22.01.2024 

100 anos de solidão? Martin Jay sobre os limites e as perspectivas da teoria crítica

Entrevista por Nick Gietinger e Finn Gölitzer
Tradução ao português por Marcos Barreira

Publicado originalmente na Diskus de 18.01.2024

O Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt (IfS) foi fundado em 1923. Nas décadas seguintes, o Instituto e seus arredores se tornaram o centro da Teoria Crítica. Entretanto, foi somente no final da década de 1960 que os vários escritos de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros se tornaram paradigmáticos e foram reunidos sob o termo “Escola de Frankfurt”. O historiador norte-americano Martin Jay, que publicou uma das primeiras monografias sobre a Escola de Frankfurt, sua dissertação “Dialectical Imagination – A History of the Frankfurt School and the Institute of Social Research” (1973), teve uma contribuição significativa aqui. Para marcar o centenário do Institute of Social Research, foi realizada em setembro a conferência “Futuring Critical Theory”, na qual Martin Jay falou no painel “100 Years of Critical Theory – 100 Years of Solitude?”. Alguns dias depois, em 17 de setembro, Finn Gölitzer e Nick Gietinger se encontraram com ele para perguntar sobre sua abordagem da Teoria Crítica, sua história e seus limites, bem como sobre os debates atuais sobre a política da memória. A entrevista foi conduzida em inglês.

Nick Gietinger: Você visitou Frankfurt várias vezes para sua pesquisa sobre a história da Escola de Frankfurt. Quando chegou a Frankfurt e qual foi sua primeira impressão?

Martin Jay: Fui a Frankfurt pela primeira vez em janeiro de 1969 para fazer uma pesquisa para minha dissertação em Harvard sobre a Escola de Frankfurt e o Institute for Social Research. Foi um período muito tenso. Cheguei no momento em que os estudantes (pelo menos muitos deles) estavam criticando a Teoria Crítica tradicional por sua relutância em se envolver com a prática política que os estudantes acreditavam ser sancionada pela teoria. Os alunos tinham acabado de ocupar o instituto e foram convidados a sair. Ainda não está totalmente claro se eles foram expulsos por Adorno ou se foi mais complicado do que isso. Tudo aconteceu um mês antes do evento político em que algumas mulheres ficaram nuas diante de Adorno. Portanto, Adorno, Habermas e outras personalidades que conheci estavam claramente em uma situação muito tensa, o que tornou essas entrevistas um pouco difíceis. Adorno, em particular, como escrevi em um artigo sobre uma carta de Adorno a Marcuse, sentiu-se atacado e não confiava muito em minhas intenções. Portanto, era uma situação bastante complicada. Fiquei por cerca de um mês trabalhando na biblioteca e em alguns materiais que eles haviam me fornecido. Depois fui para Montagnola, na Suíça, onde Horkheimer e Pollock estavam hospedados. Fiquei lá por mais duas ou três semanas, trabalhei intensamente em seus materiais e realizei uma série de entrevistas com eles. E, ao contrário de Adorno, eles eram, de certa forma, mais amigáveis, para dizer o mínimo.

Finn Gölitzer: Presumo que escrever uma história sobre a Teoria Crítica seja muito mais desafiador do que sobre outras escolas de pensamento. Você não hesitou em escrever uma monografia sobre a Escola de Frankfurt?

MJ: De certa forma, eu era ingênuo em relação ao desafio que isso representaria. Naquela época não havia muitos materiais, fontes primárias. Havia algumas traduções disponíveis, mas quase tudo ainda estava em alemão. Embora Herbert Marcuse e Erich Fromm fossem bem conhecidos nos EUA, as pessoas realmente não sabiam da existência da Escola de Frankfurt. Ela ainda não havia aparecido no horizonte americano. E na Alemanha, ainda havia a sensação de que a Escola de Frankfurt era um fenômeno contínuo e fundamentalmente em desenvolvimento. Era como escrever uma história de algo que ainda não tinha acontecido. Naquela época, não havia quase ninguém lidando com esse assunto. Portanto, eu não sabia o quanto ele era vasto. Felizmente, eu tinha muito material novo, especialmente as cartas de Leo Löwenthal e conversas com muitas pessoas como Paul Lazarsfeld, Karl Wittfogel e outros que eram membros ou estavam ligados à Escola de Frankfurt. Mas eu não tinha acesso ao incrível número de cartas, manuscritos inéditos e tudo o que está disponível hoje e que tornaria quase impossível escrever essa história. Rolf Wiggershaus escreveu uma história mais detalhada uns 15 anos depois. E não creio que alguém tenha feito algo comparável desde então, com exceção dos materiais de popularização, porque há material demais. Por isso, abordei o assunto com certa ingenuidade e consegui encontrar pontos em comum suficientes em meio a todo o material díspar para criar uma narrativa e, ao mesmo tempo, honrar a diversidade de posições dentro da escola.

