A economia planejada soviética fracassou por causa dos mecanismos concorrenciais da produção de mercadorias
por Julian Bierwirth
Um socialismo baseado no planejamento estatal da economia pode funcionar? Evgeniy Kazakov colocou essa questão em sua discussão sobre o governo de Mikhail Gorbachev. A partir do seu texto, a transição de uma economia planejada para uma economia de mercado, proclamada pela Perestroika, pode ser entendida, em última instância, como um caso flagrante de má administração. Gorbachev não estava familiarizado com a complexa política soviética em relação às nacionalidades, desvalorizou o partido, negligenciou as visitas regulares ao secretariado do Comitê Central e não prestou atenção suficiente à integração dos e das socialistas que defendiam a autogestão – “poor management, that’s all!”
O declínio econômico da economia soviética já era previsível há décadas, mesmo que não tivesse que resultar precisamente no curso de reforma que Gorbachev finalmente iniciou. A tentativa de forçar o surgimento de uma economia produtora de mercadorias através do planejamento estatal, após a Revolução Russa, pareceu inicialmente exitosa. A Rússia escassamente industrializada foi capaz de realizar, no contexto de uma “modernização recuperadora”, sua própria versão de “acumulação primitiva”. O que foi ali acumulado foi bastante claro para os envolvidos: capital.
Em pouco tempo foi construída a sua própria indústria pesada. No campo da industrialização de base, portanto, “a via soviética” pode certamente ser descrita como bem sucedida. A economia planejada, porém, não conseguiu posteriormente organizar a transição para uma sociedade de consumo com sua multifacetada diferenciação de produtos.
Já nos anos 1960, desajustes sistêmicos da produção planejada de mercadorias tornaram-se cada vez mais evidentes. Não apenas na enorme economia paralela [ou informal], mas também na produção, sempre ficando aquém do plano quinquenal. Ao mesmo tempo, apesar das inovações técnicas, para muita gente o padrão de vida quase não aumentou (se é que houve aumento), pois embora houvesse aumentos salariais, os bens de consumo correspondentes não estavam disponíveis nas lojas.
Surgiu uma sociedade de dois níveis baseada em dois “mercados” estritamente diferenciados, com os melhores produtos disponíveis para aqueles com posições mais altas na hierarquia socialista. Esta circunstância tem sido apresentada e criticada pelos marxistas tradicionais principalmente enquanto exploração dos trabalhadores pela “classe” gerencial. Mas há algo mais por trás dessa exploração: uma flagrante falta de funcionalidade da economia planejada, que resulta de uma contradição fundamental e inseparável da “produção socialista de mercadorias”. Como toda produção de mercadorias, ela se baseia na oposição dos interesses particulares dos produtores.
Cada unidade de produção individual está interessada em última instância na obtenção do maior número possível de vantagens em detrimento das outras. Em uma economia de mercado, isso se expressa na busca de altos lucros e rendimentos. Onde o Estado toma o lugar do mercado, as empresas tentam manipular as especificações do plano em seu favor. Elas se beneficiam do fato de que a autoridade do planejamento estatal depende das informações de baixo para poder elaborar um plano. Ao transmitir números realistas sobre suas próprias necessidades ou possibilidades produtivas, espera-se que as exigências de produção sejam aumentadas ou que as alocações de material sejam reduzidas no decorrer do processo de planejamento. Ao invés disso, as empresas tentaram antecipar como seria o plano e quais exigências elas enfrentariam. Era do seu interesse esconder seu próprio desempenho, porque assim seria mais fácil atingir o alvo planejado e receber os bônus correspondentes.
Em uma economia de mercado, a concorrência tende a fazer com que a produção mais barata prevaleça, porque as empresas com perdas permanentes vão à falência. Na produção de mercadorias planejada pelo Estado, por outro lado, a concorrência assume uma forma indireta ou negativa: todos os participantes tentam obter a maior alocação possível de material e força de trabalho, a fim de entregar a produção que se espera deles o mais facilmente possível. As autoridades de planejamento, bem cientes desses problemas, tentaram mudar os métodos de planejamento repetidamente ao longo dos anos; mas as empresas sempre encontravam uma maneira de driblá-los.
