de Marcos Barreira
I
Duas coisas chamam atenção no ataque do Hamas de 07/10 no sul de Israel. Primeiro, o caráter quase suicida de muitas das ações. Elas se assemelham a um ataque “amok” coletivo, sem alvo militar ou estratégico definido. O intuito parece ser apenas espalhar-se pelo território inimigo e atingir o maior número possível de alvos – quase todos civis. De acordo com as Forças de Defesa de Israel, foram localizados em território israelense mais de 1.500 corpos de militantes do Hamas, o que corresponderia a algo entre 70% e 75% da força de ataque. Em uma lógica política e militar convencional, isso não seria comemorado como uma vitória.
Um segundo aspecto é que, na guerra de propaganda, o Hamas parece pouco interessado na legitimação racional das ações. O tema dos territórios ocupados ou de negociações em torno da formação de um Estado palestino dá lugar à simples demonstração de força. No lugar dos objetivos estratégicos entra a exortação aos “irmãos muçulmanos” para uma guerra contra o inimigo comum.
Essa demonstração, porém, revela uma situação de isolamento. A nova escalada no conflito está muito diretamente ligada às tentativas de aproximação entre o Reino Saudita, até aqui um importante financiador do Hamas, e Israel. Os ataques visariam, portanto, reanimar nas populações dos países islâmicos a oposição a Israel, mesmo ao preço de um novo massacre contra civis palestinos.
O que o Hamas deseja é principalmente barrar o avanço da normalização das relações de Israel com os países em seu entorno; mas já não se trata de uma disputa política por territórios. A série de atentados do Hamas representa um novo golpe para a possibilidade de qualquer acordo visando a autodeterminação palestina.1 O aumento da tensão regional, somado ao pânico causado pelos ataques, também afeta profundamente a sociedade israelense e – pelo menos em um primeiro momento – permite que as lideranças do governo de extrema-direita, antes questionadas no plano interno, se apresentem como defensoras da unidade da Nação. Do ponto de vista da sociedade israelense, os ataques devolvem ao primeiro plano o problema da autopreservação. Para o Hamas isso é uma boa notícia, por maior que seja a perda de combatentes e de civis. Ele não deseja nada menos do que a realização de um desígnio final de aniquilação. Por isso, talvez seja mais fácil pensar o conflito atual como uma escalada fundamentalista em que as populações devem ser sacrificadas em nome da “perfeição” desejada. Perfeição aqui é a derrota total do outro. Isso, naturalmente, reforça no adversário a tendência ao nacionalismo exacerbado e à identidade religiosa que estão na origem das ocupações de colonos judeus. Essa escalada de fundamentalismos determina os rumos do conflito pelo menos desde que a direita radical chegou pela primeira vez ao governo em Israel, explorando as falhas na defesa do país na guerra de 1973. Esses mesmos setores conservadores em Israel apoiaram o fortalecimento do Hamas contra os objetivos ainda em grande parte “políticos” da OLP.
II
Uma reflexão como esta é incômoda para quem enxerga no Hamas um continuador da luta por um Estado palestino. Essa, no entanto, é uma simples projeção de desejos e se baseia na completa ignorância quanto à natureza da “Resistência Islâmica”. O Hamas não é um movimento pela criação de um Estado palestino; ele defende a destruição do Estado de Israel: “Israel existirá até que o islã o faça desaparecer”, como se pode ler na Carta de fundação do Hamas.2
O Hamas não luta pela “libertação dos palestinos”; ele é um ramo do movimento islâmico moderno na palestina. O Hamas entrou em guerra contra movimentos palestinos seculares e progressistas “para levantar a bandeira de Alá sobre cada centímetro da Palestina”.3 Essa guerra interna se inscreve em uma longa tradição de massacres que vitimou quase tantos palestinos quanto a guerra contra os judeus. A violência do Hamas não é uma resposta às agressões da política de Israel contra palestinos. Ela é “um elo da corrente da guerra santa”4 conectada com os movimentos da Jihad que existiam antes da criação do Estado de Israel. Essa “corrente” nunca aceitou a presença de um Estado judeu na Palestina, porque esta é uma “Wakf”, um território doado por Alá aos muçulmanos e transmitido hereditariamente até o “Dia da Ressurreição”.