Sempre me perguntam como meu interesse foi despertado. Isso se deveu principalmente a dois estímulos básicos: primeiro, meu diretor de dissertação, H. Stuart Hughes, estava muito interessado na migração intelectual para os Estados Unidos. Naquela época, muitos migrantes estavam no final de suas carreiras e começavam a se tornar objeto de pesquisa histórica. Pessoas como Hannah Arendt ou Hans Morgenthau. Eles começaram a se considerar como dignos de uma caracterização histórica. H. Stuart Hughes escreveu sua própria história, que foi publicada alguns anos depois do meu livro. Essa foi uma fonte. A segunda foi uma espécie de curiosidade, mas também de confusão, sobre Herbert Marcuse. Em meados da década de 1960, ele era extremamente influente nos Estados Unidos, pelo menos na esquerda. Ele chegou a ser chamado de guru da Nova Esquerda. The One-Dimensional Man causou furor em 1964 e as pessoas leram Eros and Civilisation, uma reinterpretação muito radical de Freud, publicada em 1955. Ele se tornou uma figura da contracultura e da Nova Esquerda. Mas ninguém realmente entendia a origem de suas teorias. Ninguém entendia o marxismo hegeliano, o que ele buscava em Heidegger ou seu relacionamento com outros membros da Escola de Frankfurt. Então me senti atraído pela Escola de Frankfurt também para entender Marcuse como uma figura histórica. Por causa de Hughes, eu tinha contato com vários membros ou outras figuras da Escola, o que facilitou um pouco as coisas.

NG: Depois de sua primeira visita, acho que você voltou a Frankfurt nos anos 1970. Em seu livro “Marxism and Totality” (1986), você menciona um círculo intelectual de pessoas associadas às revistas Telos e New German Critique. Algumas dessas pessoas também estavam morando em Frankfurt na época, por exemplo, Moishe Postone. Você chegou a conhecê-lo nessa época?

MJ: Havia uma cultura estudantil muito ativa, e Moishe era apenas um estudante de doutorado na época. Só o conheci em uma conferência em Starnberg em 1981, não quando estava fazendo pesquisa. Acho que a conferência foi organizada por Axel Honneth, Manfred Gangl e Wolfgang Bonß. Jürgen Habermas foi o responsável pela conferência. Conheci Moishe lá e nos tornamos amigos muito próximos. Ele faleceu há alguns anos. Participei de uma conferência em sua homenagem na Universidade de Chicago e escrevi um artigo sobre ele.1 Continuei muito próximo de Moishe, ele era uma pessoa extraordinária e um teórico muito interessante. Nem sempre concordávamos em tudo. E você tem toda a razão, havia uma cultura estudantil muito ativa naquela época. Mas eu não conheci muitas pessoas mais jovens. Conheci Alfred Schmidt, Habermas, Iring Fetscher e algumas outras figuras que pertenciam à geração mais velha; mas não conheci muitos dos alunos mais ativos. Apenas uma vez encontrei brevemente Daniel Cohn-Bendit ou estive em uma sala com ele.

FG: Então você abordou a Escola de Frankfurt mais como acadêmico e historiador do que do ponto de vista político?

MJ: Essa é uma boa pergunta. Eu não era uma das pessoas que haviam estudado com Adorno. Havia alguns americanos que estudaram. Pessoas como Samuel Weber, Angela Davis e Irving Wohlfahrt, que vieram para Frankfurt na década de 1960, geralmente dois ou três anos mais velhos do que eu, que estudaram com Adorno ou com outros membros do Instituto e se tornaram, por assim dizer, praticantes da Teoria Crítica. Eu entrei como historiador, vindo de fora. Portanto, é uma abordagem um pouco diferente. Em vez de defendê-la, eu estava tentando lhe dar um significado. E quando fazemos isso, muitas vezes nos associamos às ideias até certo ponto, até mesmo nos convertemos até certo ponto. Ao longo dos anos, fui rotulado como um teórico crítico ou frequentemente identificado com a Escola de Frankfurt, mas sempre tentei manter alguma distância. Em meu último livro, “Immanent Critiques: The Frankfurt School under Pressure” (2023), que acaba de ser publicado, afirmo logo no início que sempre mantive certa distância. Um dos primeiros artigos que escrevi sobre Marcuse em 1970 foi uma crítica ao que chamo de “metapolítica do utopismo”.2 Era definitivamente um tipo de crítica habermasiana a Marcuse. Portanto, eu já estava tentando ser afirmativo, mas não simplesmente um iniciado ou um seguidor. E sempre achei que isso fazia parte do espírito da própria Teoria Crítica, que é ser autocrítico e não dogmático. Quando você os critica, é isso que eles estão praticamente pedindo que você faça, em vez de tratá-los como se estivessem absolutamente certos em todas as questões.

