03.10.2022 

Lula e Bolsonaro: Entre a Gestão da Crise e a Barbarie

Deutsche Version

por Marcos Barreira e Javier Blank

Bolsonaro foi eleito há quatro anos numa onda antipetista que varreu a sociedade brasileira. Esse quadro mudou profundamente a partir da segunda metade do seu mandato em função da gestão desastrada da pandemia, do agravamento da crise econômica e das reviravoltas judiciais envolvendo o caso do ex-presidente Lula.

Em 2018, Bolsonaro contava com amplo apoio em todas as camadas sociais, das elites empresarias, por meio do fiador ultraliberal Paulo Guedes, aos mais pobres, com uma vinculação cada vez maior do populismo de extrema-direita com o meio evangélico; seu núcleo, porém, se encontrava nas camadas médias. Esse quadro começou a mudar ainda durante a pandemia, quando o princípio do “quanto menos governo, melhor”, que foi adotado na economia, passou a vigorar também como uma recusa de um plano de contenção do vírus. Bolsonaro fez o país atravessar o período de alta do contagio sem nenhuma diretriz e com medidas erráticas que tentavam apenas usar politicamente a crise social agravada pelo COVID-19. Isso acendeu um sinal de alerta para muitos eleitores que haviam apoiado Bolsonaro. Ao mesmo tempo, surgiam denúncias de esquemas de corrupção envolvendo a família do presidente e a proximidade do clã Bolsonaro com as milícias. Tudo isso produziu um desembarque de parte considerável dos eleitores de “classe média”.

Bolsonaro também teve uma votação expressiva entre os mais pobres, o que se explica em parte pela ausência de Lula na ultima eleição. Sem o adversário, ele pôde explorar os temas moral e da criminalidade violenta. A popularidade de Bolsonaro nessa ampla camada, porém, foi corroída rapidamente pela alta do desemprego e da inflação nos preços de alimentos e combustíveis. O governo atual de fato não tem nenhuma política para os mais pobres. Ele se baseia quase totalmente na desregulamentação do trabalho e dos direitos sociais, seguindo o lema: “melhor trabalho sem direitos do que direitos sem trabalho”. Aqui a economia ainda fala mais alto. Mesmo que o eleitorado na base da pirâmide social permaneça aberto à influência do extremismo de direita – especialmente devido ao crescimento de seitas evangélicas fundamentalistas – a lembrança do período de crescimento da “Era Lula” ainda favorece o ex-presidente.

Bolsonaro, por outro lado, mantém uma base relevante de apoiadores diretos e um eleitorado ainda expressivo. Desde o fracasso da sua escalada golpista de sete de setembro de 2021 (que comemora o dia da independência do Brasil), criou-se uma tensão entre o governo e a cúpula militar. Ao mesmo tempo, Bolsonaro foi obrigado a recuar em seus ataques às instituições e a negociar com o Congresso. Na prática, ele entregou parte substancial do orçamento do governo às lideranças parlamentares, o chamado “orçamento secreto”, evitando um processo de impeachment. Isso enfraqueceu a polarização entre o populismo de extrema-direita e o sistema de partidos tradicionais, que deu o tom na campanha de 2018, resultando em uma ampla incorporação desses partidos à base do governo. Desapareceu, assim, um elemento ideológico importante da “antipolítica” bolsonarista. O clã Bolsonaro se volta agora principalmente contra o sistema de urnas eletrônicas e usa o seu núcleo militante, que inclui apoiadores nas Forças Armadas, para pressionar o tribunal eleitoral – o que que indica a dificuldade eleitoral da extrema-direita em comparação com a eleição anterior.

A eleição de Lula em 2002 representou antes a crise do modelo neoliberal após uma década de “desregulamentação” e “modernização do Estado”, do que um projeto de esquerda com reformas sociais profundas. Ela se limitou a um conjunto de medidas de urgência, de administração da crise social. Foi também uma tentativa de saída institucional encontrada pelo próprio sistema partidário caído em descrédito por causa da corrupção. Lula formou então um “pacto social” com os partidos tradicionais, dos quais o PT até então havia se mantido afastado. Com o aval das elites econômicas, Lula colocou em prática um modelo de ativação do consumo das populações de baixa renda. Esse modelo produziu ganhos conjunturais importantes na base da pirâmide social, mas ele era menos “pacificador” do que se pensava, pois também gerou enormes tensões entre o governo identificado com a esquerda e as camadas médias. O “pacto social” de Lula funcionou sobretudo nos primeiros anos, até que os efeitos da crise de 2008 minaram progressivamente a sua base e deram origem à desestabilização interna. Uma década depois da crise mundial, o Brasil elegia a mistura salvacionista de populismo barato com retórica de extermínio, radicalismo de mercado e fundamentalismo religioso.