Para o Hamas, o Estado binacional (ou a existência de dois Estados na Palestina), contra o qual a Jihad luta há quase um século, é uma violação da lei islâmica: ninguém pode renunciar a uma doação de Alá, “nem a uma parte dela”.5 É um território muçulmano, não “nacional”. As soluções pacíficas para o conflito estão em contradição com os princípios do Hamas: elas “não passam de um meio para dar poder aos hereges para se instituírem como árbitros sobre terras muçulmanas […] Não há solução para o problema palestino a não ser pela jihad”.6
Os combatentes da guerra santa também não fazem política; eles se “sacrificam” para que, ao eliminar os judeus, se aproxime o “dia da Ressurreição”: “A hora do julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e terminem por matá-los e mesmo que os judeus se abriguem por detrás de árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: ‘Oh servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venha e mate-o’”.7
III
O islã nasceu no século VII como um fator de ordenamento social em uma sociedade praticamente sem Estado. Com o declínio do Império Otomano, as sociedades islâmicas foram subjulgadas pelo colonialismo ocidental e, ao longo do século passado, a ideologia da Jihad, profundamente reelaborada no confronto com o Ocidente, retomou sua influência como parte do processo de descolonização. Tal reelaboração ideológica significou sobretudo uma ruptura com as antigas tradições islâmicas das sociedades agrárias. Durante boa parte do século XX, porém, ela permaneceu à sombra do pan-arabismo ou do “socialismo árabe”, que foram adotados como ideologias estatais oficiais em vários países. É a partir da revolução no Irã, em 1979, que se fala frequentemente de um renascimento do islã como “ideologia política”. Na verdade, porém, o fundamentalismo islâmico não reconhece nenhuma esfera política separada. Ele pretende englobar (ou dissolver) o “político”, bem como as demais esferas da reprodução social, sob a orientação da Lei corânica. Já na década de 1980, com a crise do socialismo e dos movimentos de libertação nacional, os movimentos pós-políticos de reislamização ganham espaço entre as massas empobrecidas dos países de maioria árabe – e para além deles.
No Ocidente, a recepção ideológica dos conflitos atuais no Oriente Médio por parte da esquerda ignora esse contexto e atribui às organizações fundamentalistas objetivos quase idênticos aos dos antigos movimentos socialistas e de libertação. Mesmo quando se reconhece o caráter reacionário dessas organizações, ainda assim elas são englobadas em conceitos já quase totalmente diluídos de “política” e “anti-imperialismo”. A realidade, no entanto, é bem diferente. Enquanto a pobreza e a exclusão se agravam nessa região, como em muitas outras partes do mundo, os antigos meios racionais da política, que faziam parte dos respectivos processos de modernização, deram lugar a um novo tipo de resposta à crise. Em sua crítica do Ocidente, o fundamentalismo islâmico exibe um padrão de ação e de pensamento brutal e imprevisível. A impotência das respostas políticas tradicionais se transforma no fermento do novo radicalismo. Ao se afastar das antigas formas de intervenção e dos objetivos militares estratégicos, ele adota um programa de agressão pura e simples por meio da mobilização do ressentimento das massas.