NG: Esse é um ponto muito bom, pois leva a outra questão que gostaríamos de discutir. Estávamos na discussão com Rahel Jaeggi e Martin Saar da qual você participou na conferência Futuring Critical Theory. Uma questão controversa ali foi a dos princípios fundamentais da Teoria Crítica. Em nossa opinião, todos os palestrantes tiveram dificuldades em se localizar na área de tensão entre a abertura para outras teorias e a conservação de uma definição mais acentuada da Teoria Crítica. A maioria das respostas nos pareceu insatisfatória, pois tendiam a se tornar dogmáticas ou voltadas à difusão da teoria. Então, do que estamos falando no caso da Teoria Crítica? Que conceitos temos para diferenciá-la das teorias pós-estruturalistas, por exemplo?

MJ: Bem, houve tentativas de encontrar definições mais adequadas. Há um artigo de Fabian Freyenhagen intitulado “What is Orthodox Critical Theory?”3 no qual ele afirma que não não importa tanto pensar sobre o contexto normativo da teoria, como fizeram Habermas, Honneth ou Rainer Forst. Em vez disso, ela deve ser entendida em termos de uma sensibilidade fundamental à injustiça social e ao sofrimento, e da necessidade de contribuir teoricamente para diminuí-los. Ainda não sabemos se isso significa superar o capitalismo ou mudar as coisas em passos menores. Mas a teoria é sempre motivada, sempre animada, de alguma forma, pela luta que visa a diminuição do sofrimento, da miséria e da injustiça social. Isso também ainda é muito vago. O que acontece com a Teoria Crítica é que o próprio nome talvez fosse um modo eufemístico de tratar o marxismo; ao distanciar-se do marxismo, porém, ela ganhou uma espécie de independência, um tipo de autonomia relativa. E era aberta o suficiente para ser um tipo de significante vazio, que podia ser preenchida com diferentes conteúdos. Se adotarmos algo como uma visão koselleckiana (a visão de Reinhart Koselleck sobre a “história do conceito”), então a história de um conceito ao longo do tempo tem uma história semântica em vez de uma história de definição fixa. Portanto, ela se desenvolve de diferentes maneiras. Habermas e Honneth deram a ela uma direção completamente diferente do período anterior. E há pessoas associadas à primeira fase que contribuíram para o dissenso. Benjamin e Neumann, por exemplo, tinham muito pouca concordância entre suas posições. E Fromm, ele era um teórico crítico? Bem, ele certamente era um membro do Instituto. Mas ele não teria dito: “eu sou um teórico crítico”, porque em 1937 ele já estava começando a se distanciar da Escola de Frankfurt. Adorno costumava dizer coisas desagradáveis sobre Löwenthal e Marcuse, pelo menos em particular. Portanto, havia muitas disputas internas sobre o que a teoria deveria fazer. Portanto, qualquer tentativa de dizer que a teoria é assim, que esses são os limites e que se você os ultrapassar será excomungado, parece-me altamente problemática. É por isso que não gostei da ideia de procurar uma versão ortodoxa. Porque o conceito de ortodoxia me parece ser exatamente aquilo contra o qual a Teoria Crítica se opõe. Portanto, permanece certo sentimento de frustração pelo fato de não se poder dar a ela uma definição exata. Mas acho que isso é uma virtude, porque significa uma compreensão de que a teoria é histórica. Não é uma teoria transcendental e universal. É uma teoria que evolui. É uma teoria que está evoluindo não apenas ao absorver novos estímulos teóricos externos, mas também ao dar respostas para as novas fontes de sofrimento e injustiça social. A ideia de que o capitalismo é o único culpado pelo sofrimento parece-me excluir a possibilidade de nos interessarmos por novos motivos pelos quais o sofrimento, que poderíamos caracterizar como sofrimento supérfluo e desnecessário, ocorre. Acho que o poder da Teoria Crítica está no fato de não congelar. Os próprios teóricos críticos nunca estiveram interessados em lhe dar uma definição. Por exemplo, Adorno atacou a ideia de filosofia como um conjunto de definições que basicamente limita, de um ponto de vista a priori, a maneira como a teoria pode se desenvolver.

