e à mineração ilegal. Em decorrência disso, hoje um terço das cidades mais violentas do país estão na Amazônia e há um recorde de incêndios associados a atividades econômicas clandestinas.
Em sua tentativa de reeleição, Bolsonaro tem sido criticado por não possuir uma política de segurança. Seu “projeto”, porém, consiste na disseminação sem qualquer controle das armas de fogo e no estímulo a ações informais – ou mesmo ilegais – das polícias. Nos primeiros meses do seu mandato, Bolsonaro também comemorou as mortes em uma rebelião no interior do sistema prisional. Tratava-se de um ajuste de contas entre facções, como parte da cartelização do crime organizado, que levou a uma diminuição dos homicídios – ainda que, no mesmo período, os crimes com arma de fogo tenham aumentado. Essa é a solução inacreditável de Bolsonaro: que os criminosos matem uns aos outros e que, por sua vez, o “cidadão de bem” tenha acesso irrestrito às armas. A antipolítica regressiva de Bolsonaro resulta em um quadro de anomia onde os conflitos armados e a violência aberta se aprofundam diante dos escombros do monopólio estatal da violência. Como um milhão de novas armas em circulação legal, ainda que perca a eleição, Bolsonaro já produziu um legado de propagação da violência difusa.