É claro que os combatentes da jihad pós-política não inventaram os ataques indiscriminados contra civis. Mesmo no interior do movimento palestino já se pode reconhecer os antecedentes dessa forma de ação. É o caso do atentado ao kibbutz de Kyriat-Shmonah, em 1974, por parte de um comando palestino dissidente da FPLP, que resultou em 18 vitimas fatais. Um livro-reportagem da época, com título tão errôneo quanto insuspeito, descrevia a operação: “mais uma vez um ato isolado contra civis, sem qualquer sentido político. Na ocasião, Israel atravessava uma séria crise política interna e o atentado apenas fortaleceu as posições de extrema-direita. Mas [Ahmed] Jibril nega qualquer possibilidade de diálogo com os israelenses, e prefere por isso que o país tenda sempre mais para a direita, porque assim corta pela raiz o perigo de eventuais negociações. Foi ele próprio quem disse, logo após o atentado: ‘desejamos que essa operação favoreça a ascensão ao poder do Likud. Assim não precisaríamos temer nenhum acordo com Israel’”.8 Essa era, no entanto, uma atitude marginal que muitas vezes saia do controle da precária hierarquia da OLP. A semelhança com o atentado de 07/10 é bastante evidente, embora em uma escala diferente, também “marginal” no contexto de uma guerra que ainda era travada entre Estados. Por mais que tais ações efetivamente afastassem os palestinos do seu objetivo de construção nacional e que a OLP muitas vezes se incomodasse mais com desvios moderados e favoráveis a um entendimento com Israel9, o objetivo nacional permanecia formalmente no horizonte do movimento de libertação. Também a percepção da esquerda ocidental era diferente, pois ainda parecia evidente que esse tipo de ataque não estava subordinado a um objetivo político racional. No antigo nacionalismo, de um modo geral, mesmo os programas radicais de “destruição de Israel” tendiam a ser diluídos e adaptados às condições reais de mediação do conflito político; no fundamentalismo ocorre o inverso: as formas de ação se tornam cada vez mais diretamente ligadas ao objetivo delirante.
IV
O fato de essa resposta imediata e irracional avançar sobre as ruínas dos acordos de paz entre Israel e o campo “político” e “secular” é usada por parte da esquerda ocidental como uma defesa do islamismo radical em oposição à impotência e à corrupção dos antigos movimentos nacionalistas. Esse padrão de argumentação, porém, não considera elementos factuais como o papel central da “Resistência islâmica” na sabotagem de qualquer acordo de paz ou de construção nacional.10 E por mais que a estrutura da OLP tenha se tornado dependente de recursos da Liga Árabe ou do Ocidente, “corrupção” é também um jargão fundamentalista para denunciar o compromisso com qualquer tipo de solução negociada. Nessa perspectiva, toda violência, por mais irracional que seja, está desculpada de antemão, pois ela expressa um meio de revolta direta contra o inimigo, independentemente dos fins. Esse tipo de argumento “se concentra no ressentimento daqueles que realizaram tais ações sem confrontar a estrutura de significado na qual se expressa esse ressentimento”.11 Outro padrão habitual de interpretação nos meios ocidentais é o que não admite o caráter irracional da ação do Hamas. Os ataques de 07/10 teriam frustrado os planos do governo de Israel para “o novo oriente Médio” e retomado a capacidade de negociação dos palestinos. Aqui parece impossível admitir que o caráter pseudo-estratégico dos ataques pode ter como motivação não um objetivo refletido e realizável, mas um desvario ideológico regressivo. Ignora-se sem o menor pudor que o princípio da “Resistência islâmica” é a negação de qualquer esfera de negociação no âmbito da questão nacional. Em vez de um território e uma autoridade palestina, a guerra contra Israel se abriga em um novo tipo de universalismo abstrato.12 Quando o Hamas denomina sua operação com referência à mesquita de Aqsa, em Jerusalém, isso não é feito em nome da resistência à ocupação de “territórios palestinos”. Esse é exatamente o mesmo recurso usado por Osama bin Laden, no final dos anos 1990, em sua “Declaração” contra judeus e cruzados, que estabelecia em uma fatwa a obrigação individual de cada muçulmano de matar “americanos e judeus” até que as mesquitas de Jerusalém e Meca fossem libertadas do domínio do Ocidente. E é dessa forma que um número significativo de pessoal no mundo muçulmano interpreta a declaração do Hamas sobre o 07/10. A ideia de que, sob o Hamas, seria possível avançar na “causa palestina” não passa, portanto, de uma projeção ocidental das antigas aspirações de “construção da Nação” em um movimento que está, de fato, orientado para outro propósito.