NG: Seu livro “Marxism and Totality” termina com uma discussão sobre o pós-estruturalismo, que estava se tornando mais predominante na época. Você se refere à crítica de Habermas a Nietzsche. Ele argumentou que Nietzsche carecia de autorreflexão histórica. Em seu livro, você descreve como essa crítica também poderia ser aplicada a muitos pós-estruturalistas, como Foucault. Voltando ao tópico da discussão: talvez a especialidade da Teoria Crítica seja uma certa forma de autorreflexão histórica. Quando leio autores contemporâneos como Bruno Latour, por exemplo, tenho a impressão de que também lhe falta essa autorreflexão.

MJ: Acho que a oposição entre a Teoria Crítica e o pós-estruturalismo era plausível em 1984, quando escrevi o livro. Mais tarde, ela se tornou um diálogo frutífero em vez de uma relação amigo-inimigo. Escrevi em seguida um livro chamado “Downcast Eyes” (1993) sobre a crítica da visualidade, que se baseia essencialmente na teoria francesa. Ficou muito claro que se pode aprender muito com Lyotard ou Deleuze. Descobri várias sobreposições muito interessantes. Sabemos que Foucault estava muito interessado na Teoria Crítica, e que havia bastante proximidade entre Derrida e Habermas. Portanto, as guerras teóricas da década de 1990 basicamente acabaram. A justaposição de teoria histórica e a-histórica também é um pouco simplista, porque o que significa ser histórico é, de fato, uma das questões levantadas pelo pós-estruturalismo: o que estamos dizendo quando nos envolvemos com algo chamado história? Uma cronologia única? Um tipo de meta-narrativa coerente? Walter Benjamin, que não estava satisfeito com as noções historicizantes de mudança histórica, também se fez essa pergunta. Muitos pós-estruturalistas franceses foram inspirados por Walter Benjamin e o consideravam um deles. Eles se esforçaram para separá-lo da Escola de Frankfurt. Portanto, a distinção entre teoria histórica, de um lado, e teoria a-histórica, de outro, talvez seja um pouco simples demais. Porque o que queremos dizer com história é levantado tanto na tradição da Escola de Frankfurt quanto na tradição do que geralmente chamamos de pós-estruturalismo (que é, em si, um tipo de rótulo que não faz justiça a todas as diferentes figuras e escolas de pensamento dentro dessa categoria).

NG: Partindo de Postone, entretanto, eu insistiria na necessidade de categorias como capitalismo e totalidade como conceitos socialmente eficazes, mas criticáveis. Postone criticou Pollock e Horkheimer com veemência pelo modo como capitalismo e trabalho eram pensados. Mas ele não rejeitou fundamentalmente esses conceitos, como fizeram algumas teorias pós-estruturalistas.

MJ: Bem, eu nunca negaria que temos de levar o legado a sério e ir além dele. Gosto da ideia de Benjamin sobre a destruição e a contemplação dos destroços dispersos para reconstruí-los em uma nova constelação. Em vez de aceitar o legado como se fosse isso ou aquilo, deve haver um engajamento com ele. Isso significa destruição, reconstelação e criação de uma nova constelação. Portanto, não se trata apenas de uma simples restauração, mas também de um confronto entre o passado e o presente. Sempre achei que a história do marxismo foi essencialmente destruída (e aqui Moishe e eu provavelmente discordaríamos) pelo que aconteceu desde que Marx escreveu sua teoria. Muita coisa minou o que Marx tinha como expectativa sobre o desenvolvimento do mundo, muitas outras perspectivas, como a psicanálise, foram introduzidas para que se possa retornar a um ponto de vista marxista clássico. Não vejo isso, porém, como algo que foi superado, mas como um recurso que precisa ser entendido de diferentes maneiras, como um campo de escombros, tal como Benjamin o entendeu. Assim, podemos pegar aspectos dele e reconciliá-los de novas maneiras. Moishe estava muito interessado em nos levar além do que ele chamava de “marxismo tradicional”. Era um marxismo diferente que ele queria restaurar. Seu primeiro livro foi sua dissertação e, infelizmente, ele nunca escreveu o segundo livro que sempre desejou escrever.

