de Norbert Trenkle
Publicado em alemão na revista Jungle World 14/ 2022, 7.4.2022
A invasão da Ucrânia faz parte de uma ofensiva em larga escala por parte de um regime autoritário movido pela idéia ameaçadora de que ele deve mudar a ordem mundial a seu favor. Essa ofensiva é dirigida não apenas contra um país, mas contra tudo o que representa o “Ocidente corrompido” aos olhos de Putin e de seus seguidores. Isso inclui em particular a “decadência sexual”, isto é, a homossexualidade, e a chamada ideologia de gênero, bem como a destruição dos “valores culturais tradicionais”. Por trás disto está uma ideologia abertamente fascista, como demonstrado, por exemplo, pelo sociólogo Greg Yudin de Moscou.
Para as forças emancipatórias, na verdade, deveria ser uma questão natural opor-se ao regime de Putin. É certo que isso os alinha com quem iguala a luta contra o autoritarismo com a defesa dos chamados valores universais da democracia, da liberdade e da economia de mercado. O problema aqui não é só que essa frente unida inclua forças que não estão livres de tendências antidemocráticas, mas também que o tão apregoado universalismo há muito tempo foi desmoralizado pela realidade, e essa é uma das principais razões para a ofensiva global do autoritarismo.
Os valores democrático-liberais são universais apenas em sua exigência abstrata. Sua base material, a sociedade produtora de mercadorias, baseia-se, porém, em formas sistemáticas de exclusão e na clivagem social entre vencedores e perdedores. Portanto, ela nega permanentemente essa aspiração abstrata. É verdade que a sociedade produtora de mercadorias é universal na medida em que ela se impôs como um grande impulso por todo o planeta. Ao mesmo tempo, porém, mostrou que se tratava de algo feito para minorias: só uma parte relativamente pequena da população mundial pode levar uma vida até certo ponto confortável e segura e ter acesso ao que promete a Carta dos Direitos Humanos. Esse modo de vida para minorias se baseia, por outro lado, na pilhagem implacável e global dos recursos naturais.
A tentativa, depois da ruptura de 1989, de estabelecer uma “Nova Ordem Mundial” baseada na democracia e na economia de mercado estava, portanto, destinada a terminar em desastre. Após o fracasso dos projetos de modernização capitalista-estatal recuperadora sob o sinal ideológico do socialismo, a ofensiva neoliberal dos anos 1990 deixou um rastro de devastação em grande parte do mundo. Nas ruínas dessas tentativas fracassadas de modernização, floresceram regimes cleptocráticos e autoritários, bem como movimentos fundamentalistas, que contribuíram para a desintegração das respectivas sociedades. As tentativas de controlar militarmente tais tendências, onde elas se tornaram perigosas demais para os Estados ocidentais, só pioraram a situação. A guerra do Iraque de 2003, em particular, devastou ainda mais o país já combalido, desestabilizando toda a região e mergulhando-a em um estado de guerra permanente.
Também o regime de Putin é um produto da transformação catastrófica da Rússia a partir das ideias radicais de mercado, mas com a diferença considerável de que o país foi novamente estabilizado. Putin contou com forças significativas no aparato de segurança e militar e colocou sob controle os chamados oligarcas, que enriqueceram imensamente durante a privatização selvagem dos anos 1990. Embora tivessem permissão para continuar a conduzir seus negócios, eles foram obrigados a reconhecer a autoridade do Estado e a ceder parte de seus lucros a fim de construir sua legitimação. Depois que os preços da energia subiram, foi possível colocar novamente em dia os salários no grande setor estatal, assim como as pensões e alguns pagamentos de transferências sociais. A infraestrutura também foi modernizada, pelo menos nos principais centros.