Em muitos casos, ambos os padrões ideológicos ocidentais descritos acima estão associados à ideia de que os ataques a Israel são parte de um ponto de inflexão geopolítico em termos globais, que marcaria também o enfraquecimento da influência das grandes potências no Oriente Médio. Esse quadro é definido em linhas gerais como o declínio da hegemonia dos EUA e a ascensão de novos atores globais como China, Rússia e algumas potências regionais. A escalada atual no Oriente Médio é vista, assim, como parte das novas guerras pela transição da hegemonia. Essa visão substitui a análise dos processos de crise desencadeados nas últimas décadas que, depois de exaurir o processo de modernização dos países retardatários (Terceiro Mundo, “socialismo real”), minam progressivamente o núcleo do sistema de acumulação, por uma compreensão “cíclica” da dinâmica capitalista: uma alternância de momentos em que ora predomina a expansão da produção material e ora predomina a financeirização. Esta última é interpretada como uma fase da decadência de um sistema de poder global que prepara a ascensão da nova hegemonia. Ao contrário dessa concepção da dinâmica histórica como um padrão cíclico recorrente, seria preciso analisar a crise global com base nos processos de formação e de declínio das formas objetivas e subjetivas de estruturação do capitalismo. Essa crise se manifesta, de um lado, no declínio social das antigas relações que moldaram a socialização capitalista em cada sociedade, a depender do grau de desconexão com as cadeias de produção e com os padrões de rentabilidade do mercado mundial e, por outro, como uma dinâmica de fragmentação e de acirramento dos conflitos no plano global. Na leitura dos profetas na nova ordem “multipolar” tudo isso é simplesmente ignorado. O padrão objetivista na análise de “longa duração” da dinâmica histórica, por sua vez, é contrabalançado por uma ênfase imediata na “ação política”, aqui transportada para a esfera de atuação dos Estados nacionais. O capitalismo de crise global, cada vez mais instável, pode aparecer, assim, como uma “base” econômica imutável que só conhece crises determinadas externamente pelas relações de poder entre Estados.
A crença na normalidade capitalista, que enfrentaria apenas crises políticas pela hegemonia dos processos econômicos globais, reflete uma profunda crise dos antigos referencias ideológicos. Essa impotência é que produziu nas últimas décadas uma conversão nacionalista quase total dos antigos adeptos da “luta de classes”. Nesse novo padrão ideológico, qualquer regime mafioso, fundamentalista ou perpetrador de massacres contra suas próprias populações pode, a princípio, servir como referência da luta contra o Ocidente decadente – especialmente quando ele se volta de modo brutal contra as mulheres ou os direitos civis em geral. Isso é ainda mais verdadeiro para o contexto do Oriente Médio, onde pelo menos desde o final dos anos 1970 as antigas ideologias “seculares” da modernização (não só econômica, mas igualmente no plano dos costumes e do direito) praticamente saíram de cena. Países como Síria, Iraque, Líbano e Líbia já se tornaram sociedades em grande parte colapsadas em meio à intensificação de conflitos entre milícias animadas por ideologias e por objetivos cada vez mais irracionais. O antigo lugar da política é ocupado por um desejo crescente de destruição e autodestruição. Nesse quadro, a recusa em admitir o estado de crise e a correspondente impotência das antigas ideologias se transforma no atual sistema de projeções. Em vez de interpretar a derrota das alternativas socialista e pan-arabista no Oriente Médio como parte do esgotamento do processo de modernização e o crescimento do extremismo neo-religioso nas regiões colapsadas como um invólucro ideológico das novas tendências de decomposição social, a reislamização é simplesmente identificada com as ideologias do passado ou é apresentada como um sucedâneo que desempenharia a mesma função de promoção do “interesse nacional”. Os ideólogos ocidentais desse novo irracionalismo perderam completamente o senso de direção. Em sua versão mais delirante, acreditam que a paz naquela região seria finalmente alcançada por meio de uma escalada militar que envolvesse também as potências emergentes do “mundo multipolar”, com um potencial destrutivo até aqui desconhecido.
V.