FG: Vamos voltar a uma pergunta anterior, que está relacionada aos princípios fundamentais da Teoria Crítica. O título do seu livro mais recente é “Immanent Critiques”. A crítica imanente geralmente se refere a uma forma de crítica que leva em conta a historicidade de seu próprio ponto de vista, bem como de seu objeto. Sempre vi a crítica imanente como algo que constitui a Teoria Crítica. Talvez, ao falarmos sobre a crítica imanente, possamos nos aproximar um pouco mais do significado e do papel específicos da historicidade, conforme discutimos?

MJ: A alternativa à crítica imanente era entendida como crítica transcendente, o que significava uma crítica que se referia a valores eternos, princípios morais ou algo que vinha de fontes religiosas como a Bíblia. Fontes que, de alguma forma, eram eternas e independentes das circunstâncias históricas. A Escola de Frankfurt não abandonou isso completamente. Eles nem sempre atacavam o que chamamos de filosofia perene, pois havia uma disposição para aprender com os resquícios de teorias passadas. Portanto, eles não se fixavam exclusivamente em teorias atuais ou históricas, no sentido de que não levavam em conta os legados de tradições passadas. A crítica imanente sugere que vivemos em um momento específico de uma cultura ou sociedade contraditória, na qual os valores e as práticas não estão total e harmoniosamente organizados. Isso significa que há tensões entre eles e, portanto, é sempre uma questão de avaliar os ideais em relação às práticas que podem ou não alcançar o que é afirmado por esses ideais. Costuma-se dizer sobre os Estados Unidos que eles não estão unidos, que procuramos uma união ainda mais perfeita. A ideia dos Estados Unidos é, em si, uma espécie de ideal não realizado. A questão de saber se é suficiente permanecer em nossa própria cultura também é, às vezes, colocada pela Escola de Frankfurt. Há um ponto em Minima Moralia, de Adorno, em que ele diz que na totalidade atual não há espaço nem mesmo para uma unha se agarrar. A implicação é que o mundo se tornou tão unidimensional, tão harmônico (Marcuse também faz essa observação em “The One-Dimensional Man”) que a tensão colapsou. Agora, de certa forma, isso é um exagero. Mas, como se sabe, Adorno disse que na psicanálise apenas os exageros são verdadeiros. E houve muita discussão sobre por que o método do exagero nos ajuda a entender a sociedade, mas isso era claramente um exagero. Quero dizer, nada era tão completamente escuro e nivelado, sempre havia uma insatisfação, um sentimento de raiva. Portanto, com a crítica imanente, pelo menos há um ponto de partida a partir do qual se pode criticar.

Durante nossa discussão na conferência, houve um debate entre Rainer Forst e Rahel Jaeggi sobre a crítica imanente, que remete a uma antiga disputa. Há certos gestos habermasianos que nos levam a argumentos transcendentais. Por exemplo, a ideia de que as pessoas têm um interesse básico na emancipação. Mais tarde, ele se afastou dessa ideia, mas sempre houve essa forma de estar historicamente situado que, ainda assim, é transcendental. Para mim, é importante que a crítica contenha a sensação de que estamos diretamente situados em um contexto, em um mundo, em um momento histórico. Esse momento histórico, porém, nunca é totalmente uniforme. Ele tem momentos residuais e antecipatórios ou imaginados. Em uma das sessões, creio que foi Frieder Vogelmann quem apontou que não é suficiente falar apenas deste momento, desta cultura, deste momento histórico, porque, como Ernst Bloch enfatizou, há um tipo de não-sincronicidade, um tipo de fenômeno cultural que revela um anseio ou um desejo pelo que ainda não existe. Portanto, a ideia de um mundo completamente autossuficiente nunca será válida, e isso pelo menos está a favor de quem diz que esse mesmo mundo está repleto de resíduos do passado. Se entendermos isso como um tipo de hermenêutica cultural, em que tentamos dar sentido à complexidade em vez de simplesmente ver as coisas como uniformes, podemos usar isso como uma alavanca para dizer que este mundo ainda não é perfeito, que ainda não é o que poderia ser. Essa é uma das razões pelas quais a crítica envolve o reconhecimento de que o mundo é sempre, de alguma forma, insuficiente.

FG: Portanto, a crítica imanente sempre requer um tipo de contradição ou tensão, como você descreveu. O objeto da crítica – a sociedade – deve conter, assim, algum tipo de contradição que possa ser descrita e que nos permita ir além da realidade atual. Postone argumenta que isso se perdeu na Teoria Crítica, que a crítica se tornou pessimista em um sentido teórico. Você concorda com isso?