Isso explica a popularidade de Putin, que continua até hoje, e que foi assegurada pela eliminação da oposição e da reestruturação autoritária do Estado e da sociedade. Mas ele também ganhou forte apoio popular ao prometer fazer da Rússia novamente uma grande potência, que dominaria uma “União Eurasiática”. Por trás disso está o desejo de vingança pela queda do império soviético e o período seguinte de transformação em economia de mercado, que provocou em muitas pessoas um sentimento profundo de vergonha. Essa é a base subjetiva da megalomania nacionalista e do ressentimento arraigado contra o “Ocidente”.
Portanto, o ataque à Ucrânia não deve ser explicado como uma reação às alegadas provocações por parte da OTAN ou dos EUA. Esse ataque segue um impulso completamente diferente, mais profundo, que pode ter sido reforçado pela política ocidental, mas não foi criado por ela. Muitas vezes são exatamente os derrotados na concorrência capitalista (ou aqueles que se sentem derrotados) que mobilizam mais energias regressivas para restaurar seu antigo status ou pelo menos para se vingar dos vencedores (ou de grupos substitutos) – ainda que o preço seja a destruição mútua. Este é também o motivo pelo qual Putin é tão popular na direita e na extrema-direita em todo o mundo. O ressentimento deles se alimenta de fontes semelhantes: ele surge de uma afronta identitária causada pela perda real ou aparente de uma posição de poder na sociedade.
O masculinismo acentuado que Putin representa também deve ser visto neste contexto, já que, na sociedade burguesa, a perda de poder toca o núcleo identitário da condição de sujeito masculino, que é definido principalmente pela autoafirmação na concorrência generalizada e é assegurado pela construção de uma feminilidade subordinada, que deveria representar exatamente o oposto dessa forma de subjetivação. Homens no mundo todo reagem com extrema agressividade ao abalo dessa ordem binária e hierárquica de gênero pelos movimentos feministas e pelas mudanças econômicas estruturais nas últimas décadas. O que está em jogo é o próprio núcleo de seu senso de identidade, que é defendido de modo agressivo, como evidencia o aumento assustador da violência sexual em nível mundial. Também neste sentido, Putin é a figura de identificação ideal. Ele representa um tipo de homem diminuído que resiste à dissolução da hierarquia burguesa de gênero e que bastante poderoso em termos políticos e militares para conduzir essa luta com sucesso.
Essa visão regressiva do mundo, que combina autoritarismo, masculinismo e culturalismo agressivo, porém, não se opõe como algo externo aos tão invocados valores da democracia e da liberdade; ela forma forma, por assim dizer, seu reverso irracionalista. Em vista do conflito atual, isso precisa ser lembrado com urgência. Se o público ocidental interpretar o conflito como uma luta entre dois sistemas de valores, a ameaça autoritária tem de aparecer como algo estranho que irrompe de fora em direção ao mundo das democracias liberais.
Várias tendências preocupantes são reforçadas por essa visão. Primeiro, a tendência à culturalização invertida do debate; o próprio falar sobre valores ocidentais é problemático, pois sugere que eles têm um caráter culturalmente específico. Em segundo lugar, um isolamento ainda mais forte dos centros capitalistas, ou seja, uma vigilância ainda mais rígida das fronteiras junto com uma exacerbação do nacionalismo. E terceiro, por fim, a militarização da sociedade (por exemplo, através do seu próprio rearmamento) e uma correspondente remasculinização, como já se pode ver na heroização da resistência ucraniana.
O autoritarismo não pode ser derrotado dessa maneira. Em vez disso, as chamadas sociedades ocidentais tornam-se cada vez mais semelhantes ao inimigo aparentemente externo e o universalismo dos valores democrático-liberais é novamente negado. É preciso defender as liberdades relativas permitidas pela vida nos centros capitalistas contra a ameaça autoritária. Mas isso só é possível se elas se forem desvinculadas da lógica da sociedade mercantil e, portanto, impelidas para além de si mesmas. É preciso exigir uma solidariedade transnacional de todas as forças que querem barrar o autoritarismo e, ao mesmo tempo, colocar um fim à mercantilização radical do mundo. O que é necessário é um novo universalismo da emancipação social.
Tradução Marcos Barreira