Se a “ala direita” do campo anti-imperialista pouco se diferencia das formas regressivas, autoritárias e irracionalistas, a ala esquerda residual pretensamente ortodoxa e centrada na “análise de classe” também cede à ideologia nacionalista quando se trata da questão palestina, com a diferença de que um caráter de classe ilusório é projetado em qualquer forma de resistência “contra o sionismo”. No primeiro caso, os Estados, sejam eles potências econômicas e regionais ou simples países empobrecidos, são sempre os atores principais. Isso vale não só para a suposta crítica do capitalismo quanto para a própria estruturação das relações capitalistas, cujas formas de objetividade social são dissolvidas na “vontade política”. No segundo caso, o conceito de classe afirmado em termos ideológicos dá lugar na análise do real a uma noção de “povo” em estado de revolta permanente contra as elites locais (sendo aqui uma exceção o caso palestino, em que a crítica é deslocada das autoridades locais para o Estado de Israel). Apenas um último reduto da esquerda radical tenta preservar a pureza ideológica da “autonomia de classe” na análise da questão palestina.13 Trata-se, aqui como em qualquer outro contexto, de estabelecer uma posição acima das rivalidades nacionais e das disputas geopolíticas – o que significa recolocar no centro da análise as relações de produção, entendidas principalmente como “conflitos nos locais de trabalho”, em oposição à ênfase anticolonial na “luta entre povos”.
Essa análise-standard do autonomismo critica a relativização do fundamentalismo em nome de uma pose anticolonial, cujo resultado prático é a defesa de “práticas religiosas opressivas” contra as respectivas populações – ainda que isso seja feito sem uma compreensão do caráter da reislamização como produto do contexto de crise e da sua ruptura com as antigas tradições religiosas. Essa posição, no entanto, descreve o quadro imediato sem esconder aquilo que apenas na terra do faz de conta da esquerda residual ainda não é conhecido: que “essa população civil que o Exército de Israel bombardeia […] é o indispensável escudo humano sob o qual o Hamas se protege” e que “o Hamas escolheu um método de ataque que é completamente indiferente ao destino da população palestina”.14 Poder-se-ia acrescentar que o caráter de ideologia de crise, aqui incompreendido, faz com que se passe da indiferença para uma tentativa deliberada de produzir uma grande tragédia sobre a população civil a fim de produzir as imagens que permitiriam incendiar a região com um apelo de massas anti-Israel.15 Isso é parcialmente capturado pela ideia de que “trata-se de terrorismo também na forma como essa organização expõe aos bombardeamentos israelitas uma população que não consegue [se] defender”.16 A análise autonomista insiste – embora isso também só parcialmente a separe do programa eliminatório do Hamas – que “será decisivo para o desenrolar dos acontecimentos o quanto a insatisfação dos israelenses com Netanyahu conseguirá pôr-se novamente em movimento”.
A partir dessa leitura, que se diferencia bastante do sistema de projeções afirmativo do restante da esquerda, a posição autonomista delineia sua alternativa para o conflito a partir da ideia do “Estado binacional” de judeus e árabes baseado no princípio de “classe contra classe”. Isso exige uma desconstrução geral das formas de legitimação de ambos os lados do conflito. O sionismo é descrito a partir do padrão conspirativo habitual, que esvazia sua iniciativa e capacidade de organização durante a formação do Estado para pintá-lo como um produto dos interesses das potências europeias. Já o fundamentalismo islâmico é retirado do seu contexto e da sua própria estrutura de significado para servir ao combate contra o “anticolonialismo”. A partir de nexos ideológicos reais entre alguns dos primeiros movimentos nacionalistas árabes e o nacional-socialismo, a ação do Hamas é igualmente retirada do seu contexto e interpretada como parte das “lutas pela independência”. Fica estabelecida, assim, uma identificação direta do Hamas com as lutas de libertação dos anos 1960-70, só que em uma versão negativa do sistema de projeções da esquerda tradicional. Para afirmar sua “posição de classe”, o discurso autonomista precisa ainda esvaziar a noção de vítima: “a classe explorada, ao lutar contra a exploração, pretendia uma transformação da estrutura social; mas uma identidade que se afirma como vítima pretende apenas ser indenizada, ou seja, pretende ascender nas hierarquias da sociedade existente”.17 Esse argumento geral serve como um meio de deslegitimação de qualquer pretensão a uma solução nacional para o conflito: “os defensores do Estado de Israel consideram-no imune à crítica pelo fato de o Terceiro Reich ter prosseguido o genocídio dos judeus. E os defensores do Hamas consideram-no imune à crítica pelo fato de os palestinos terem sido espoliados e serem perseguidos e bombardeados por Israel”.18