MJ: Acho que é preciso ser realista. O pessimismo e o otimismo são, de certa forma, atitudes mentais. Você sabe como algumas pessoas olham para um copo e o veem meio vazio, enquanto outras o veem meio cheio. É muito difícil saber qual atitude é empiricamente correta até que a história a confirme de alguma forma. Portanto, ainda é apenas uma atitude. Mas formos realistas, podemos dizer que, em determinadas circunstâncias, a probabilidade de uma mudança radical e sistemática é maior do que em outras épocas. Basta olhar ao redor e ver onde estamos. O que eu estava querendo dizer é que a ordem social estava realmente em crise em 1923. Estava claro que três impérios haviam sido destruídos na Primeira Guerra Mundial. Não preciso explicar por que o Partido Comunista e os marxistas em geral estavam otimistas quanto às suas possibilidades. E embora dez anos depois todas essas possibilidades tenham se reduzido bastante, ainda era possível ver uma nova abertura de possibilidades em 1968 ou na década de 1960 em geral. Mas mesmo em 1968 havia pessoas que diziam que essa não era realmente uma situação revolucionária. Tudo isso sugere que a situação é historicamente variável. E não há uma fórmula absoluta para saber se devemos ser o tempo todo otimistas ou pessimistas.

A Escola de Frankfurt era sóbria e chegou à conclusão de que a classe operária não faria o que o marxismo esperava que ela fizesse. Ela também chegou à conclusão de que, de algum modo, as contradições do capitalismo haviam retardado o colapso. Sob o capitalismo de Estado, o keynesianismo ou seja lá o que for, não havia um colapso interno se aproximando. Parecia ser um erro falar em capitalismo tardio, porque o capitalismo não era tão tardio assim. De alguma forma ele persiste e é incrivelmente resistente. Por isso que é difícil ser tão otimista quanto se poderia ser em 1923 ou 1968. Isso, no entanto, não significa necessariamente desespero absoluto e total. Porque o mundo ainda está em movimento e há surpresas, movimentos que estão surgindo e que não foram previstos. O mundo sempre é capaz de nos dar esperança, mas também é capaz de destruir essa esperança. Agora nos encontramos em uma espécie de posição defensiva porque o populismo autoritário está em ascensão e representa um tipo de anti-neoliberalismo. Pensávamos que o oposto do neoliberalismo era algo progressista, mas descobrimos que grande parte da oposição ao neoliberalismo e à globalização são movimentos de direita. Eles se mostraram nacionalistas, xenófobos e, em geral, contra a globalização. Agora percebemos que a chamada democracia liberal não é apenas uma fachada que precisa ser destruída, mas que ela corre o risco de ser minada por algo muito pior. E, claro, a crise da mudança climática é um problema que a Escola de Frankfurt não conseguiu prever totalmente. Isso significa que, mesmo com uma revolução social ou algum tipo de mudança milagrosa, estamos em apuros. Portanto, é difícil ser otimista nesse sentido. Mas provavelmente também é um erro ser muito fatalista. Sempre há possibilidades que não previmos.

NG: Vimos que seu livro “Dialectical Imagination” foi traduzido para o alemão por Bodo von Greiff. Por coincidência, li recentemente o livro dele, “Gesellschaftsform und Erkenntnisform”, publicado em 1976, do qual gostei muito. Há uma vertente muito interessante de teoria crítica que vem do Otto Suhr Institute (OSI) em Berlim, onde von Greiff estudou. Ele e outros alunos, como Manfred Dahlmann, tentaram continuar e expandir a conexão de Alfred Sohn-Rethel entre mercadoria e formas de pensamento. Infelizmente, essas teorias não estão mais muito presentes nos currículos atuais.

MJ: Não cheguei a conhecer Sohn-Rethel. Ele era um escritor muito estimulante e interessante. Ele foi muito amigo de Adorno por um tempo. Em meados da década de 1930, houve uma tentativa de conseguir para Sohn-Rethel uma espécie de bolsa de estudos no Instituto. Adorno apoiou a ideia, mas Horkheimer a odiou totalmente. Há uma longa carta de Horkheimer para Adorno na qual ele ataca Sohn-Rethel. Pediram a Benjamin que comentasse o assunto, e ele escreveu uma carta muito cautelosa dizendo que poderia ser interessante, mas também se conteve. O que entendo de Sohn-Rethel é que há algo de reducionista em sua teoria. Um de seus argumentos é que a forma da mercadoria, que remonta ao dinheiro, é essencialmente a base do pensamento abstrato. Isso sempre me pareceu um pouco simplista, porque há muitos tipos de abstração, alguns dos quais já existiam antes da invenção do dinheiro. Por exemplo, a linguagem, que é essencialmente uma tentativa de dar sentido ao mundo por meio da abstração. Quando digo que isso é uma árvore, estou usando uma palavra que engloba muitas árvores diferentes. A ideia de que a abstração é apenas um reflexo do dinheiro ou da forma da mercadoria me parece problemática. Basta pensar no monoteísmo: o monoteísmo também é uma abstração de todos os diferentes deuses politeístas existentes. Portanto, nem todas as abstrações são formadas pela dominação. Há também coisas que podemos descrever como apropriadas, que são de fato necessárias para uma sociedade civilizada. Deve haver algum tipo de abstração de nossas diferenças concretas. Não tenho certeza se Sohn-Rethel percebeu isso, mas acho que é um ponto importante.