Existe uma garantia de que os produtos serão aceitos? Então já não importa tanto a sua qualidade. A meta do plano se refere à quantidade de mercadorias produzidas? Então elas são produzidas com a menor quantidade de material possível – mesmo correndo o risco de que elas se tornem disfuncionais. A meta planejada se refere ao peso da mercadoria? Então fazemos produtos tão grandes quanto possível, pois só importa o peso da matéria-prima utilizada.
O comportamento das empresas acompanhou sempre o arranjo social. Elas se comportaram como atores privados competindo por recursos escassos. A economia planejada soviética, desse modo, foi caracterizada por uma notória incerteza de planejamento. Era tão incerto se a empresa obteria os recursos necessários para a produção, quanto se os consumidores finalmente acessariam os bens de consumo.
A competição “socialista” indireta ocorria em vários níveis. Além da luta pela alocação centralizada de recursos, foi estabelecida uma competição informal, na qual as matérias-primas necessárias, mas não alocadas, eram adquiridas através de intermediários (os chamados “tolkachis”). Também a distribuição da mercadoria força de trabalho era altamente disputada. Através de alocações especiais de bens de consumo, melhores moradias ou sistemas de bônus, as empresas tentavam sempre atrair o maior número possível de força de trabalho, pois isso aparecia como indício de maior criação de valor. Esse mecanismo ainda pôde funcionar na fase inicial da industrialização socialista, pois se tratava então simplesmente de produzir o maior número possível de bens básicos. Com a crescente diferenciação da produção, porém, a mera expansão de pessoal se mostrou insuficiente porque não foi acompanhada de um aumento correspondente na produtividade operacional.
Nas discussões de então nos países capitalistas, essas deficiências da economia de comando do socialismo realmente existente eram frequentemente atribuídas à falta de mecanismos de mercado. A intenção por trás disso era quase sempre legitimar o modo capitalista de produção e de vida e desviar a atenção de suas consequências catastróficas para as pessoas e para a natureza. No entanto, não deixa de ser verdade que a tentativa “socialista” de uma produção planejada de mercadorias inevitavelmente implicava formas de concorrência negativa descrita acima, nas quais as leis da economia da mercadoria se impunham não diretamente pela competição de mercado, mas indiretamente.
De certa forma, foi bastante coerente que Gorbachev e seus seguidores quisessem transformar peça por peça a produção socialista planejada de mercadorias em uma produção de mercadorias de economia de mercado. Não se tratava aqui da transformação de uma “economia socialista” em uma economia capitalista – foi apenas uma tentativa de colocar um regime capitalista-estatal nos fundamentos da economia de mercado que são inerentes à lógica do sistema produtor de mercadorias.
A economia soviética, porém, já estava tão arruinada que não era apenas o planejamento que estava no fim. Ela foi igualmente incapaz de sobreviver na competição global que emergia na época, e é por isso que a mudança resultou em decadência econômica. Também politicamente a União Soviética já estava em grande parte estilhaçada nos anos 1980. No plano estatal, as condições mafiosas já estavam na ordem do dia, e o poder do partido há muito já havia se transformado no poder dos aparelhos e redes que lhe davam suporte. Não surpreende que, depois de muita turbulência política, o resultado tenha sido um regime ditatorial-cleptocrático à la Putin.
É claro que tudo isso não fala a favor da economia de mercado. Atualmente testemunhamos como ela está destruindo catastroficamente o nosso modo de vida. Antes, a superação do capitalismo requer muito mais do que a estatização dos meios de produção. Seria preciso “formas de relacionamento” inteiramente novas (Bini Adamczak), que não se baseiem na produção de mercadorias e na concorrência generalizada, mas na cooperação e na solidariedade.
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Mikhail Gorbachev, o último presidente do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, morreu em 30 de agosto de 2022. Na Alemanha foi homenageado o trabalho de vida do “pioneiro da unidade”. Evgeniy Kazakov, por outro lado, argumentou que ele havia falhado com seu curso de reforma.
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Publicado na Jungle World 2022/42 de 20/10/2022
Tradução: Javier Blank