A construção toda é bastante precária. Ela se baseia não só em uma equivalência historicamente descontextualizada entre o fanatismo pós-estatal e um movimento nacional defensivo dos judeus contra o extermínio, como também desconsidera o fundamento emergencial do Estado de Israel. Em troca do direito de autodefesa, ela oferece apenas uma solução imaginária sem base na dinâmica real do conflito ou das tensões no interior das respectivas sociedades. A solução é, portanto, puramente doutrinária. E sem avançar na análise da crise do antigo ponto de vista de classe, ela só pode manter uma polêmica com o novo nacionalismo regressivo na esquerda em uma esfera ideológica desconectada da dinâmica atual do capitalismo. Ela não tem, assim, nem uma base real de ação no presente nem uma visão orientada para a construção de uma alternativa. Em vez disso, permanece fixada nos resíduos de uma história já amplamente superada – uma história que, além disso, é contada de forma bastante unilateral, pois a acusação de que as “vítimas” pretendem apenas “ascender nas hierarquias da sociedade existente” é perfeitamente válida também para a esmagadora maioria do antigo movimento operário. Uma alternativa capaz de romper imediatamente com as posições reais em conflito exigiria uma “terceira força” e não pode ser simplesmente derivada de princípios teóricos. E enquanto isso não ocorre, o princípio humanitário baseado na noção de vítima permanece plenamente válido.
VI
Não é possível uma falsa equivalência na guerra entre Israel e o movimento de “Resistência Islâmica”. De um lado, há um Estado que é produto da impossibilidade de os judeus permanecerem na Europa no momento em que o antissemitismo assumiu uma dimensão eliminatória; de outro, um movimento baseado no programa de eliminação desse Estado. Por mais que no plano imediato esse problema apareça, por assim dizer, invertido, ele não desaparece (sobretudo para os judeus) pelo fato de que, agora, é um incerto Estado palestino que está ameaçado. A Existência de Israel não tem como pressuposto a limpeza étnica na Palestina – mais ainda: em seu processo de fundação, Israel foi único Estado naquela região a aceitar, conforme a resolução 181 da ONU, o direito dos árabes da Palestina a um Estado independente, contra os interesses expansionistas dos países árabes que desencadearam a guerra em 1948.
A política atual de Israel, por outro lado, tem de ser criticada pela sua natureza expansionista e racista. Isso, no entanto, se deve menos a tendências endógenas de um nacionalismo extremista que revelariam a “verdadeira natureza” do sionismo do que a décadas de conflito permanente contra um cerco de países hostis. Durante todo o processo de formação nacional em Israel, as tendências reacionárias internas foram marginalizadas. Elas só começam a ganhar espaço – até se tornarem uma força dominante – no contexto de radicalização ideológica e de reislamização da região em meados da década de 1970. Esse extremismo nacional-ortodoxo avança de forma acelerada para uma inviabilização dos territórios sob controle palestino e tem como objetivo produzir um deslocamento forçado de populações para o Egito e a Jordânia. Uma condição dessa crítica, no entanto, é o reconhecimento de Israel. Se, por outro lado, a crítica é feita em nome do antissionismo ela não só dilui a ação dos verdadeiros perpetradores de massacres contra civis em um conceito geral de “sionismo”, mas também alimenta um processo de deslegitimação de Israel que faz parte da dinâmica de violência eliminatória pós-estatal dos radicais islâmicos. Em termos “programáticos”, essa posição antissionista consiste precisamente naquilo que ela mesma denuncia no plano imediato: um programa de limpeza étnica e de apartheid.19 Também quantos aos palestinos, ela já não está associada a uma tentativa de construção nacional; pelo contrário, a posição antissionista se esconde na fraqueza local dos palestinos para colocar água no moinho da destruição.