NG: Eu diria que ele não está falando da abstração em si, mas de uma forma específica de abstração. Por exemplo, a quantificação matemática de tudo. Quando observamos a crise climática, vemos que tudo precisa ser medido matematicamente para ser abordado de uma determinada maneira. Um exemplo são os chamados certificados de CO₂ e o comércio de emissões que os acompanha.

MJ: Eu diria que sem quantificação não podemos entender as mudanças climáticas. É necessário, mas não suficiente. É claro que precisamos entender a crise climática não apenas em termos de 1,5 grau Celsius, mas também em termos de furacões e secas. Portanto, é uma mistura de explicações qualitativas e quantitativas. Mas você tem toda a razão quando diz que a matemática é inerentemente quantificadora. Se ela se tornar algo como um discurso hegemônico, com tudo reduzido a números, é claro que podemos falar de um tipo de opressão estatística. Por outro lado, sem matemática, sem quantificação, não poderíamos funcionar no mundo moderno. Matthew Handelman publicou recentemente um livro sobre imaginação matemática no qual argumenta que a crítica da Escola de Frankfurt à abstração e à matemática era problemática. Há muitos exemplos em que o pensamento matemático foi capaz de demonstrar resultados bastante emancipatórios. Não sou matemático, não posso realmente falar muito sobre isso, mas acho que a matemática tem o potencial de ser não apenas uma ferramenta de opressão, medição ou quantificação em um sentido ruim, mas algo mais. E há, é claro, muitos marxistas, como Alain Badiou, que acreditam que a matemática é absolutamente crucial para a forma como entendemos o mundo. Não sou um grande fã de Badiou, mas ele mostra que isso pode ser feito.

FG: Postone desenvolveu uma abordagem semelhante para entender as formas modernas de abstração. Mas, tal como o entendo, ele não defende o concreto em oposição ao abstrato; ele tanta analisar a dinâmica que se desenvolve por meio da contradição entre o trabalho e o tempo abstratos e concretos.4 Portanto, concordo com você que não basta criticar o abstrato (a matemática, por exemplo) do ponto de vista do concreto. Mas acho que o argumento de Postone é válido, que a dinâmica dialética do abstrato e do concreto pode produzir uma forma de dominação que é historicamente específica da sociedade capitalista.

MJ: Acho que isso faz sentido. Outra coisa a se pensar é o que entendemos por concreto. Há dois significados básicos: primeiro, que há uma particularidade, uma singularidade, algo que não está absoluta e completamente subsumido em uma categoria. Nesse caso, a abstração é geral, é basicamente um conjunto bastante vazio, e dentro desse conjunto há exemplares. Para chegar ao concreto, retiramos esses exemplares do conjunto maior e os observamos em sua singularidade. Essa é uma versão do concreto. A outra versão, a hegeliana, diz que o concreto significa basicamente a mediação complexa. Abstração significaria, portanto, arrancar a singularidade supostamente isolada da totalidade maior na qual ela está inserida. E tornar-se concreto significa estar emaranhado em uma rede complexa de mediações. Isso mostra que nada está completamente isolado e que tudo está intrinsecamente conectado. Essa é uma ênfase na relacionalidade, em oposição à singularidade. Essas são duas versões da concretude. A versão marxista é basicamente a segunda versão. Lukács, em particular, deixa claro que a concretude significa estar em um contexto social ou total mais amplo, no qual algo se torna o nexo de várias mediações, em vez de ser abstraído dele, retirado dele e considerado isolado. Foucault falou do sujeito individual burguês como o duplo empírico-transcendental, no qual há um ser humano transcendental e uma versão individual dele. Do ponto de vista marxista, tanto o conceito abstrato de ser humano quanto o conceito individual de cada um de nós como indivíduo estão errados. Em vez disso, sempre somos sociais, sempre somos imediatamente culturais, sempre somos o que somos pelo idioma que falamos, pela classe a que pertencemos ou por todas as outras coisas que nos identificam. E isso nos leva a uma versão muito diferente de concretude. Portanto, essa é uma maneira de conceituar a oposição entre concretude e abstração, em oposição à outra maneira que mencionei. Há uma tensão interessante entre essas duas explicações sobre a relação entre o abstrato e o concreto.