Outra parte essencial do populismo de extrema-direita é a revolta das camadas médias contra o sistema político. Aqui teve um papel central a Operação “Lava-Jato”, sustentada pela grande mídia. Antes dessa operação judicial-midiática, a crítica populista do sistema partidário se resumia a uma ideologia minoritária “intervencionista”, ou seja, ao apelo à intervenção das Forças Armadas no processo político. A “Lava-Jato” ampliou consideravelmente esse ataque ao sistema político. No entanto, ela era também um projeto de poder que construiu para si uma imagem messiânica – claramente ligada ao discurso evangélico – de salvação da nação. Por isso, a ofensiva judicial contra o ex-presidente Lula logo se transformou numa ofensiva contra toda a ampla base de apoio dos governos anteriores a Bolsonaro, a quem os procuradores e juízes da “Lava-Jato” se aliaram em 2018. Já no ano seguinte, porém, foram revelados bastidores da “operação”, com inúmeras irregularidades, o que tornou evidente o seu projeto de poder. Resultou daí a anulação das sentenças contra Lula, ao mesmo tempo em que essa exploração da revolta das camadas médias contra a política colidia também com os interesses políticos do governo Bolsonaro.

Com Lula solto e com os direitos políticos recuperados, teve início uma reação do “sistema político”. Não por acaso, Lula foi buscar em um antigo opositor político e nos representantes da agenda pró-mercado as alianças para a tentativa de recomposição do “pacto social” com os partidos tradicionais. As lideranças políticas fisiológicas já se voltam para Lula, especialmente nas regiões onde ele tem ampla vantagem nas pesquisas eleitorais. Enquanto a crítica da política é capturada pelo populismo de extrema-direita, coube ao principal representante da política de esquerda, mais ou menos como em 2002, apontar uma saída pactuada com as velhas lideranças da política.

O que está em questão nestas eleições, portanto, é a própria manutenção do sistema criado com o processo de democratização após o fim da ditadura militar – com uma liderança de esquerda desempenhando o papel de “última instância” de um sistema falido e desacreditado. Bolsonaro, por outro lado, e a despeito das manobras táticas, está onde sempre esteve: ele representa os setores mais ideologicamente fanatizados das Forças Armadas, que se opunham ao processo de “abertura” na década de 1980.

Desde a sua primeira vitória, em 2002, Lula já não representava nem mesmo uma perspectiva de reforma social, mas apenas a crise do antigo movimento operário e do projeto de esquerda. Enquanto Lula representa, portanto, a transformação do político em mera administração da crise, onde entram em cena o “diálogo” e a “sensibilidade social” como contraponto da lógica econômica draconiana de cortes e de retirada das proteções sociais, Bolsonaro pretende avançar agora sem os disfarces ideológicos da eleição anterior e já se apresenta como pura manifestação do desmonte institucional e da pilhagem econômica. Essa radicalização não o favorece. A confiar nas pesquisas, Lula tem chances reais até mesmo de uma vitória no primeiro turno. Mas isso não significa que uma transição será fácil. O bolsonarismo continua forte em um meio evangélico fundamentalista e nos setores radicalizados da “classe média”. Aqui proliferam discursos fantasmagóricos sobre a “ameaça comunista” na América Latina, fantasias de perseguição às igrejas, campanhas de “fake news” e a violência difusa das forças policiais e de fanáticos solitários. Mais do que isso, proliferam também os grupos armados e ideologicamente radicalizados, diretamente estimulados pelo clã Bolsonaro. Esse dispositivo paramilitar em gestação ameaça diretamente a transição política e a estabilidade de um novo governo. A eleição de Lula produz hoje muito mais tensões do que em 2002. A tentativa de assassinato de Cristina Kirchner na Argentina é um exemplo dessa escalada da polarização. E no caso de uma vitória da oposição, há uma dificuldade adicional para repetir os êxitos econômicos anteriores nas condições atuais. Sobre a urgência de criar novos empregos, Lula afirmou em um comício recente: “eu queria dizer para vocês que não sei como fazer”.