Cada lamento pelo “erro histórico” da construção de Israel é acompanhado de modo mais ou menos dissimulado pelo desejo de aniquilação. Em suas manifestações mais abertas, esse desejo envolve até comentários excitados sobre a perspectiva de uma escalada militar regional envolvendo arsenais nucleares como a única forma de “reparação”. O resultado de uma guerra total seria, obviamente, inviabilizar também qualquer Estado palestino na região. Não apenas indiretamente, mas também no plano das intenções, o Estado palestino há muito se tornou o pretexto de parte da esquerda radical do Ocidente para a solução do “problema judeu” na região. Uma vez eliminado esse problema, os países árabes, seguindo o longo histórico de guerra contra o movimento nacional palestino, como no caso da Jordânia e da Síria, poderiam ocupar militarmente a terra arrasada pela guerra, tal como em 1948. Isso, por si só, revela a natureza antissemita do discurso que pretende se voltar “apenas” contra o Estado de Israel.
A solidariedade com Israel, por outro lado, tem de estar cada vez mais associada a uma crítica da extrema-direita no poder e do seu projeto de colonização. Foi essa mesma corrente, denunciada de modo genérico como “sionismo”, que no passado alimentou o crescimento do Hamas e que hoje tenta se alimentar dos seus ataques “pós-políticos” para legitimar o projeto de uma “Grande Israel” – um projeto que não só produz uma onda de hostilidade crescente contra Israel, mas que tende a voltar sua brutalidade para a própria população israelense. Em outras palavras, é preciso dissociar a defesa de Israel em termos existenciais dessa orientação ultranacionalista e ortodoxa. Não basta dizer que a violência por parte da política de defesa de Israel não tem caráter “judaico” e que ela é parte de um processo geral de barbarização e de decadência capitalista. Isso é também uma forma de diluição dos agentes imediatos da violência em um contexto anônimo, como se uma caracterização do contexto capitalista geral os absolvesse de suas responsabilidades. Seria preciso avançar na distinção do caso específico da violência praticada pela atual coalizão governamental israelense, incluindo aí, de um lado, o modo como alguns desenvolvimentos ideológicos da extrema-direita no interior de Israel se tornaram fatores determinantes da sua atual política externa e de defesa e, de outro, as dinâmicas de corrosão interna da soberania de Israel por parte de agentes não estatais, e que representam até uma negação neo-religiosa desse Estado, do contrário, a dimensão “categorial” da crítica (a dupla natureza do Estado judeu) fica descola abstratamente da crítica da ideologia e da análise do real. Essa crítica, por sua vez, pode se basear amplamente em setores internos de oposição em Israel que, antes da crise desencadeada pelo ataque do Hamas, promoveu grandes manifestações nas principais cidades do país.20
É só por meio da neutralização imediata do fanatismo pós-estatal e da derrota dos extremistas internos que poderia surgir uma nova abertura para o diálogo – que poderia até evoluir para uma nova legitimação do Estado palestino. Isso ocorreria precisamente na condição de um Estado emergencial e humanitário, tal como no caso de Israel, mas sem a ilusão de que essa reabertura de diálogo resolveria prontamente o problema. Essa solução emergencial tende a se impor diante do risco de uma nova tragédia de grandes proporções. É claro que, em tempos de crise, esse Estado teria uma condição muito frágil e, além disso, teria de se afirmar contra muitos fatores de poder locais, mas ainda assim seria legitimado pela situação real da população civil palestina. Seu principal adversário não é Israel, mas o fanatismo islâmico do Hamas ou similares e também os interesses das potências regionais interessadas em um conflito permanente contra o “sionismo”.