NG: Provavelmente poderíamos continuar por muito tempo neste ponto. Mas vamos mudar de assunto novamente antes de terminarmos nossa entrevista. No momento, pelo menos na Alemanha, há uma discussão entre os historiadores e em público. O historiador Dirk Moses lançou um debate acalorado ao questionar implicitamente a singularidade do Holocausto e criticar a política de memória alemã. Ele é da opinião de que [o Holocausto] deve ser nivelado pela análise a outros crimes, como os da história colonial. O senhor foi o orientador de doutorado dele. Ao mesmo tempo, você está escrevendo sobre a Escola de Frankfurt, que sempre enfatizou o papel excepcional de Auschwitz. E você conheceu Postone, que também tentou entender a natureza específica do Holocausto.5 Como você parece familiarizado com as duas posições, gostaríamos de saber qual é a sua opinião?

MJ: É um assunto difícil que gera muita paixão em ambos os lados. Acho que o desafio de Dirk é interessante. Ele diz que, embora o Holocausto possa ser único em alguns aspectos, ele é usado como um exemplo de singularidade que teve um efeito ruim na maneira como entendemos outras atrocidades, outros desastres, outros crimes contra a humanidade, no sentido de que eles são de alguma forma relativizados, que não parecem tão graves. Portanto, ele quer se certificar de que não se abuse do status do Holocausto como uma singularidade absoluta. E acho que Moishe provavelmente concordaria com isso. Independentemente de o Holocausto ser sui generis e único ou não, acho que ele é claramente diferente de outras atrocidades. Mas toda morte e tortura desnecessárias devem ser vistas como definitivas. Em outras palavras, não se pode relativizar. Não está totalmente claro para mim, porém, o que Dirk está tentando dizer, quando sugere que os alemães deveriam superar a singularidade do Holocausto e se sentir à vontade para atacar Israel em nome do que ele faz com os palestinos. Isso me parece contraproducente porque sempre levanta a questão da responsabilidade alemã na fundação de Israel. Há algo inadequado no fato de os alemães atacarem Israel, mesmo hoje.

Portanto, acho que provavelmente seria mais sensato direcionar a indignação moral e a crítica política para todos os horrores que existem no mundo. Se quiser ficar indisposto, veja o que está acontecendo no Sudão com o povo de Darfur, veja o que está acontecendo com os Rohingya em Mianmar. Há muitas coisas no mundo com as quais podemos nos indispor. Usar o poder da indignação alemã e da intervenção política de uma forma que possa prejudicar a história das relações entre alemães e judeus é algo muito complicado e se torna uma questão que não tem nada a ver com os palestinos. Portanto, acho que ele vai um pouco longe demais. Mas, às vezes, ele tem sido rotulado como uma espécie de segundo Ernst Nolte, o que considero um verdadeiro erro. Acho que Nolte realmente tinha uma formação heideggeriana e era extremamente questionável em termos políticos. Dirk, por outro lado, vem de uma perspectiva muito mais à esquerda. Eu o conheço bem o suficiente para dizer que ele não é um antissemita fervoroso. Portanto, eu relutaria muito em identificá-lo com Nolte, mas acho que é verdade que ele e Moishe provavelmente teriam opiniões diferentes.

NG, FG: Muito obrigado pela entrevista.

1 »Moishe Postone and the Vicissitudes of Abstraction« (2020) in: Historische Studien (Band 7, Nr. 1).

2 »Metapolitik des Utopismus« (1970). Dissent Magazine.

3 Fabian Freyenhagen: »Was ist orthodoxe kritische Theorie?« Verfügbar: https://repository.essex.ac.uk/19352/1/Freyenhagen_WP_12a.pdf

4 Moishe Postone (2003): Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft. Ca-ira. Freiburg.

5 Moishe Postone (1979) »Nationalsozialismus und Antisemitismus. Ein theoretischer Versuch«. In: diskus. [Antissemitismo e nacional-socialismo. Escritos sobre a questão judaica, (Consequencia, 2021)].