Em termos históricos, o desastre palestino também é produto das suas escolhas, da falta de organização política inicial e de uma posição de fato mais orientada para a eliminação do adversário do que para a construção nacional. Ironicamente, uma mudança de rumo em Israel pode ser a única chance de uma solução para o problema nacional palestino, embora hoje todos os principais atores regionais joguem contra essa solução. Aqui também se trata de uma escolha da sociedade israelense que pode definir o seu destino. Decisivo é se a escolha humanitária pode prevalecer dentro da sociedade israelense e abrir um caminho de saída da lógica de escalada iniciada na década de 1970 e que hoje atinge um estado crítico, ou se a posição militarista e de ocupação vai empurrar Israel para uma situação cada vez mais isolada e dependente. Se esta última prevalecer, significa também que o Hamas conseguiu impor o seu objetivo delirante.
Dez. 2023.
1 Algumas análises otimistas apontam que o ataque do dia 07/10 recoloca o problema dos territórios palestinos na agenda internacional. Ainda é cedo para uma conclusão a respeito disso, mas qualquer análise séria sobre essa questão precisa considerar que as motivações do Hamas não envolvem a ideia de negociação com Israel.
2 O documento, traduzido do árabe, está disponível em Zaverucha, Jorge. Armadilha em Gaza. Fundamentalismo islâmico e guerra de propaganda contra Israel. SP, Geração editoral, 2010.
3 Ibidem.
4 Ibidem.
5 Ibidem.
6 ibidem
7 ibidem
8 Helena Salem, Palestinos: os novos judeus, Rio de Janeiro, Eldorado-Tijuca, 1977, p. 78.
9 Durante os anos 1970-80 também era comum o assassinato de lideranças moderadas pelos radicais da causa palestina, especialmente a organização Abu Nidal.
10 Exemplar quanto a isso foi a ação de sabotagem à campanha de Mahmoud Abbas pelo reconhecimento do Estado Palestino em 2010. O Hamas respondeu à iniciativa da liderança palestina com uma onda de ataques suicidas a israelenses na Cisjordânia.
11Moishe Postone, “History and Helplessness: Mass Mobilization and Contemporary Forms of Anticapitalism,” Public Culture 18 (2006), no. 1, pp. 93–10. Postone considera aqui, principalmente, as reações “antiamericanas” da esquerda ocidental aos atentados de 11 de setembro de 2001. Ele argumenta que nesse quadro a violência irracional é vista como uma reação dos oprimidos e não como uma ação cuja motivação permanece, assim, inquestionada. O único verdadeiro agente nessa construção dualista de ação-reação é o polo opressor: o Ocidente ou a sua liderança na figura dos Estados Unidos e do seu ”posto avançado” no Oriente Médio.
12 Ver o texto de Karl-Heinz Wedel em Krisis 32 (2008), para quem a ideologia islâmica regressiva representa, no contexto da crise, uma continuação da “vontade geral” para além dos movimentos de construção nacional centrados no Estado.
13 Quanto a isso, ver o texto exemplar de João Bernardo, “A esquerda, o nacionalismo e a Palestina”, em Passa Palavra, 19/10/2023.
14 João Bernardo, cit.
15 Ver quanto a isso o texto de Ernst Lohoff em Jungle World 2023/47 .
16 João Bernardo, cit.
17 Ibidem.
18 Ibidem.
19 O antissemitismo dos radicais islâmicos é bem conhecido e, num contexto de conflito direto, já não se distingue de um programa eliminatório. Por outro lado, o Hamas também se diz de acordo com a tradição islâmica ao falar em “tolerância para com os seguidores de outras religiões” nas terras conquistadas pelo Islã. Essa tolerância, porém, consiste em uma subordinação das demais tradições “sob as asas do Islã”, onde “os seguidores das três religiões podem coexistir em segurança e a salvo”, como diz a Carta do Hamas, pp. 151-152. Nessa condição de “protegidos”, os não islâmicos são, por definição, pessoas com status social inferior. Essa concepção de tolerância também exclui de antemão as “heresias” no interior do Islã ou comportamentos alheios à religião, que quase sempre são punidas de forma brutal.
20 Isso tem mais a ver, portanto, com a simples disposição subjetiva de conviver em paz com os povos árabes do que uma mobilização de “interesses de classe” nos locais de trabalho. E por isso mesmo não subordina o problema particular da ameaça existencial a uma solução universalista sem qualquer base real.